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Problemas de género | Feminismo e subversao da identidade Judith Butier COPYRIGHT © Routledge, Chapman & Hall, Inc., 1990 Edigéo em lingua portuguesa publicada mediante acordo com Routledge, Inc. TITULO ORIGINAL EM INGLES: Gender Trouble — Feminism and the Subversion of Identity CAPA: Evelyn Grumach PROJETO GRAFICO: Evelyn Grumach e Jodo de Souza Leite PREPARAGAO DE ORIGINAIS E REVISAO TECNICA: Vera Ribeiro ‘ EDITORAGAO ELETRONICA: Imagem Virtual CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Butler, Judith 2 8992p _Problemas de género : feminismo e subversio da identidade J Judith Butler 5 traducdo, Renato Aguiar. — Rio de Janeiro: lagi Brasileira, 2003, «= Gujeito e Histéria) Ci ISBN: 85-200-0611-6 sta. 3. Papel sexu . Identidade (Psicologia). IL Titulo: Feminism ¢ subversio da identicade. Sexo — Difereneas (Psicologia). 1, Tul. CDD — 305.4 02-2104 CDU — 396 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugao, armazenamento ou transmissdo de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagao por escrito. Direitos desta edigao adquiridos pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA Um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL: Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970 Impresso no Brasil 2003 Sumario PREFACIO. 7 CAPITULO I Sujeitos do sexo/género/desejo 15 1. "MULHERES” COMO SUIEITO DO FEMINISMO. 17 2. AORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESHIO 24 3. GENERO: AS RUINAS CIRCULARES DO DEBATE CONTEMPORANEO = 26 4. TEORIZANDO O BINARIO, O UNITARIOE ALEM 33 5. IDENTIDADE, SEXO E A METAFISICA DA SUBSTANCIA 37 6. LINGUAGEM, PODER E ESTRATEGIAS DE DESLOCAMENTO 49. CAPITULO 2 Proibigao, psicandlise e a produgao da matriz heterossexual 61 1. APERMUTA CRITICA DO ESTRUTURALISMO 68 2. LACAN, RIVIERE E AS ESTRATEGIAS DA MASCARADA = 74 3. FREUD EA MELANCOLIA DO GENERO 91 4. A COMPLEXIDADE DO GENERO E OS LIMITES DAIDENTIFICACAO = 102 5. REFORMULANDO A PROIBIGAO COMO PODER §= 109. CAPITULO 3 Atos corporais subversivos 119 1. ACORPO-POLITICA DE JULIA KRISTEVA 121 2, FOUCAULT, HERCULINE E A POLITICA DA DESCONTINUIDADE SEXUAL 140 3, MONIQUE WITTIG: DESINTEGRACAO CORPORALE SEXO FICTICIO. 162 4, INSCRIGOES CORPORAIS, SUBVERSOES PERFORMATIVAS 185, SUMARIO CONCLUSAO Da parédia a politica 203 Notas 215 indice 233 Prefacio Os debates feministas contemporaneos sobre os significados do con- ceito de género levam repetidamente a uma certa sensag4o de proble- ma, como se sua indeterminagao pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo. Mas “problema” talvez nao precise ter uma valéncia tao negativa. No discurso vigente em minha infancia, criar problema era precisamente 0 que nao se devia fazer, pois isso traria problemas para nds. A rebeldia e sua repressio pareciam ser apreen- didas nos mesmos termos, fendmeno que deu lugar a meu primeiro discernimento critico da manha sutil do poder: a lei dominante amea- ¢ava com problemas, ameagava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluf que problemas s4o inevité- veis € nossa incumbéncia é descobrir a melhor maneira de crid-los, a melhor maneira de té-los. Com o passar do tempo, outras ambigiiida- des alcangaram 0 cendrio critico. Observei que os problemas algumas vezes exprimiam, de maneira eufemistica, algum misterioso problema fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do femini- no. Li Beauvoir, que explicava que ser mulher nos termos de uma cultura masculinista é ser uma fonte de mistério e de incognoscibili- dade para os homens, o que pareceu confirmar-se de algum modo quando li Sartre, para quem todo desejo, problematicamente presu- mido como heterossexual e masculino, era definido como problema. Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tornou-se escandalo com a intrusao repentina, a intervengao nao antecipada, de um “ob- jeto” feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posig&o masculina. A dependéncia radical do sujeito masculino diante do “Outro” feminino PREFACIO expés repentinamente o cardter ilusério de sua autonomia. Contudo, essa reviravolta dialética do poder nao péde reter minha atengio — embora outras o tenham feito, seguramente. O poder parecia ser mais do que uma permuta entre sujeitos ou uma relagdo de inversao cons- tante entre um sujeito e um Outro; na verdade, o poder parecia operar na propria produg’o dessa estrutura bindria em que se pensa 0 con- ceito de género. Perguntei-me entao: que configuragao de poder cons- tr6i 0 sujeito e o Outro, essa relagdo bindria entre “homens” e “mu- lheres”, e a estabilidade interna desses termos? Que restricao estaria operando aqui? Seriam esses termos nao-problemdticos apenas na me- dida em que se conformam a uma matriz heterosexual para a concei- tuacdo do género e do deseyo? O que acontece ao sujeito e a estabili- dade das categorias de género quando o regime epistemoldgico da presungio da heterossexualidade € desmascarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas categorias ostensivamente onto- légicas? Mas como questionar um sistema epistemoldgico/ontolégico? Qual a melhor maneira de problematizar as categorias de género que sustentam a hierarquia dos géneros e a heterossexualidade compuls6- ria? Considere 0 fardo dos “problemas de mulher”, essa configuragao histérica de uma indisposicao feminina sem nome, que mal disfarga a nogio de que ser mulher € uma indisposigao natural. Por mais séria que seja a medicalizagio dos corpos das mulheres, o termo também é risivel, e rir de categorias sérias € indispensavel para o feminismo. Sem diivida, o feminismo continua a exigir formas préprias de seriedade. Female Trouble € também o titulo do filme de John Waters estrelado por Divine, também her6i/heroina de Hairspray — Eramos todos jo- vens, cuja personificagao de mulheres sugere implicitamente que o género é uma espécie de imitacao persistente, que passa como real. A performance dela/dele desestabiliza as préprias distingdes entre natu- ral e artificial, profundidade e superficie, interno e externo — por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre género. Seria o drag uma imitago de género, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais 0 género se estabelece? Ser mulher constituiria um PROBLEMAS DE GENERO “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade” constitufda mediante atos performativos discurstvamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas? Contudo, as praticas de género de Divine nos limites das cul- turas gay e lésbica tematizam freqiientemente “o natural” em contex- tos de parédia que destacam a construgao performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da identida- de — identidade bindria de sexo, género e corpo — podem ser apre- sentadas como produgoes a criar 0 efeito do natural, original e inevi- tavel? Explicar as categorias fundacionais de sexo, género e desejo como efeitos de uma formagio especifica de poder supde uma forma de inves- tigacdo critica, a qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de “genealogia”. A critica genealégica recusa-se a buscar as origens do gé- ‘ nero, a verdade intima do desejo feminino, uma identidade sexual ge- nuina ou auténtica que a repressio impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas politicas, designando como origem e causa catego- rias de identidade que, na verdade, sao efeitos de instituigdes, praticas e discursos cujos pontos de origem sao miltiplos e difusos. A tarefa dessa investigagao é centrar-se — e descentrar-se — nessas instituigées defin- doras: o falocentrismo e a heterossexualidade compulséria. A genealogia toma como foco 0 género e a andlise relacional por ele sugerida precisamente porque o “feminino” j4 nao parece mais uma nocdo estavel, sendo seu significado tao problematico e erratico quanto o de “mulher”, e porque ambos os termos ganham seu significado pro- blemAtico apenas como termos relacionais. Além disso, j4 nao esté claro _ que a teoria feminista tenha que tentar resolver as questdes da identidade priméria para dar continuidade 8 tarefa politica. Em vez disso, devemos nos perguntar: que possibilidades politicas sf0 conseqiiéncia de uma critica radical das categorias de 1dentidade? Que formas novas de poli- tica surgem quando a nogao de identidade como base comum ja nao restringe o discurso sobre politicas feministas? E até que ponto 0 esforgo para localizar uma identidade comum como fundamento para uma po- PREFACIO litica feminista impede uma investigagao radical sobre as construgGes e as normas politicas da propria identidade? O presente texto se divide em trés capftulos, que empreendem uma genealogia critica das categonas de género em campos discursivos muito distintos. O capitulo 1, “Suyeitos do sexo/género/desejo”, reconsidera 0 status da “mulher” como suyeito do feminismo e a distingao de se- xo/género. A heterossexualidade compulséria e o falocentrismo sio compreendidos como regimes de poder/discurso com maneiras freqiten- temente divergentes de responder 4s questées centrais do discurso do género: como a linguagem constré1 as categorias de sexo? “O feminino” resiste 4 representagao no 4mbito da linguagem? A linguagem é com- preendida como falocéntrica (a pergunta de Lucy Ingaray)? Seria “o feminmo” o tinico sexo representado numa linguagem que funde o fe- minino € o sexual (a afirmagao de Monique Wittig)? Onde e como con- vergem heterossexualidade compulséria ¢ falocentrismo? Onde estao os pontos de ruptura entre eles? Como a lnguagem produz a construgao ficticia de “sexo” que sustenta esses varios regimes de poder? No ambito de uma lingua da heterossexualidade presumida, que tipos de continui- dades se presume que existam entre sexo, género e desejo? Seriam esses termos distintos e separados? Que tpos de praticas culturais produzem uma descontinuidade ¢ uma dissonancia subversivas entre sexo, género e desejo, e questionam suas supostas relagdes? O capitulo 2, “Proibigéo, psicandlise e a produgao da matriz hete- rossexual”, oferece uma lertura seletiva do estruturalismo, relatos psica- nalfticos e feministas do tabu do incesto como mecanismo que tenta impor identudades de género distintas e internamente coerentes no im- bito de uma estrutura heterossexual. Em alguns discursos psicanaliticos, a questao da homossexualidade é invarravelmente associada a formas de ininteligibilidade cultural e, no caso do lesbianismo, a dessexualizagao do corpo feminino. Por outro lado, usa-se a teorta psicanalitica para explicar “identidades” de género complexas por meio de andlises da identidade, da identificagao e do disfarce ou mascarada, como em Joan Riviere e outros textos psicanaljticos. Uma vez submetido o tabu do PROBLEMAS DE GENERO incesto & critica de Foucault da hipétese repressiva, em “A histéria da sexualidade”, revelou-se que essa estrutura proibitiva ou juridica tanto instala a heterossexualidade compulséria no interior de uma economia sexual masculimsta como possibilita um questionamento dessa econo- mua. Seria a psicandlise uma investigagao antifundamentalista a afirmar 0 upo de complexidade sexual que desregula eficientemente codigos sexuais rigidos e hier4rquicos, ou preservaria ela um conjunto de supo- sigdes nao confessadas sobre os fundamentos da identidade, o qual fun- ciona em favor dessas hierarquias? O iiltimo capitulo, “Atos corporais subversivos”, inicia-se com uma consideragao critica sobre a construgio do corpo materno em Julia Kris- teva, para mostrar as normas implicitas que governam a inteligibilidade cultural do sexo e da sexualidade em seu trabalho. Embora Foucault se empenhasse em apresentar uma critica de Kristeva, um exame mais de- tido de alguns dos préprios trabalhos de Foucault revela uma indiferenga problematica em relagao a diferenga sexual. Contudo, sua critica da categoria de sexo prové uma visdo das praticas reguladoras de algumas ficgées médicas contemporaneas, concebidas para designar um sexo uni- voco. Tanto a teoria como a ficgao de Monique Wittig propdem uma “desintegracio” de corpos culturalmente constitufdos, sugerindo que a propria morfologia seria conseqiiéncia de um sistema conceitual hege- ménico. A parte final do capitulo, “Inscrigdes corporais, subversoes per- formativas”, considera que a fronteira e a superficie dos corpos sao po- liticamente construidas, inspirando-se no trabalho de Mary Douglas e de Julia Kristeva. Como estratégia para descaracterizar e dar novo sig- mificado as categorias corporais, descrevo e proponho uma série de pra- ticas parodisticas baseadas numa teorta performativa de atos de género que rompem as categorias de corpo, sexo, género ¢ sexualidade, ocasio- nando sua re-significagao subversiva ¢ sua proliferacao além da estrutura bindria. Parece que cada texto possu mais fontes do que pode reconstruir em seus pr6prios termos. Trata-se de fontes que definem e informam a hin- 1 PREFACIO guagem do texto, de modo a exigir uma exegese abrangente do préprio texto para ser compreendido —, € claro, nao haveria garantias de que tal exegese pudesse acabar um dia. Embora eu tenha iniciado este pre- facio com uma histéria de infancia, trata-se de uma fabula irredutivel aos fatos. Certamente, a proposta aqui é, de maneira geral, observar o modo como as fabulas de género estabelecem e fazem circular sua de- nominagao errénea de fatos naturais. E claramente impossivel recuperar as origens destes ensaios, localizar os varios momentos que viabilizaram este texto. Os textos esto reunidos para facilitar uma convergéncia politica das perspectivas feministas, gays e lésbicas sobre o género com a da teoria pés-estruturalista. A filosofia é o mecanismo disciplinar pre- dominante a mobilizar presentemente esta autora-sujeito, embora muito raramente aparega dissociada de outros discursos. Esta investigacdo bus- ca afirmar essas posigGes nos limites criticos da vida disciplinar. A ques- to nao é permanecer marginal, mas participar de todas as redes de zonas marginais geradas a partir de outros centros disciplinares, as quais, jun- tas, constituam um deslocamento miltiplo dessas autoridades. A com- plexidade do conceito de género exige um conjunto interdisciplinar e p6s-disciplinar de discursos, com vistas a resistir domesticagao acadé- mica dos estudos sobre 0 género ou dos estudos sobre as mulheres, e de radicalizar a nogSo de critica feminista. Escrever estes textos foi possivel gracas a numerosas formas de apoio institucional e individual. O Americain Council of Learned Socie- ties forneceu uma bolsa para 0 outono de 1987 (Recent Recipient of the Ph.D. Fellowship) e a School of Social Science do Institute for Advanced Study, em Princeton, proporcionou bolsa, alojamento e discussées esti- mulantes ao longo do ano académico de 1987-1988. A George Washing- ton University Faculty Research Grant também apoiou minha pesquisa durante os verdes de 1987 € 1988. Joan W, Scott foi uma critica inesti- miyel e incisiva ao longo das varias etapas deste trabalho. Seu compro- misso € sua disposicéo de repensar criticamente os pressupostos da po- lftica feminista me desafiaram e inspiraram. O “Gender Seminar”, rea- lizado no Institute for Advanced Study sob a direcao de Joan ajudou-me a esclarecer e a elaborar meus pontos de vista, em virtude das divisées PROBLEMAS DE GENERO significativas e instigantes em nosso pensamento coletivo. Conseqiien- temente, agradeco a Lila Abu-Lughod, Yasmine Ergas, Donna Haraway, Evelyn Fox Keller, Dorinne Kondo, Rayna Rapp, Carroll Smith-Rosem- berg e Louise Tilly. Meus alunos no semindrio “Género, identidade e desejo”, realizado na Wesleyan University e em Yale, em 1985 e 1986 respectivamente, foram indispensdveis por sua disposic¢ao de imaginar mundos com géneros alternativos. Também apreciei muito a variedade de respostas criticas que recebi do Princeton Women’s Studies Collo- quium, do Humanities Center da Johns Hopkins University, da Univer- sity of Notre Dame, da University of Kansas, da Amherst College e da Yale University School of Medicine, quando da apresentagao de partes _ do presente trabalho. Meus agradecimentos igualmente a Linda Singer, Cujo radicalismo persistente foi inestimavel, a Sandra Bartky, por seu trabalho e suas oportunas palavras de estimulo, a Linda Nicholson, por seu conselho editorial e critico, e a Linda Anderson, por suas agudas in- tuigdes politicas. E também agradeco as seguintes pessoas, amigos e co- - legas, que deram forma a meu pensamento e 0 apoiaram: Eloise Moore _ Agger, Inés Azar, Peter Caws, Nancy F. Cott, Kathy Natanson, Lois Na- tanson, Maurice Natanson, Stacy Pies, Josh Shapiro, Margaret Soltan, | Robert V. Stone, Richard Vann e Eszti Votaw. Agradecoa Sandra Schmidt por seu excelente trabalho de ajuda na preparagio do manuscrito, e a Meg Gilbert por sua assisténcia. Também agradeco a Maureen MacGro- ‘Wun, por encorajar este projeto e outros com humor, paciéncia e exce- lente orientagao editorial. Como sempre, agradego a Wendy Owen por sua imaginagao impla- eiyel, sua critica agucada e pela provocagao de seu trabalho. 13 cariuio: Sujeitos do sexo/género/desejo A gente nao nasce mulher, torna-se mulher. — Simone de Beauvoir Estritamente falando, no se pode dizer que existam “mulheres”. — Julia Kristeva Mulher nao tem sexo. —Luce Irigaray A manifestacao da sexualidade... estabeleceu essa nogao de sexo. — Miche! Foucault A categoria do sexo é a categoria politica que funda a sociedade heterossexual. — Monique Wittig 1. "MULHERES” COMO SUJEITO DO FEMINISMO. Em sua esséncia, a teoria feminista tem presumido que existe uma iden- tidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que nao s6 deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu proprio discurso, mas constitui 0 sujeito mesmo em nome de quem a repre- SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO senta¢ao politica é almejada. Mas politica e representacdo s4o termos polémicos. Por um lado, a representagdo serve como termo operacional no seio de um processo politico que busca estender visibilidade e legiti- midade as mulheres como sujeitos politicos; por outro lado, a repre- sentag’o é a fung4o normativa de uma linguagem que revelaria ou dis- torceria 0 que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representé-las completa ou adequadamente pareceu necessario, a fim de promover a visibilidade polftica das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condicdo cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente nao representada. Recentemente, essa concep¢g4o dominante da relacdo entre teoria feminista e politica passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O préprio sujeito das mulheres nao é mais compreen- dido em termos estaveis ou permanentes. E significativa a quantidade de material ensaistico que n4o s6 questiona a viabilidade do “sujeito” como candidato iiltimo a representagao, ou mesmo 2 libertacgao, como indica que é muito pequena, afinal, a concordancia quanto aot que cons- titui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. Os dominios da “representacdo” politica e lingiifstica estabeleceram a priori o critério segundo 0 qual os préprios sujeitos sio formados, com o resultado de a representacao s6 se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as qualificagdes do ser sujeito tem que ser atendidas para que a representag4o possa ser expandida. Foucault observa que os sistemas juridicos de poder produzem os sujeitos que subseqiientemente passam a representar.' As nog6es juridi- cas de poder parecem regular a vida politica em termos puramente ne- gativos — isto €é, por meio de fimitagdo, proibicdo, regulamentagao, controle e mesmo “proteg4o” dos individuos relacionados aquela estru- tura politica, mediante uma ag4o contingente e retratavel de escolha. Porém, em virtude de a elas estarem condicionados, 0s sujeitos regulados por tais estruturas sao formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigéncias delas. Se esta andlise é correta, a formago juridica da linguagem e da politica que representa as mulheres como “o sujeito” do 18 PROBLEMAS DE GENERO feminismo é em si mesma uma formagio discursiva e efeito de uma dada versao da politica representacional. E assim, o sujeito feminista se revela discursivamente constituido —, e pelo proprio sistema politico que su- postamente deveria facilitar sua emancipagio, 0 que se tornaria politi- camente problematico, se fosse possivel demonstrar que esse sistema produza sujeitos com tragos de género determinados em conformidade com um eixo diferencial de dominagao, ou os produza presumivelmente masculinos, Em tais casos, um apelo acritico a esse sistema em nome da emancipagio das “mulheres” estaria inelutavelmente fadado ao fracasso. “O sujeito” é uma questo crucial para a politica, e particularmente para a politica feminista, pois os sujeitos jurfdicos s4o invariavelmente produzidos por via de praticas de exclusio que nao “aparecem”, uma vez estabelecida a estrutura jurfdica da politica. Em outras palavras, a constru¢4o politica do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimagao e de exclusdo, e essas operacées polfticas sao efetivamente ocultas e naturalizadas por uma anilise politica que toma as estruturas jurfdicas como seu fundamento. O poder juridico “produz” inevitavel- mente o que alega meramente representar; conseqiientemente, a politica tem de se preocupar com essa fungao dual do poder: jurfdica e produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a nogao de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formacao discursiva como premissa basica natural que legitima, subseqiientemente, a propria hegemonia regulado- ra da lei. Nao basta inquirir como as mulheres podem se fazer repre- sentar mais plenamente na linguagem e na politica. A critica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de po- der por intermédio das quais busca-se a emancipagao. Certamente, a. questao das mulheres como sujeito do feminismo suscita a possibilidade de nao haver um sujeito que se situe “perante” a lei, 4 espera de representagio na lei ou pela lei. Talvez o sujeito, bem como a evocacao de um “antes” temporal, sejam constitufdos pela lei como fundamento ficticio de sua propria reivindicagao de legitimidade. A hip6tese prevalecente da integridade ontoldgica do sujeito perante a lei pode ser vista como 0 vestigio contemporaneo da hipotese do estado 19 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIJO natural, essa fabula fundamte que € constitutiva das estrituras jurdicas do liberalismo classico. A invocagao performativa de vm “antes” nao hist6rico torna-se a premiss4 basica a garantir uma ontologia pré-ocial de pessoas que consentem Jivremente em ser governadss, Constituindo assim a legitimidade do contrato social. Contudo, além das ficgSes “fundacionistas” que sustentam a s0¢io de sujeito, h4 o problema politico que o feministno encontra. na siposi- c&o de que 0 termo mudher’s denote uma identi dade comumn, Aoinvés de um significante estavel a zomandar 0 consentismento daquelas aquem pretende descrever e repreentar, mulheres — mesmo 1 pharal — tor- nou-se um termo problemitico, um ponto de contest¢40, umacausa de ansiedade. Como suger¢ 0 titulo de Denise Riley, Ai I That Name? [“Sou eu este nome?”], tra‘-se de uma pergunta gerad pella posibili- dade mesma dos miltiplossignificados do nome. Se ilgué:m “é uma mulher, isso certamente n@ € tudo o que esse alguémé; 0 terno nao logra ser exaustivo, nao ptque Os tragos preclefinidis de. génro da “pessoa” transcendam a pa’afernilia especifica dle seu ¢nerro, ms por- que © género nem sempre € constituiu de maneira co¢ente ou wonsis- tente nos diferentes contest0s historicos, e porque o gner® estdelece intersegdes com modalidacs raciais, classistas, étnicassexuaais eregio- nais de identidades discursVamente constitufda:s. Resula quae se ornou impossivel separar a nocac de “género” das intersegos polliticate cul- turais em que invariavelmate ela € produzida e mantila. A presungao politica Je ter de haver uma base mniveersal vara 0 feminismo, a ser encontrala numa identidade supospmen-te exstente em diferentes culturas, aempanha freqtientemente : idétia deque a opressdo das mulheres pos i uma forma singu lar, disernfwel ni estru- tura universal ou hegemérca da domina¢ao pautriarcaou mmascilina. A nogao de um patriarcado iniversal tem sido aamplamate Criticda em anos recentes, por seu fra@sso em explicar os umecanimos. da orressio de género nos contextos ulturais concretos emn que la exxiste.Exata- mente onde esses varios cDtextos foram consualtadosior esssas eorias, eles 0 foram para encontrr “exemplos” on “ilaustragés” dee umprinci- plo universal pressupostolesde o ponto de parrtida, ta faormade teo- 20 PROBLEMAS DE GENERO rizagao feminista foi criticada por seus esforgos de colonizar e se apro- priar de culturas nao ocidentais, instrumentalizando-as para confirmar nogdes marcadamente ocidentais de opressdo, e também por tender a construir um “Terceiro Mundo” ou mesmo um “Oriente” em que a opressio de género é sutilmente explicada como sintomatica de um bar- barismo intrinseco e nao ocidental. A urgéncia do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparéncia de representatividade das reivindicagdes do feminismo, mo- tivou ocasionalmente um atalho na direg4o de uma universalidade cate- gorica ou ficticia da estrutura de dominagio, tida como responsdvel pela produgio da experiéncia-comum de subjugagao das mulheres. Embora afirmar a existéncia de um patriarcado universal nao tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a nogao de uma concepgio genericamente compartilhada das “mulheres”, corolario dessa perspec- tiva, tem se mostrado muito mais dificil de superar. E verdade, houve muitos debates: existiriam tragos comuns entre as “mulheres”, preexis- tentes A sua opressdo, ou estariam as “mulherés” ligadas em virtude somente de sua opressao? Ha uma especificidade das culturas das mu- lheres, independente de sua subordinac&o pelas culturas masculinistas hegem6nicas? Caracterizam-se sempre a especificidade e a integridade das praticas culturais ou lingiifsticas das mulheres por oposigao e, por- tanto, nos termos de alguma outra formagdo cultural dominante? Existe uma regiao do “especificamente feminino”, diferenciada do masculino como tal e reconhecivel em sua diferenga por uma universalidade indis- tinta e conseqiientemente presumida das “mulheres”? A nogio bindria de masculino/feminino constitui nao sé a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a “especificida- de” do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analftica e politicamente separada da constituigao de classe, raga, etnia e outros eixos de relagdes de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam equivoca a nogao singular de identidade.* E minha sugestao que as supostas universalidade e unidade do su- jeito do feminismo sao de fato minadas pelas restrigdes do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insisténcia prematura 21 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO uum sujeito estavel do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, miltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses dominios de exclusio revelam as conseqiiéncias coerci- tivas e reguladoras dessa construgao, mesmo quando a construgao é claborada com propésitos emancipatérios. Nao ha ddvida, a fragmen- taco no interior do feminismo e a oposigdo paradoxal ao feminismo — por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar — sugerem os limites necessdrios da politica da identidade. A sugestio de que o feminismo pode buscar representagao mais ampla para um sujeito que ele proprio constréi gera a conseqiiéncia irénica de que os objetivos feministas correm 0 risco de fracassar, justamente em funcao de sua recusa a levar em conta os poderes constitutivos de suas proprias reivin- dicag6es representacionais. Fazer apelos 4 categoria das mulheres, em nome de propésitos meramente “estratégicos”, nao resolve nada, pois as estratégias sempre tém significados que extrapolam os propésitos a que se destinam. Nesse caso, a prdpria exclusio pode restringir como tal um significado inintencional, mas que tem conseqiiéncias. Por sua conformacéo as exigéncias da politica representacional de que © femi- nismo articule um sujeito estdvel, o feminismo abre assim a guarda a acusagées de deturpac’o cabal da representagdo. Obviamente, a tarefa politica nao € recusar a politica representa- cional — como se pudéssemos fazé-lo. As estruturas juridicas da lingua- gem e da politica constituem 0 campo contemporaneo do poder; con- seqiientemente, nao ha posigéo fora desse campo, mas somente uma genealogia critica de suas proprias praticas de legitimagao. Assim, o pon- to de partida critico é 0 presente hist6rico, como definiu Marx. E a tarefa justamente formular, no interior dessa estrutura constitufda, uma cri- tica as categorias de identidade que as estruturas jurfdicas contempora- neas engendram, naturalizam’e imobilizam. Talvez exista, na presente conjuntura politico-cultural, perfodo que alguns chamariam de “pés-feminista”, uma oportunidade de refletir a partir de uma perspectiva feminista sobre a exigéncia de se construir um sujeito do feminismo. Parece necessdrio repensar radicalmente as cons- trugdes ontoldgicas de identidade na pratica politica feminista, de modo 22 PROBLE MA! DE GENERO uma politica repre-sentzional capaz de renovar o feminismo terms, Por outro lado é tempo de empreender uma critica husque libertar a teoia feminista da necessidade de cons- base Gnica e permanene, invariavelmente contestada pelas le identidade ou anti-idatidade que o feminismo invariavel- Ini. Serd que as prAticasexcludentes que baseiam a teoria fe~ uma nocdo das “mualherg” como sujeito solapam, paradoxal- os objetivos feministas le ampliar suas reivindicagées de uitagao”?> ser que o problema sejaainda mais sério. Seria a construgdo joria das mulheres como swito coerente ¢ estavel uma regulagio so inconsciente das relages de género? E nao seria essa reifi- isamente 0 contrario do objetivgs feministas? Em que medida poria das mulheres s6 alcang estabilidade e coeréncia no contexto iz heterossexual?* Se a ncio estavel de género da mostras de nais servir como premissa bsica da politica femiinista, talvez um tipo de politica feminista sja agora desejavel para contestar as wias reificagdes do génexo e a identidade — isto é, uma politica sta que tome a construcao ariavel da identidade como um pré- lisito metodoldgico e normatio, sendo como um objetivo politico. Determinar as operacdes poticas que produzem e ocultam o que ifica como sujeito jurfdico lo feminismo é precisamente a tarefa ealogia feminista da categora das mulheres. Ao longo do esforco Ip questionar a nocao de “mulhe:s” como sujeito do feminismo, a in- gagiio nao problematizada dessccategoria pode obstar a possibilidade feminismo como politica reprcentacional. Qual o sentido de esten- Mera representacao a sujeitos cuja onstituigao se dé mediante a exclusio aqueles que nao se conformam s exigéncias normativas nao explici- tadas do sujeito? Que relagées ¢ dominagao e exclusao se afirmam inintencionalmente quando a reresentagdo se torna o tinico foco da politica? A identidade do sujeito minista nao deve ser o fundamento da politica feminista, pois a formgao do sujeito ocorre no interior de tim campo de poder sistematicarente encoberto pela afirmacao desse fundamento. Talvez, paradoxalmate, a idéia de “representacdo” s6 ve- SUJEITOS DO SEXO/GENERG/DESEIO nha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o suje(to “mu- Theres” nao for presumido em parte alguma. 2. A ORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESEJO Embora a unidade indiscutida da nocdo de “mulheres” seja freqiientemen- te invocada para construir uma solidariedade da identidade, uma divisao se introduz no sujeito feminista por meio da distingdo entre sexo e género. Concebida originalmente para questionar a formulagio de que a biologia € 0 destino, a distingao entre sexo e género atende a tese de que, por mais que 0 sexo parega intratavel em termos bioldgicos, 0 género é cultural- mente construfdo: conseqiientemente, nao é nem o resultado causal do seXo, nem tampouco tao aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a uni- dade do sujeito j4 € potencialmente contestada pela distingio que abre espaco ao género como interpretag4o multipla do sexo.” Se o género s4o as significados culturais assumidos pelo corpo se- xuado, nao se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite logico, a disting4o sexo/género sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e géneros culturalmente construidos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo bindrio, nao decorre daf que a constru¢ao de “homens” aplique-se exclusivamen- te a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos parecam niio pro- blematicamente bindrios em sua morfologia e constituigao (ao que serd questionado), nao ha raz4o para supor que os géneros também devam permanecer em ntimero de dois.’ A hipétese de um sistema binério dos géneros encerra implicitamente a crenca numa relacdo mimética entre género e sexo, na qual o género reflete o sexo ou € por ele restrito. Quando 0 status construfdo do género é teorizado como radicalmente independente do sexo, o préprio género se torna um artificio flutuante, com a conseqiiéncia de que homem ¢ masculino podem, com igual fa- 24 PROBLEMAS DE GENERO cilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mu- ther e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. Essa cisao radical do sujeito tomado em seu género [evanta outro conjunto de problemas. Podemos referir-nos a um “dado” sexo ou um “dado” género, sem primeiro investigar como sao dados 0 sexo e/ou género e por que meios? E o que é, afinal? o “sexo”? E ele natural, anatémico, cromossémico ou hormonal, e como deve a critica feminista avaliar os discursos cientificos que alegam estabelecer tais “fatos” para n6s?? Teria o sexo uma histéria?™ Possuiria cada sexo uma histéria ou hist6rias diferentes? Haveria uma histéria de como se estabeleceu a dua- _lidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as op¢des bindrias como _uma construcdo varidvel? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por varios discursos cientificos a ser- Be de outros interesses politicos e sociais? Se o carater imutavel do sexo é contestavel, talvez o proprio construto chamado “sexo” seja tao -culturalmente construfdo quanto o género; a rigor, talvez 0 sexo sempre tenha sido o género, de tal forma que a distingdo entre sexo e género "revela-se absolutamente nenhuma.!! 4 Se o sexo é, ele préprio, uma categoria tomada em seu género, nao - faz sentido definir 0 género como a interpretacao cultural do sexo. O género nao deve ser meramente concebido como a inscrigao cultural de significado num sexo previamente dado (uma concep¢ao juridica); tem de Becsignar também o aparato mesmo de produgao mediante o qual os pré- " prios sexos sao estabelecidos. Resulta daf que o género nao esta para a cultura como 0 sexo para a natureza; ele também é 0 meio discursivo/cul- tural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” € produzido e - estabelecido como “pré-discursivo”, anterior & cultura, uma superficie po- -iticamente neutra sobre a qual age a cultura. Essa concepgao do “sexo” como radicalmente nao-construfdo sera novamente objeto de nosso inte- _resse na discussao sobre Lévi-Strauss e 0 estruturalismo, no capitulo 2. Na conjuntura atual, j4 esta claro que colocar a dualidade do sexo num do- minio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna €a estrutura bindria do sexo s4o eficazmente asseguradas. Essa produgao a do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do apa- 25

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