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CRITICA SOCIOLOGICA Marisa Corréa Silva QuEE Para tentar uma definigio (¢ definigdes e generalizagées sao sempre discutfveis), critica saciolégica € la que procura ver o fendmeno da literatura como parte de um contexto maior: uma sociedade, fa cultura, Sob o nome genérico de critica sociolégica encontram-se diversos autores ¢ tendéncias. sificagdo desses autores €, por vezes, polémica: existem autores que colocam Bakhtin sob 0 Jo de “pos-formalismo”, ou que colocam Lukics na critica marxista; hé quem ache que a critica sta € um tipo de critica sociolégica e ha quem separe totalmente as duas. ‘© conceito de critica sociolégica que utilizamos € muito influenciado por Antonio Candido, um autores estudados neste capitulo. Isso quer dizer que, a0 contrario de outros autores (notadamente autores marxistas), no acreditamos que um texto literdrio seja melhor porque reflete bem a lade; mas, sim, que um texto literério € bom porque € bem escrito, porque trabalha a linguagem rma criativa, porque utiliza “os espacos em branco” (intersticios) para enriquecer as possibilidades itura etc. Nem toda corrente que se intitula “critica socioldgica” ow “sociocritica” partilha esse 0 de vista. Portanto, € preciso atengio as definig6es que cada autor utiliza. Os autores aqui contemplades foram escolhidos por terem algo em comum: pensar a literatura o um fenémeno diretamente ligado 4 vida social. Em outras palavras, a literatura no € um .eno independente, nem a obra literaria € criada apenas a partir da vontade e da “inspiragio” do Ela é criada dentro de um contexto; numa determinada lingua, dentro de um determinado ¢ numa determinada época, onde se pensa de uma certa maneira; portanto, cla carrega em si as as desse contexto. Estudando essas marcas dentro da literatura, podemos perceber como a Jade na qual o texto foi produzido se estrutura, quais eram os seus valores etc. INao se pode, porém, confundir uma critica que leve em conta apenas a hist6ria de vida do autor a biogréfica) com a critica sociol6gica. Esta ltima nfo esta preocupada com apenas um Juo, mas com grupos sociais aos quais eventualmente © autor pertenceria. A critica biografica eventos na vida de um autor, mesmo que esses eventos sejam de cardter social, ¢ a critica isio mais ampla. Por exemplo, uma critica biogréfica saberia que Graciliano —codT)eorra trrerdnra ‘ Ramos foi preso durante o Estado Novo de Vargas: essa critica daria importincia total ao fato de a obra Memérias do cércere seja 0 depoimento pessoal de Ramos sobre esse periodo terri Conclusio: como Graciliano é um grande escritor e escrevia sobre 0 que tinha vivido, 0 romance poderia ser muito bom. A critica sociolégica, de posse dos mesmos dados, leria Memérias do edrcere no. como acontecimento na vida de um Gnico homem, mas como o relato simbélico de como muitos hom ¢ mulheres sofreram durante o Estado Novo. Mesmo quem nio foi preso ou perseguido sentia q liberdade individual diminuira; era como se todo o pais estivesse sofrendo, em maior ou meni grau, uma prisio. Nao € tio importante saber que 0 romance seja autobiogréfico, mas sim verific através da leitura, que esse romance fiz uma ponte estética entre realidade social, coletiva, representacio artistica. O valor do romance nio viria simplesmente do fato de Graciliano ser “b escritor” (mesmo étimos escritores podem escrever um livro ruim), mas do fato de Memérias circere conseguir mostrar, em sua estrutura, os mecanismos da repressio ¢ da demago; funcionando no pais. O valor vem da obra em si, ¢ nfo do nome de quem a escreveu. Barberis (1996) diz que o papel da critica sociolégica €, justamente, fazer com que cada leit comece a observar 0 mundo que nos cerca e perceba, a0s poucos, que os nossos habitos, crengas valores nio surgiram “naturalmente”, nem sio eternos. A partir daf, comecamos a entender qi muito daquilo que nés julgamos “verdade absoluta” nao é bem assim; que a sociedade que nos cer 4 foi diferente do que € hoje, ¢ que pode ¢ deve mudar ainda mais; que muitas das coisas q julgamos improprias nio sio erradas, mas apenas condenadas pelo estado atual dos valores sociai ‘Ao percebermos 0 quanto a nossa prépria consciéncia do mundo é manipulada por idéias que sio “verdades”, mas apenas convengies arbitrérias, nds nos tornamos mais fortes ¢ aptos a agi positivamente no mundo em que vivemos. Claro que isso exige certa pratica, pois alguns te podem estar justamente tentando reforcar os valores e idéias “consagrados” do seu tempo, exaltand 0 proprios preconceitos e, se o leitor for ingénuo, pode acabar apenas aceitando 0 ponto de vista di texto, sem pensar sobre ele ou discuti-lo. ‘COMO sURGIU Dois dos primeiros autores a fazer um tipo de critica que tentava mostrar as relagées entre a literatura a sociedade foram os franceses Mme. De Stael (1766-1817) ¢ Hyppolite Taine (1828-1893). A primeira, fem 1800, com o livro Da literatura considerada em: suas relagdes com as instinigGes socais, se posiciona como uma critica que pensa a literatura dentro do contexto social. Em De la littérature e De l’Allemagne, estuda as caracterfsticas dos diferentes expoentes da literatura nos paises considerados “mais desenvolvidos” da Europa do final do século XVII: Inglaterra, Franga, Alemanha, Ela fala sobre as conseqiiéncias da Revolugéo Francesa (1789) no pensamento europeu, com o surgimento dos ideais de liberdade, ¢ de como nessas sociedades pés-revolucionérias surge um novo tipo de literatura, com caracteristicas proprias. Taine jé tem uma postura mais influenciada pelo Determinismo, ou seja, a crenga de que o destino de cada ser humano era determinado pelo meio social no qual ele nasce e € criado, ¢ por sua raga. Ele achava que a obra de um autor era principalmente um reflexo da vida e do “momento”, isto é, das condigSes sociais da época do autor. No Brasil, Silvio Romero vai fazer esse tipo de critica, no século XIX. No séculoXX, varios estudiosos importantes vio contribuir para a critica sociolégica. © conceito de ‘uma critica literdria baseada nas relagdes entre obra de arte e sociedade jf estardi mais sofisticado do que na €poca de Taine, € muitos dos estudiosos vio divergir entre si, alguns tendendo mais a sociologia e outros privilegiando 0 fator estético-literdrio. Dentre eles, destacamos Gyérgy Lukéics, Mikhail Bakhtin ¢ Antonio Candido. Nas paginas seguintes estio alguns dos pontos mais importantes do pensamento de cada um deles. LukAcs Lukécs (1963) fazia uma critica influenciada pelo marxismo, isto €, j4 tinha uma visio do mundo como luta de classes e fazia um paralelo entre o desenvolvimento de certas formas literdrias e 0 142 —_— —od7) Critrca socroLécrca desenvolvimento do capitalismo. Para 0 autor, a literatura nio reflete a realidade social apenas na iescricio dos ambientes, objetos, roupas, gestos etc. (ou seja, num fluxo de detalhes realista), mas mbém — e principalmente — na sua esséncia, na maneira com que a fibula se desenrola, na iculagio dos mecanismos que estruturam um texto. O texto passa a refletir © todo social, a aneira como a propria sociedade esti montada e organizada. A degradacio dos valores humanistas causada pelo capitalismo esté, segundo ele, revelada na literatura. Por isso, hi estudiosos que solocam Lukécs numa subdivisio intitulada “critica marxista”, Em seu livro de juventude (publicado em 1920), Teoria do romance, Lukacs (1963) comeca lisando a postura do homem em sociedades distintas. Segundo ele, a sociedade grega era do tipo fechada”, pois dava uma explicacio harmoniosa do mundo. A doenga e o sofrimento podiam tirar a ida, mas néo podiam tirar o sentido da vida, Ao passar para 0 Ocidente, essa idéia sofreu a fluéncia judaico-cristi ¢ tornou-se a cultura medieval, angustiada ¢ cheia de dtividas quanto a0 ido da vida. A religiio era, para o homem medieval, um refiigio necessério contra o medo que 0 rimia, a0 contrario do homem grego clissico, que nao precisava de uma religiio oficial, pois se ntia seguro no mundo. Partindo dessa diferenciagio, Lukics (1963) analisa as diferencas entre os géneros épico, Iirico € amitico; e, principalmente, a diferenca entre a cpopéia (clissica) € o romance (género moderno), jostrando que as formas de cada um correspondiam & mentalidade da sociedade que originou cada m deles. A epopéia corresponde a uma visio do mundo como um todo harménico; o sofrimento parte natural ¢ Idgica desse todo, a distncia entre o humano ¢ o sagrado era reduzida, cada dividuo era uma parte cumprindo seu papel nesse todo, mais importante do que as unidades que o mmpunham. Jé o heréi do romance € um heréi isolado, apartado do resto do mundo. Seu destino dividual, fruto de acasos, esforcos e erros, € 0 que importa e comove 0 leitor. Nesse universo, o jo nio é vistvel nem decifravel, e fica dificil entender se h4 um papel a ser cumprido ou se tudo na fida no passa de mero acaso, sem nenhum sentido ou raz. Tal distingio pode ser exemplificada em Edipo Rei: por mais terrivel que seja o destino de Edipo, leitor ou espectador € conduzido a sentir que esse destino j& estava marcado, que precisava ontecer, porque havia sido determinado por forgas muito superiores 4s humanas, pelo Fado a0 sal os proprios deuses do Olimpo se submetem — € que, portanto, estaria fora das maos de wralquer humano impedir a hist6ria. Isso fica bem claro pelos esforcos de Laio, abandonando o enino as feras, ¢ do proprio Edipo, fugindo da casa de seus pais adotivos. Esses csforgos retendiam impedir o cumprimento da profecia, mas apenas serviram para precipité-lo. Por outro lado, em Dom Casmurro, apesar da queixa final de Bentinho de que 0 destino quisera 1¢ sua amada ¢ seu melhor amigo o traissem, o leitor sente que essa queixa € mais retérica do que esentacio de uma conformidade com Fado. O texto, por diferentes meios, indica a0 leitor que amargura ¢ a solidio final do Casmurro sio'frutos de um desastre (a possivel traigio de Capitu) e s defeitos do proprio Bentinho, que reagiu muito mal ao fim do seu casamento. IKACS E GOLDMANN: O HEROI PROBLEMATICO Na epopéia, o mundo interior da personagem ¢ 0 mundo exterior a ela eram harménicos, entes; no romance, mundo interior ¢ mundo exterior apresentam um para o outro um fcariter estranho e hostil” (LUKACS, 1963, p. 83). O herdi do romance seria, portanto, um individuo problemético” (LUKACS, 1963, p. 87), ou seja, um individuo que esté em luta contra mundo que cle nao conhece completamente, nem € capaz de dominar. © processo interno romance seria um caminhar do individuo problematic para o autoconhecimento. Se esse \dividuo alcancaré a felicidade ou ser4 aniquilado, nao € tio importante. O que fica do romance a caminhada do protagonista pelo mundo, e o mundo fazendo com que o protagonista aprenda ais ¢ mais no sobre o mundo, mas sobre si mesmo. Lukics diz que “o romance € 2 epopéia de mundo sem deuses” (LUKACS, 1963, p. 100), isto é, é a literatura possfvel numa sociedade ¢ nfo tem mais certeza de que forcas superiores e sibias guiam constantemente os passos dos res humanos. 143 oT) corre LITERARIA O trabalho de Lukécs influenciou outros pensadores importantes, como Lucien Goldmann, que, na Sociologia do romance (1967), estudou a histéria do romance enquanto género literério, fazendo uma relagio entre a parte formal de um romance e a estrutura do meio social no qual esse romance foi produzido, Segundo Goldmann, o pensamento coletivo € a criacio artistica tm uma homologia de estrutura, uma semelhanga na forma, ¢ nio uma identidade de contetido. No prélogo do sew. livro, Goldmann comenta muito bem a teoria de Lukécs: © romance seria uma busca degradada de valores auténticos, feita pelo heréi problemdtico num mundo degradado ou inautntico, ou seja, num mundo onde esses valores nao sio mais possiveis. Esses valores auténticos, para Goldmann (1967), nio sio os valores que o leitor considera verdadeiros, mas sim os valores que, mesmo nia aparecendo de forma explicita no texto, organizam o universo criado no romance. Para exemplificar, utilizaremos 0 Bentinho de Dom Casmurro. O menino Bento tem a vida pautada por alguns valores: o amor por Capitu, a conveniéncia de ser 0 tinico herdeiro de uma bela fortuna, a necessidade de nio contrariar frontalmente as exigencias de quem detém o poder (no caso, sua mie). Bento leva anos para construir uma vida organizada de acordo com esses valores, mas, apés desfrutar certa felicidade durante alguns anos, descobre — ou pensa que descobriu ~ que o amor nio existia, seria apenas uma ilusio. Por causa disso, torna-se amargo, rancoroso e desagradavel, isolando-se dos amigos ¢ vendo sua vida se esvaziar e tornar-se uma aparéncia sem sentido. O mais interessante na construcdo desse texto nao € permitir ao leitor descobrir se Capitu traiu ou nfo o marido; afinal, Bentinho cra extremamente ciumento, e a maledicéncia de José Dias ja havia insinuado, quando Bento ¢ Capitu eram jovenzinhos, que o interesse da menina seria casar-se com um herdeito rico. Segundo essa visio, torna-se implicita a conclusao de que o amor verdadeiro € impossivel num mundo capitalista, onde a posse dos bens materiais determina o valor de cada individuo. Mesmo que Capitu fosse inocente, a sociedade em que ela vivia a faria parecer culpada na primeira oportunidade, e 0 préprio amor que Bentinho dizia sentir por Capitu revelaria sua outra face: um sentimento egofsta de posse, que nio perdoa a ofensa feita a0 orgulho do dono, e que chega a ponto de desejar apaixonadamente a morte de uma crianca inocente, Ezequiel, porque Bentinho julga que ele nao seja seu filho, mas sim de Capitu com Escobar. Que amor era esse? Ao contririo da busca nobre, feita as claras, pelo her6i da tragédia grega, Bentinho pensa que buscow a felicidade a vida inteira, mas na verdade buscou a afirmacio do seu poder de homem rico — isso 0 conduziu a infelicidade e a solidio mais extrema. LUKACS: A passagem do género épico para o género romance é, também, a passagem do mundo grego, do equilfbrio entre Homem ¢ Mundo, ordenado pelo Destino, para o desequilibrio entre Homem e Mundo, ctiando 0 Individuo, solitério e cheio de conilitos. LUKACS / GOLDMANN: © heréi do romance é um heréi problemitico, procurando valores auténticos num mundo degradado. Quadro 1. © her6i segundo Lukacs e Goldman, BAKHTIN: DIALOGISMO E POLIFONIA, Mikhail Bakhtin (1895-1975) teve uma contribuicio importantissima para a critica literdria. Dois de seus conceitos sio a base para o trabalho de muitos outros criticos: o dialogisino e a carnavalizagao. Também aparece adiante 0 conceito de cronétopo. Utilizaremos inicial maitscula em “Dislogo” e “Dialogar” quando nos referitmos ao sentido criado por Bakhtin, ¢ inicial miniscula quando utilizarmos o sentido tradicional das mesmas palavras. © dialogismo parte do princfpio lingiifstico segundo 0 qual todo ato de linguagem sempre leva em conta a presenca, ainda que invisivel, de alguém para quem se fala ou escreve. Ora, se tudo 0 que se diz ou escreve é criado tendo em vista, ainda que subconscientemente, um interlocutor, entio todo ato de linguagem participa, mesmo que num grau pequeno, da intengo de convencer, de persuadir o ouvinte/leitor; e também prevé, ou imagina prever, a(s) possivellis) reacio(6es) desse ouvinte/leitor. Isso constituiria um diflogo, pois o ato de linguagem jé traria embutido em si proprio 144 uma cadeia de respostas, criticas e comentérios do interlocutor, e jf tentaria responder a essa a antes de ela ser enunciada, Bakhtin (1984) diz que, se esquecermos essa relagio dial6gica, o ificado do ato de linguagem desaparece, pois todo significado depende de uma relacio entre emite ¢ quem recebe. Assim, nao so apenas as personagens de um livro que interagem logam) entre si, mas, quando uma pessoa é um livro, est interagindo (dialogando) com esse . O autor, ao escrever, imaginaria as possiveis criticas do leitor, ¢ ja escreveria tentando rebater s criticas. Para veicular suas idéias e opinides, a personagem possui uma voz. E essa voz no é apenas ligada ressiio das idéias e valores daquele individuo; ela expressa valores ¢ idéias necessariamente dos a uma instituigio social. Tal afirmacdo encontra justificativa no conceito lingiiistico de surso que, segundo Benveniste (REIS; LOPES, 1994, p. 110), € o “enunciado considerado em Ingio das suas condigdes de producio”, ou seja, aquilo que o falante enuncia fara sentido apenas se nsiderarmos todo 0 contextto no qual esse falante se encontra. Assim, a voz, tal como a entende Bakhtin (1984), expressa vis6es de mundo que terio sido ircosamente tiradas do contexto sécio-histérico no qual cla se inscreve. Tais visées nio sio ividuais, 0 individuo toma conhecimento delas, aceita-as ou nao, através do contato com as tituigdes, como a familia, a escola, etc. Isso implica no fato de o Diélogo no acontecer apenas nivel pessoal, entre leitor e obra; ele também acontece num plano mais amplo, onde o leitor como representante de certas instituig6es, com suas maneiras especificas de ver 0 mundo, ¢ loga com a mundivisio (ou as mundivisdes) representada(s) na obra. Bakhtin (1984), ao estudar autores russos como Tolstoi ¢ Dostoievsky, concluiu que certos itores (ele usa Tolstoi como exemple) sio monolégicos (ou “Newtonianos”), ou seja, constroem ances Nos quais todas as personagens e acontecimentos reforcam o ponto de vista do narrador, modo que todas as contradig6es, brigas, opinides diferentes, etc., parecem apenas estégios rentes de uma evolucio, do ponto de vista do narrador. Convém reiterar que um narrador pode personagem ativa no livro (narrador homodiegético ou autodiegético, antigamente chamado “em ira pessoa”); ou pode ser uma voz “sem corpo” (narrador heterodiegético, antigamente ado “em terceira pessoa”), mas existe sempre; ¢ que 0 narrador nfo coincide com o autor do , portanto nao se deve confundir autor com narrador. Logo, um autor monol6gico seria um criador de romances, os quais, do ponto de vista Igico, apresentam ao leitor um bloco macigo de idéias, sem brechas que permitam tionamento, ou seja, nfo levam o leitor a duvidar das idéias que orientam as opinides do dor, em geral veiculadas como “verdade”. Um exemplo simples: assista a um filme iticamente correto como “Danga com lobos”, de Kevin Costner. Nele, os homens brancos sio maus, corruptos, sAdicos etc.; os tinicos que se salvam sio os que aprendem os valores da ira dos indios americanos. Os fndios sio bons, nobres, generosos, honestos, sem nenhum tipo feito moral. Ou seja: tudo na cultura do branco é mau, porque destréi a natureza ¢ a alma; ¢ a ra do indio € perfeita. A personagem principal é uma das poucas que abandonam os valores do 20, adotando os valores do indio. Como a narrativa cinematogréfica procura acompanhar a i6ria desse protagonista, a voz do filme est4 sempre reiterando ao espectador a “verdade” que ja transmitir. Tomando a seqiiéncia em que o protagonista encontra 0 lobo, observemos que, into o homem olha o animal do ponto de vista do branco, a fera parece ameacadora e inimiga; ez de maté-la imediatamente, 0 homem prefere obscrvé-la, vé-la interagir com 0 ambiente; a daf, seu olhar se aproxima do olhar do fndio, respeitando a natureza. Imediatamente, o lobo se 1 décil e companheiro. Tal solucio, embora pouco verossfmil, encontra acolhida do espectador ie reitera, de forma exagerada, a idéia de que a cultura do nativo americano permite uma harmoniosa com a natureza. tanto, o filme ndo deixa espago 20 espectador para duvidar da sua “verdade”. Se o lobo, f0, atacasse o homem, ¢ este se visse na obrigagio de mati-lo para salvar a prOpria vida, haveria miflito entre a visio do branco e a visio do indio, pelo menos dentro da forma maniqueista ique o filme trata a ambas: se os brancos fossem mostrados justificando as préprias ages, nfio prazer cm fazer o mal, mas de forma légica e coerente, o espectador poderia continuar 145 (T)corra urteRaRra preferindo a cultura indigena, mas reconheceria a inevitabilidade do conflito entre nativos e brancos. Da forma como a acio € apresentada, porém, nio existe espaco para se ouvir a voz da cultura européia, a nao ser como rugido sédico e destruidor. Outro exemplo, desta vez na literatura, si0 os contos de Nelson Rodrigues, enfeixados em A vida como ela é. Tudo 0 que acontece nessas hist6rias tende a persuadir o leitor de que a classe média brasileira dos anos 1950-60 cra hip6crita, reprimida e obcecada com tudo aquilo que considerava “sujo”. Isso nfo quer dizer que Nelson Rodrigues nao seja um bom escritor. E apenas uma caracterfstica dessa obra. Se, no meio dos contos, surgissem personagens que representassem outras visdes de mundo, que nao sucumbissem 3 perversio criada pela repressio excessiva, que conseguissem lidar de forma saudével ¢ positiva com as préprias frustragGes, isso enfraqueceria 0 tom de dentincia da hipocrisia social que € tio marcante nesses textos. J 05 autores polifénicos so autores que, 20 colocarem falas na boca das personagens, criam a possibilidade de que clas discordem totalmente dos valores, visio de mundo e ideologia do narrador. A voz do narrador torna-se apenas uma entre muitas, ¢ 0 desafio desse tipo de autor é, como na’ mésica, harmonizar as vores diferentes num todo coerente. Para Bakhtin (1984), o her6i desse romance nio é um her6i que lida com fatos, mas sim um herdi da palavra. Exemplificando, assista a um filme como “Entrevista com o vampiro”, de Neil Jordan, no qual Louis encarna o vampiro que quer preservar seus antigos valores humanos, e Lestat o ridiculariza, afirmando que tudo o que era humano, inclusive as nogdes de Bem ¢ de Mal, deve ficar para tris. Quem esti com a razio? Nao tao simples decidir, mesmo sabendo que vampiros nao existem e, portanto, o “dilema” do filme é uma ficcio. E 0 filme termina sem indicar ao espectador qual dos dois estaria “certo”, porque afinal nao existe um “certo” ¢ um “errado”, mas apenas pontos de vista diferentes. Em Os sinos da agonia, Autran Dourado inicialmente centra a narrativa no mameluco Janudtio, mas depois se afasta gradualmente do rapaz, deslocando o foco narrativo para a histéria de Malvina e Gaspar. Estes iiltimos, ricos ¢ bem-nascidos, representam o mundo da aristocracia, seus valores, distorcidos ou nio, sua ideologia, Januério, filho bastardo, pertence a outro segmento social e vé a hist6ria desenrolar-se com outros olhos. Quem € 0 verdadeiro her6i do romance, Januério ou Gaspar? Responder a essa pergunta nao é importante, mas o fato de podermos fizé-la mostra que as duas possibilidades coexistem na narrativa, dependendo da posicao que o leitor assuma em relagio a interpretacio do texto. Se observarmos, parece haver um problema de nomenclatura: “mondlogo”, normalmente, se opoe a “didlogo”, nio a “polifonia”. Mas Bakhtin (1984) usa “monolégico” como oposto de “polifonico”, nao como oposto de “dialdgico”. Talvez fosse mais légico utilizar uma palavra como “monofénico” ou “unissono”. Observe que o Didlogo existe sempre que alguém fala ou escreve alguma coisa, mesmo se 0 escrito for o que Bakhtin chama de monolégico, isto é mesmo que exprima uma tinica “verdade”. Mas a polifonia existe dentro do texto quando o texto, além de Dialogar com 0 leitor, que esti fora do livro, traz dentro de si varias maneiras diferentes de pensar, Dialogando internamente. Para Bakhtin (1984), o conhecimento deve ser dial6gico e polifénico, aberto para as contradicoes € para receber criticas as proprias limitagSes, e nio monol6gico, fechado, incapaz de ver outros lados de cada questio. BAKHTIN: A CARNAVALIZACAO. Outro conceito fundamental em Bakhtin € o de carnavalizacio. Investiga ele a cultura popular, especialmente nas épocas medieval ¢ renascentista, ¢ conclui que, juntamente com a chamada “alta cultura” (autores consagrados, assuntos “sérios” etc.), ha uma corrente que vem desde a antigiiidade clissica, dos didlogos de Sécrates, ¢ passa pela sitira de Menipo que, segundo Bakhtin (SCHNAIDERMAN, 1983), € “o gnero por exceléncia da mistura do simbolismo elevado, das reflexSes sobre as questdes tiltimas ¢ do naturalismo mais grosseiro”), pelos livros de Apuleio, chega a Boécio € 4s pecas medievais; passa por Boccaccio e Rabelais, chega 3s comédias de Shakespeare, Cervantes, Voltaire, Balzac e Hugo. Essa corrente tem como caracteristica o fato de que a tradigio, nelas, é virada pelo avesso. A literatura dessa corrente € joco-sétia, satirica, dialégica, pois 0 avesso 146 i i i ie ——0€7) erirrea socrotocica pressupSe o direito, ou seja, para invertermos uma série de valores, primeiro € preciso reconhecer que essa série existe. Postular o oposto dela significa, portant, criar uma voz que apregoa esse ‘oposto e que dialoga com a voz que prega os valores iniciais, os “do lado direito”. Na carnavalizacio ha uma inversio dos valores da vida cotidiana, numa espécie de libertagao coletiva, ¢ 0 poder € ridicularizado, vitima de uma espécie de “vinganca” por parte do povo. Vejamos, por exemplo, a figura do Rei Momo: em vez do rei terrfvel, temfvel, que explora 0 povo com impostos ¢ faz a guerra, € um rei obeso e simpético, que s6 deseja comer, beber, dangar ¢ fazer amor. A carnavalizagio, na literatura, propde uma outra ordem do mundo, totalmente diferente daquela qual estamos acostumados, mostrando, através do exemplo, que essa ordem nao é natural nem absoluta, mas apenas uma convencio, e que pode ser mudada. ‘A camavalizaco, entio, acontece quando um texto literério, de alguma forma, apresenta o chamado “mundo as avessas”, ou seja, uma inversio critica c/ou satirica das formas tradicionais do. poder estabelecido e da organizagio sociopolitica da sociedade. Um bom exemplo disso sio As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Talvez muitos leitores s6 conhegam a primeira parte da obra, que narra a viagem 3 Lilliput, terra de homens mintisculos, mas a obra fala de quatro viagens: a segunda teria sido até ‘um reino de gigantes, a terceira 4 Laputa, uma ilha onde o governo e a vida aconteciam dentro de uma Durocracia ridicula e intolervel, ¢, finalmente, a viagem ao reino dos Houyhmhnms, que eram cavalos inteligentes, vivendo numa sociedade perfeita, honesta ¢ tolerante; € os humanos daquelas terras eram irracionais, viviam como animais. As quatro sociedades descritas nas viagens, na verdade, funcionam como uma espécie de metifora satirica da Inglaterra em que Swift viveu. Um exemplo brasileiro € Macunafna, onde logo de cara se pe de cabega para baixo © conceito tradicional de “heréi"; Macunaima € chamado de “her6i” 0 tempo todo, para deixar bem claro que ele no é um anti-heréi; mas € covarde, preguigoso, ardiloso, guloso, ltcurioso, engana os proprios irmaos ¢ freqiientemente € malsucedido em suas aventuras. Mério de Andrade nio estava simplesmente querendo escrever uma histéria de pfcaro (personagem tradicional na literatura européia, alguém de baixa condicio social, cujas aventuras ridiculas tém como objetivo fugir da fome, do frio, enfim, dos males da pobreza). Ele estava fazendo o leitor perceber que, para criar uma literatura tipicamente brasileira, era um bom comego carnavalizar, virar pelo avesso algumas das tradig6es literérias européias Na verdade, carnavalizagio e dialogismo nfo sio conceitos muito distantes. Através da carnavalizacio, a literatura nos mostra a Alteridade, que € todo e qualquer modo de pensar, sentir ¢ yer © mundo que nao seja exatamente igual a0 nosso. © “eu” se constréi exatamente numa relagio de oposigio/complementaridade com 0 Outro. Enxergar 0 ponto de vista do Outro é uma forma de Dislogo. Ao olharmos 0 Outro, primeiramente o achamos ridiculo, depois incompreensivel; se formos pacientes, acabamos por descobrir que também fazemos coisas ridfculas ¢ incompreensiveis no nosso dia-a-dia. © que é mais absurdo: uma casta de nobres que s6 pode ouvir o que Ihes dizem se levarem uma pancada nos ouvidos, dada por um fancionério subalterno, ou entrar num clevador cheio de pessoas que moram no mesmo prédio e todos fingirem estar s6s, nem sequer olhando uns para os outros, ou esbocando um cumprimento? O primeiro comportamento existe na ficgio de Swift; o segundo, acontece por vezes conosco. © primeiro salta aos olhos como absurdo; o segundo, nem sempre. Ao permitirmos o Diélogo com 0 Outro, acabamos por ver melhor a nés mesmos. BAKHTIN: 0 CRONOTOPO Bakhtin também tratou do conceito de cronétepo, que seria, por um lado, “a conectividade intrinseca das relacdes espaciais ¢ temporais que sio expressas artisticamente na literatura” (HOLQUIST, 1991, p. 109); nesse nivel, o crondtopo € um pouco abstrato. Ele € a idéia de que. dentro da literatura, nio se pode criar um tempo sem criar, simultaneamente, um espago, ¢ vice- ‘versa. Tomemos 0 poema do tipo “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, que ‘gem um espaco, representado pelo meio do camino. Mas esse caminho pode ser interpretado como tifora da vida, da mesma maneira que fez Dante na Divina comédia; entio, 0 espaco (caminh leixa de ser espaco para se tornar tempo vivido, Isso poderia constituir um problema: como é que, simplesmente, espaco torna-se tempo e vice-versa? Se aceitarmos © conceito de cronétopo, nla —odT)EORTA LITERARIA existe 0 problema: tempo e espaco ficam sendo duas faces da mesma moeda. © cronétopo, a0 pressupor uma relagio necessiria entre tempo e espaco, faz com que as duas maneiras de ler a expressio “no meio do caminho” funcionem logicamente de modo complementar. Quando se observa como a relacéo espaco/tempo foi criada dentro de um determinado texto, pode-se perceber que essa relagio espaco/tempo vai ser fundamental para mostrar que tipo de texto € esse. Como exemplo, Bakhtin (1984, p. 109) fala da estrutura do “romance de aventura e provagio” (adventure novel of ordeal): apés uma catéstrofe inicial (a noiva € raptada por piratas, por exemplo), 0 heréi passa por mil provac6es diferentes até reconquistar a felicidade. Hi intimeras variagdes das aventuras pelas quais o casal de apaixonados deve passar, mas 0 cronétopo desse tipo de romance tem um tempo “vazio” e um espaco “abstrato”, ou seja, nio importa quantas aventuras diferentes sejam vividas, 0 her6i ndo muda, no envelhece nem se torna mais sibio; € como se o tempo nao passasse. E 0 espago nio precisa ser definido: se os piratas fogem pelo mar, pode ser qualquer mar. As aventuras poderiam se passar em qualquer lugar. Comparemos isso com um romance do tipo Dom Casmurro: Bentinho muda ao longo dos anos. De menino inggnuo torna-se adolescente apaixonado, depois marido ciumento. Pouco a pouco, as experiéncias vividas tornam-no amargo, desiludido, cinico, frio: Casmurro. © espago da casa materna, cheia de agregados, onde se podiam escutar as conversas dos adultos, vai revelar a0 menino Bentinho 0 amor por Capitu trazer, logo no infcio do romance, as primeiras insinuagdes maldosas sobre 0 caréter da menina. © fato de Capitu morar na casa ao lado da de Bentinho, com o famoso muro que ora serve para separé-los, ora para uni-los (como quando Capitu escreve os nomes de ambos), ora para protegé-los, sendo vigiado 0 espago em que ambos se encontravam, também € importantissimo. Temos, portanto, um texto onde o tempo passa ¢ deixa marcas profundas nas personagens, e onde o espaco também é fundamental para determinar os acontecimentos.—* E como poderfamos descrever 0 espago em Dom Casimurro? Que tal “urbano, burgués e oitocentista”? Ora, “burgués” diz respeito a uma classe social que estd ligada a uma determinada 6poca. Seria inadequado dizer que o palicio de um rei grego de 4.500 a.C. 6 “burgués” pelo fato de o palicio ser hncuoso. E “oitocentista”, isto é, do século XIX, também esté mais ligado a idéia de tempo do que de espaco. Percebe-se, portanto, que o conceito de cronétopo € util, pois permite enxergar o quanto tempo e espago sio ligados no texto literario. Por outro lado, o cronétopo também poderia ser entendido como uma unidade da anilise narrative, uma figura de tempo/espaco tipica de certas tramas (plots) historicamente dadas, Nesse nivel, 0 cronétopo seria um tipo de estrutura recorrente, muito pouco diferente daquilo que 6s formalistas russos chamavam de mecanismo (device) (BAKHTIN, 1984, p. 110). Nessa maneira mais limitada de entender o conceito, o cronétopo seria uma espécie de matriz, uma forma mais ou menos padronizada, que teria um niimero determinado de variagdes possiveis ¢ seria aplicével, na qualidade de estrutura, a qualquer texto narrativo. Isso se aproxima daqueles conceitos dos formalistas russos (veja Capitulo 4), que tentavam criar descrigées de todos os tipos possiveis de estrutura do texto, mostrando que todo texto obedece a um padrio estrutural predeterminado, € que as inovac6es devem levar em conta a estrutura padrdo que caracteriza 0 género literario e sua hist6ria. O tipo de cronétopo do género romance seria, ento, totalmente diferente do da poesia épica. E um texto nunca teria um Gnico cronétopo, mas vérios. Partindo disso, Bakhtin escreveu um texto, publicado em 1973, que € uma tentativa de classificar uma série de cronstopos que tenderiam a repetir-se em culturas diferentes (0 da Estrada, 0 do Julgamento, o da Cidadezinha Provinciana etc.). Mas essa classificagio € objeto de estudos e polémicas. Dialogismo. Todo ato de linguagem € um dislogo, pois leva em conta um receptor, ainda que apenas imaginirio, ¢ suas possiveis reagoes Carnavalizacdo, “Mundo 3s avessas”, recurso de origem popular que, ao apresentar para o leitor uma ordem social invertida, fiz com que ele reflita sobre a ordem social que conhece no mundo real. Cronétopo. Conjunto de relagdes necessirias entre o espaco ¢ o tempo na obra de arte literdria. Quadro 2, Conceitos bakhtinianos, 148 07) critica socro.oarca ANTONIO CANDIDO: CRITICA SOCIOLOGICA E CRITICA LITERARIA No preficio de Literatura e sociedade, Antonio Candido (1985) explica que a critica sociolégica deve mostrar os elementos sociais como constituintes da estrutura, ¢ no da superficie, do texto. Parafraseamos aqui o exemplo escolhido por ele: no romance Senhora, José de Alencar mostra dimensdes sociais evidentes: uma referéncia a um lugar, uma moda no vestir, um costume qualquer. Isso € 6bvio € nao constitui atividade critica ‘Além dessas dimensGes evidentes, o tema do livro € um tema social: a compra de um marido. Nortar isso e emxergar como o romance desmascara uma situacio social que era rotineira na época, 0 casamento por dinheiro, jé € interessante, mas ainda nfo ¢ critica literdria, pois ainda nio fizemos a ponte entre a forma, a estrutura do livro e a temitica social. Dizer algo como “o casamento por | dinheiro nao era incomum no Brasil do século dezenove, vejam 0 caso de Senhora”, nao é fazer critica literdria: € fazer sociologia usando o texto para dar exemplo. Entio, ele pede que observemos a composigio de Senhora. © livro é, afirma Candido, uma “espécie de longa ¢ complicada transacio ~ com cenas de avango € recuo, didlogos construidos como presses ¢ concess6es” (CANDIDO, 1985, p. 6), cada lado, representado por um dos personagens, cedendo ¢ depois endurecendo, os dois protagonistas (Aurélia, a mulher-compradora, ¢ Seixas, 0 marido-comprado) obcecados pelo ato da compra. Essa transacio seria uma espécie de representagio literdtia do mecanismo de compra e venda. E como se, a0 organizar os capitulos, o autor estivesse tentando representar literariamente uma negociacio entre dois capitalistas. Isso funciona, dentro do livro, para mostrar que uma relagio que deveria basear-se em principios mais nobres (0 amor) torna-se degradada ¢ insuportavel, quando baseada no interesse econdmico, € © tinico resgate possivel dessa degradacio € a volta do principio nobre. Quando Seixas compra de volta sua liberdade ¢ Aurélia cai de joelhos aos pés do marido, declarando sua paixio, ambos reconciliam-se e o livro termina num final feliz. Esse terceiro momento ja € uma anilise que mostra como 0 tema social entrou na estrutura do romance, e é esse tipo de anilise que Candido (1985) privilegia, pois ela tem a questo estética € literdria como ponto principal e como objetivo. Ele também deixa claro que a critica socioldgica nao deve ser fechada; 0 critico deve levar em conta as possibilidades psicolégicas, religiosas, lingiifsticas ctc., que enriquecem a interpretacio do texto, A RELAGAO ENTRE OBRA E SOCIEDADE , Candido (1985) entende que a arte tanto ¢ influenciada pela sociedade quanto a influencia. A influéncia da sociedade na obra aparece tanto na superficie do texto (descrigéo de casas, roupas, habitos etc.) quanto na caracterizacio das personagens (sua psicologia, seus preconceitos, ambicdes etc.) ¢ na estrutura profunda do texto (como vimos em Lukées, 1963], que mostra que a sociedade grega clissica possufa um género literdrio caracteristico, a épica; ¢ que, quando a cultura ocidental chegou 3 Idade Média, esse género jf no correspondia ao modo de o homem medieval ver e sentir © mundo, ¢ foi transformado no romance). A influéncia da obra na sociedade acontece porque os individuos que Iéem 0 texto recebem dele certa influéncia que pode traduzir-se na prética, mudando alguma maneira o comportamento desses Ieitores. Essa influéncia vem de dentro do livro, endo lepende de o autor ter ou nio ter tido consciéncia c/ou intengio de produzir esse efeito. Candido (1985) também prope uma subdivisio possivel das obras literdrias em dois grupos: arte agregagio e arte de segregacio. A primeira scria um tipo de arte que se inspira “na experiéncia coletiva visa a meios comunicativos acessiveis” (CANDIDO, 1985, p. 23). Isso significa que essa arte quer ser mpreendida pelo maior ntimero possfvel de leitores, e toma cuidado para nao inovar demais, rincipalmente no campo formal, porque o leitor médio tende a nao gostar de novidades que n30 sjam superficiais Explicando: se um individuo, por exemplo, aprecia a leitura de romances “para mocinhas”, esse itor j4 espera encontrar elementos conhecidos numa trama repetida: 0 mocinho ¢ a mocinha, um ——m( TJ EORTA LITERARIA amor verdadeiro impedido por diferengas sociais, brigas familiares ou intrigas de rivais; desentendimentos, softimento e, ao final, a vitéria do sentimento nobre sobre as dificuldades. Na superficie, pode haver muitas variag6es: ora a mocinha é pobre eo mocinho rico, ora vice-versa, a acio se passa em Pernambuco ou em Katmandu, a mocinha pode engravidar e abortar num acidente ou permanecer virgem até o casamento etc. Mas se houver uma mudanga radical na ideologia (por exemplo, o mocinho casar com a mocinha no antepeniiltimo capitulo e o casamento se revelar um. desastre apesar do amor, terminando em divércio no dltimo capitulo, um ano depois), o leitor provavelmente vai rejeitar a obra. Se a linguagem da hist6ria for muito experimental, 0 leitor também vai encontrar obstéculos, considerando 0 texto “dificil”. A arte de segregacio € a arte que est4 preocupada em inovar o sistema simbélico. Por sistema simbélico, entenda-se todo um complexo de esquemas ¢ estruturas que jé estio incorporados 20 imaginério coletivo. E isso pode acontecer tanto na forma quanto no contedido. Um exemplo de contetido: um jovem mediocre acorda um belo dia transformado num inseto gigante. Nao se apavora, no grita, ndo procura uma explicagio. Sua familia, em vez de ficar histérica, trata de escondé-lo, trancando-o no quarto. Agem como se a transformacio fosse uma vergonha, um embarago, mas jamais se perguntam o que foi que houve. Depois de algum tempo, o inseto morre. A familia fica feliz ¢ aliviada. Nao ha a menor explicagio para os acontecimentos. Essa 6, resumidamente, a trama de A mefamorfose, de Franz Kafka. Ora, nas estruturas mais difundidas no imagindrio coletivo, quando uma personagem sofre uma transformagio mégica, procura imediatamente descobrir do que e por que foi vitima, ¢ reverter para a forma humana. Tal estrutura correspond, entre outras, 4 de alguns contos de fadas, onde a vitima do encantamento deseja, sobretudo, reverter para a forma humana. Toneladas de papel e tinta jé foram gastas para tentar “explicar” as reagdes de Gregor Samsa ¢ sua familia. Da mesma forma, j4 estamos acostumados com algumas maneiras de expresso © algumas estruturas textuais. Por isso € que tantos leitores pensam que Guimaries Rosa é “dificil”. Ainda hoje a sua linguagem € criativa, quando comparada a média. A “arte de segregacio” vai tentar quebrar as nossas expectativas de encontrar algo jé conhecido, apresentando novidades, ¢ isso logicamente faz com que ela tenha menos leitores, pelo menos até que os novos esquemas que cla propée comecem a ficar conhecidos € sejam absorvidos no nosso imaginério, no nosso sistema simbélico. A metamorfose, por mais chocante que seja, j4 foi consagrada. A relagao entre obra literdria e sociedade deve ser investigada na estrutura que compée o texto, no em sua superficie. A relagio é dialética, sociedade influenciando a obra, que por sua vez influencia a sociedade; num equilibrio dinamico. ‘As obras “de agregacao” procuram ficar dentro do sistema simbélico jé conhecido pela massa dos leitores Aobra “de segregacao” &a que deseja inovar, de algum modo, o sistema simbdlico de uma cultura. Quadro 3. Conceitos propostos por Candido (1985). PROBLEMAS DA CRITICA SOCIOLOGICA © proprio Candido aponta bem para o maior problema da critica sociolégica: € a tendéncia que alguns criticos, especialmente da linha marxista, adquirem de se prender demais aos aspectos sociol6gicos, tentando explicar a literatura no como também produto de uma sociedade, mas como apenas produto de uma sociedade, fechando os olhos para uma série de outras possibilidades de leitura, Assim, esse critico “viciado” em sociologia poderia ver-se incapaz de explicar fenémenos comuns na literatura. Por exemplo: para um critico que s6 se preocuina com os aspectos hist6ricos e sociais, os contos de fadas nio sio “boa” literatura, pois sio hist6rias de origem popular, comprometidas com uma época de Tepressio, a Idade Média, onde o senhor feudal tinha direito divino sobre todos e o servo nfo tinha direito nenhum. Por isso, a mensagem, repetida sempre nos contos de fadas, de que a crianca “virtuosa” (boa, obediente, paciente, accitando a tutela dos adultos, religiosa etc.) seria recompensada, era vista como apenas uma tentativa de passar adiante esscs valores de submissio. 150 ~of7) critsca soczoLdarca ‘Ora, como isso explicaria o permanente sucesso dos contos de fadas? O critico que imaginamos mio saberia responder ¢ talvez se limitasse a lamentar o fato. Bettelheim (1978), um psicanalista estudioso de literatura, notou que muitas das imagens marcantes dos contos de fada tradicionais sio imagens que falam ao inconsciente do ser humano, acalmando os medos bésicos da crianga (medo de morrer de fome, de ser abandonada, de nao ser amada etc.), garantindo-Ihe, de forma simbélica, {que essas ameacas podem ser enfrentadas e vencidas. Uma critica psicanalitica, portanto, respondcu uma pergunta que a critica sociol6gica nio teria sabido responder. Eis por que Candido (1985) declara que, embora seja vilido que 0 critic privilegie (8) pecto(s) da critica com 0(s) qual(is) mais se identifica, ele nio deve se fechar para outras déncias. FERENCIAS (TIN, M. Problems on Dostoevsky's poetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984. SERIS, P. La sociocritique. In: BERGEZ, D. (Org,) Introduction aus méthodes critiques pour Vanalyse litérare. is: Dunod, 1996, p. 121-153. STTELHEIM, B. Psicandlise dos contas de fada, Rio de Janciro: Paz e Terra, 1978. DIDO, A. Literatura e socedade. S. Paulo: Editora Nacional, 1985. LDMANN, L. Sociologia do romance. Rio: Paz e Terra, 1967. [OLQUIST, M. Dialogism: Bakhtin and his world. London/New York: Routledge, 1991. WUKACS, G. Teoria do romance. Tradugao Alfredo Margarido. Lisboa: Presenga, 1963. IS, C.; LOPES, A. M. Diciondrio de narratologia. Coimbra: Almedina, 1994. HNAIDERMAN, B. Turbilhdo e semente: ensaios sobre Dostoievski e Bakhtin. 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