A Casa de Vidro - Ivan Angelo

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Ivan Angelo ¢ ficcionista e jornalista. Nasceu em Barbacena (MG), em 1936. Publicou, entre outros, Duas faces (contos, 1961, com Silviano Santiago), A festa (romance, 1976 ~ Prémio Jabuti), A casa de vidro (contos, 1979), A face horrivel (contos, 1986 - Prémio da Associagao Paulista dos Criticos de Arte/APCA), ‘Amor? (novela, 1995 - Prémio Jabuti). Seus livros foram langados também nos Estados Unidos, Franca, Alemanha e Austria. Atuou no Correio de Minas e Didrio de Minas como colunista; no Jornal da Tarde (SP) como editor, editor-ex- ecutivo e secretério de redagdo. E colaborador da revista Veja Sao Paulo. IvAN ANGELO A Casa de Vidro~ “para remedio se fazia demonstragad de toda severidade contra quaesqueres revoltas delles, desde agoutes ao pee do Pelourinho & mais severa de enforcamentos ¢ esquar- tejamentos em praca publica, para terror e exemplo, con- forme declaravad as sentengas delles, q' se liad.” (EsTRVAM DE SAA PerpiGad — Memoria do achamento de hum ouro q' estava perdido.) fw protestos. Proibiram os protestos. E no lugar dos protestos nasceu o édio. Entao surgiu a Casa de Vidro, para acabar com aquele édio. A antiga casa de vidro é agora apenas 0 miolo do conjunto e foi constru- ida no lugar do prédio de alvenaria onde funcionava a central de policia. Usava-se ainda aquele vidro fabricado antes do Grande Avango, sem essa qualidade extraordindria de hoje, quando nem a transparéncia mesma se pode ver; sabe-se que h4 um vidro porque 0 vento nao passa pela lamina invisivel que separa, impede — e mostra. O Arquiteto iniciou a transforma com a¢ao rapida: placas de vidro tri- plex substitufam os muros de cimento da frente; (Como? Uma vitrina aqui? — passavam e pensavam os de fora.) logo substituiam os muros laterais; * Este conto, tratando, em linhas gerais, da violencia estatal transformada em funesto espetd- culo foi transcrito de ANGELO, Ivan. A casa de vidro: cinco histérias do Brasil [1979]. 3 ed., revista pelo autor. Sao Paulo: Geragao Editorial, 2002, pp. 129-162. 161 ContosCrudis (Nossa! Vai-se ver tudo! — pensavam, passavam.) depois tomavam vinte metros da fachada, fazendo aparecerem as pri- meiras salas devassadas. (O qué? — pasmavam.) Durante um més a obra parou. Os de fora perguntavam-se se ja estaria concluida a reforma, olhando disfarcadamente sem ousar parar e sem virar muito a cabega para 14; os de dentro trabalhavam com certo constrangimen- to, ficavam mais na parte de alvenaria, procurando nao chamar a atengao. Os servicos expostos eram os de comunica¢es, escuta telefonica, ficharios, administragao, almoxarifado. Pareceria uma reparticao ptiblica burocratica se nao houvesse, bem visivel na lateral esquerda, a casa das armas. Ainda se mantinham sentinelas com metralhadoras, apesar de os vidros serem a pro- va de bala. Naquele més 0 Setor de Informagées investigou minuciosamente vizi- nhos, uns e outros, esse ¢ aquele, passantes, pensantes, 0 diabo. Os Chefes achavam a idéia do vidro engenhosa, a teoria brilhante, mas hesitavam. O Experimentador, com a impaciéncia dos iluminados, argumentava com da- dos, fotos, filmes, fitas, relatorios, e defendia a passagem imediata a segunda fase do PGP, Programa Gradual de Pacificacao. Ligou 0 gravador: “Nao estou escutando nada com essa obra aqui em frente. Fala mais alto.” “Th, minha filha, é prédio que vao fazer af?” “Nao, nao sei. Estao reformando a Central, botando umas vitrinas, nao sei.” “Vitrina pra qué?” “Sei la. E coisa deles, acha que cu vou perguntar?” “E. Melhor nao se meter.” (Ruido.) “Estao fazendo o que ai?” “Nao sei, viu. Passo aqui todo dia e ainda nao entendi essa de vidro.” “Acho que é pra mostrar que eles trabalham, sera nao? Propaganda.” (Rufdo.) “O pessoal fala.” “Nao fica olhando assim, 6 cara. Dizem que eles estao fotografando as pessoas.” “E dai? Tou fazendo nada, so olhando. Que sera isso ai, hem?” O Experimentador desligou 0 gravador: 162 — Temos um més de observagées, tudo gravado, analisado. Nao ha um indicio de risco, nem um em um més, Uma idéia nova sobre 0 comporta- mento humano esta nascendo aqui e os senhores Chefes hesitam? Autorizaram 0 passo seguinte: projeto arquiteténico de amplia¢ao hori- zontal das instalacdes, prevendo-se desapropria¢ao das casas vizinhas, dois, trés quarteirdes; conclusao da primeira cela de vidro e realizagao da experi- éncia piloto, com um homem, bem escolhido. Exibiu-se o primeiro preso, um homem preto, perplexo, de roupas simples, olhos inquietos. Provavelmente estava l4 para dentro antes; mancava um pouco, era décil, obediente e assustado. Olhos discretos observaram o dia do preso. O preso acordou cedo, pouco antes das seis horas. Sentou-se na cama, com as maos entre as pernas. (Estar com frio?) Ficou olhando as pessoas que passavam, do outro lado do vidro, do outro lado do patio lateral, do outro lado do vidro que substituiu o muro. As vezes esfregava as maos, aper- tadas entre as pernas. Balangava-se um pouco, para a frente e para tras, em- balando uma crian¢a, como que. Levantou-se e bateu na porta. Esperou. Sentou-se novamente, com os bragos apertados sobre o peito. (Deve ser 0 frio.) Ficou olhando através do vidro, bocejou longamente, juntando mais os ombros, apertando mais os bracos. Comegou a sacudir as pernas, cada vez mais depressa. Levantou-se. Agitava-se numa espécie de danga amarra- da, sem tirar os pés do lugar. Bateu na porta novamente. Esperou andando meio sacudindo-se. Abriram a porta, saiu. Voltou e ficou sentado olhando as pessoas da rua. Levantou-se, ficou em pé, concentrou-se, abriu os bragos, comegou a fazer ginastica. Parou, bragos abertos, intimidado por um ho- mem que 0 olhava do passeio. Abaixou os bra¢os, sentou-se. Ficou de cabe- ¢a baixa, balangando, embalando-se. Abriram a porta, veio pao e algum liquido na caneca de flandres. O homem comeu, muito devagar. Deitou-se e ficou imovel, umas quatro horas. (Deve ter dormido. Vidao.) Acordou de um pulo, protegendo a cabega com os bragos; percebeu que estava sozinho, exposto, € sentou com as maos entre as pernas, cabeca baixa. Um leve tre- mor agitava seus ombros e assim ficou longos minutos. (Estar chorando?) Deitou-se novamente de lado, joelhos quase no peito. Pequenos tremores agitavam seu corpo de vez em quando. Cada respiragao fixava na parede de vidro uma arredondada mancha de fugaz vapor, que antes de desaparecer crescia com nova respiracao. A mao do homem comegou a tragar pequenos 163 ContosCrudis riscos no vidro embagado. Mais objetiva, fez uma estrela de cinco pontas num risco sé. Outra estrela, outra estrela. Mudou literalmente de posi¢ao, expirou forte com a boca em cone. Outra estrela, outras estrelas. Parou, olhou 0s lados ¢ fez um sinal para os passantes, pessoas 0 olhavam discreta- mente, algumas até de éculos escuros, vizinhos que olhavam pelas frestas das janelas. Uma senhora parou. Ele se levantou, expirou forte no vidro ¢ comegou a escrever um numero. Antes de terminar tinha de soprar de novo porque o numero ia sumindo com a evaporacao. A senhora ficou nervosa com a agitacao do rapaz, sem entender direito o que ele queria. Afobado, ele espelhou uns ntimeros e se esqueceu de espelhar os outros, formando um conjunto incompreensivel de nameros de cabe¢a para baixo, outros espe- Ihados, outros que se liam corretamente, e apagando-se, superpondo-se. A senhora foi embora falando sozinha, balangando a cabega. O rapaz ficou desenhando no vapor do vidro, treinando. Nao conseguia formar um nui- mero completo. (De telefone, com certeza.) Sentou-se. Colocou 0 rosto en- tre as maos e ficou olhando, vidrado, sem ver. Abriram a porta, um homem apareceu e falou. O rapaz encolheu-se, falou, o homem falou com gestos de ameaga, 0 rapaz encolheu-se mais. O homem entrou, 0 rapaz virou-se rapi- do chutando 0 vidro, nada aconteceu, o homem riu, falou, apontou para as pessoas da rua, segurou 0 braco do rapaz com firmeza e 0 levou. A cela ficou vazia o dia inteiro. Quase a noitinha dois homens o trouxeram, segurando debaixo dos bracos, e o deitaram na cama. Acenderam a luz. Ele ficou quieto sem se mover. Trouxeram comida num prato de aluminio e uma caneca de flandres. Ele nao se moveu. Deixaram o prato e a caneca no chao, perto da cabeceira da cama. Ele nao se moveu nem para cobrir os olhos com as maos. Tarde da noite trouxeram um cobertor. De manha ele nao estava mais l4. O Experimentador ligou o gravador: “Olha ld, ’a la o homem.” “Nao olha assim, eles podem nao gostar.” “Entao pra que que botaram ele ai, na frente de todo mundo?” “E eu sei? Sai dai.” “Nao entendi. Essa eu nao entendi.” (Ruido.) “Passar cu passo, nao tem o menor problema. O que eu queria — olha la, aquele é que é 0 preso.” 164 Rinaldo de Fernandes “Que sera que ele fez, hem?” “Quem é que vai saber.” “A gente nunca fica sabendo de nada, nao é? Escuta: a gente vai mesmo a Santos nesse domingo?” (Ruido.) “Mae. Vem ver, mae. Maié, entrou um cara, um outro cara.” “Quedé? Deixa ver.” “a ld. Que que é aquilo na mao dele? Um caneco, nao é?” “E eu vou enxergar se vocé nao enxerga?” “£ um caneco sim. Um caneco e um pao.” “Coitadinho do mogo.” “Coitadinho o qué, mae? A senhora conhece ele?” “Nao levanta assim a cortina, menino.” “A senhora sabe la 0 que foi que ele fez?” “Eu penso é na mae deles.” “O, 0 homem foi embora? “A fome dele, tadinho.” “Tadinho o qué, mae. Nem conhece o cara.” “Té bom, té bom. Vou arrumar minha casa que é melhor. E cuidado com essa cortina, 0 que que eles vao pensar.” “P6, mae.” (Ruido.) “Se é um ntiimero que ele quer passar por que nao faz com os dedos?” “Acho que ai o pessoal nao para pra ver. Da muito na vista.” “Na vista. Mais na vista do que isso?” “Ah, o pessoal tem medo. Ninguém fica batendo papo de sinal com um cara desses na frente da Central. Sabe 1a?” “Qual é 0 problema?” “Entao vai la vocé e faz.” “Bu nao, nao gosto de crioulo.” (Ruido.) “£ igual crianga: tirou da mae, chora mesmo. Amanha eu passo ai pra fazer as vacinas.” Shar “Eo preso ai?” 165 ContosCrudis “Ta la. Num bagaco que dé até pena.” “Que que ele &? Ladrao?” “Boa coisa nao é.” “E, eles nado vao mexer com quem ta quieto.” “Porra, mas o cara ta num baga¢o.” “Fazer 0 qué? Ninguém 6 mocinho de cinema.” (Ruido.) “Nao da mais pra ver tevé. Filmezinho de merda.” “Vocé jd deitou?” “Pijama de 1a e dois cobertores.” “Nao topa sair pra um vinho, uma coisa assim?” “Ah, nao da. Com esse frio nao da. Escuta: ¢ o cara la, o preso?” “Eu cheguei | pelas — cheguei meio tarde hoje, ele ja tava deitado. Eles deixam a luz acesa, nao sei pra qué. Acho que é€ pra ver de longe 0 que que 0 cara té aprontando. Mas aquele ali acho que nao vai aprontar nada tao cedo. Eles levaram comida, cobertor — ontem ele dormiu sem cobertor. Mas 0 cara nao levantou nao. Ta la, nem comer nao comeu.” “Qual é essa de deixar um preso assim, sem explicar nada, hem? Parece coisa da colénia, pelourinho.” “Vai ver a idéia é essa mesmo, pelourinho. Ai tem sentido.” “Cuidado. O pessoal daqui diz que eles estao escutando as conversas.” “Papo furado. Isso € coisa de cinema. Nao temos tecnologia pra isso nao.” “Vai nessa.” “E se escutar 0 que é que tem? Nao devo nada” “Até provar, jé se fodeu.” “A gente é que tem que provar?” “Vocé vai sair mesmo com esse frio?” “Ninguém topa. Ver sea tevé melhora. Da uma olhadinha no cara e ama- nha me conta.” “Ta. Ciao.” (Ruido.) “Nao. Nao faz assim!” “Por qué?” “Tem gente la, olha 14” “Onde?” 166 Rinaldo de Fernandes “La dentro, olha ld, na casa de vidro” “O cara ta dormindo, bem.” “ao sentinela.” “Ta longe, bem.” “Nao, ndo quero. Vamos pra la, pra outra rua.” “Sua mae vai chamar.” “Deixa.” O Experimentador desligou 0 gravador: — Isso, naturalmente, ¢ uma selegdo do material. A transcrigao completa os senhores Chefes tém ai no relat6rio. Nao ha nada, nada, nada. O mais inte- ressante repete o que acabamos de ouvir. Podemos avangar mais um step, com toda seguranga. E a minha opiniao e o meu pedido aos senhores, Chefes. Abriram mais dez celas de vidro. Transparéncia: vitral vivo vitriolo no vértice vertigem o ventre da filha vislumbres vitral decubito vara a vidragem viragem vértice vertigem volta voltagem ventriloquo informe vislumbres dos idos nos vidros e vividos Vinte e cinco pessoas imolaram-se em fogueiras de dio, cinco cortaram as veias e esvairam-se até a morte diante do muro de vidro, trés explodiram- se com dinamite contra os vidros, mais de cingiienta morreram tentando a escalada, em grupos ou sozinhos. Eles chegavam com seu galaozinho de ga- 16 ContosCrudis solina, urgentes de 6dio e determinagao, e logo se levantava entre as pessoas que estavam olhando os presos um clamor de nao! Initil: os que se queima- riam de édio vinham surdos e eram cegos ao horror: sentavam-se diante dos vidros, empapavam-se de gasolina ameagando os que se aproximassem, acendiam os fésforos e queimavam-se sem um grito. O primeiro de todos desenvolveu sua pantomima sem ninguém compreender o que ia acontecer, até a hora do fosforo e do nao! Os seguintes j4 vinham com gestos previsi- veis e terriveis. Mas nada parecia alterar o ritmo da casa de vidro: a chegada, 0 rodizio ¢ 0 quem sabe dos prisioneiros. Os que abririam as veias e deixa- riam escorrer seu sangue preto de ddio precisavam antes acorrentar-se a uma drvore da rua para impedir o socorro e entao gritavam assassinos, as- sassinos e cortavam-se rapidamente nos pulsos, nas pernas e na garganta. Ninguém na casa de vidro nunca se mexeu com esses acontecimentos; s6 quando um jovem molhou as maos no sangue horrivel de um suicida ¢ es- creveu “assassins” no muro de vidro surgiram rapidamente alguns homens que perseguiram, prenderam e arrastaram l4 para dentro. Os que se parti- riam com dinamite em mil pedacos de édio preferiam a madrugada, quan- do nao havia ninguém, ou quase, olhando os presos; corriam com os pavios acesos e um grito terrivel se ouvia na madrugada, antes da explosao. Quan- do as pessoas comecavam a passar, pela manhi, jé havia outros vidros no lugar e nao se achava quase nenhum despedago do édio. Os que tentavam escalar o muro de vidro morriam quando se ouvia o tatatatatatata da metra- tha altas horas da noite ou, mesmo de dia, quando uma stbita correria indi- cava que um louco de 6dio ou um grupo ia tentar alguma coisa; dos seus repentinos abrigos, ofegantes de pavor, os olheiros apenas ouviam 0 tatata- tatatata. Com o tempo e os insucessos os suicidios rarearam. Acabaram. O Experimentador: — Estava tudo previsto, como os senhores viram. E eles fizeram exata- mente o que esperavamos. Hoje podemos dizer com certeza que temos con- dices de estimular, dirigir ¢ extinguir comportamentos primdrios. Mas vamos afinar a corda. Os sinais sao de vit6ria total contra 0 Odio dentro de no maximo trés anos. Hoje estamos solicitando um passo audacioso e pego toda a vossa aten¢do para a minha argumentacao e o que vou ler a seguir. Este é um editorial de jornal que 0 Setor de Controle de Opiniao proibiu. Vou ler os trechos mais importantes. Ha-hum. “Os grupos mais reacionarios 168 da vasta e nado raro incompreensivel gama de interesses que caracterizam 0 Poder criaram agora uma nova barbaridade, no sentido etimolégico do ter- mo; criaram a prisdo vitrina, o shopping center da humilhacao, a sua mais recente € quem nos dera ultima agressao a Sociedade. Falamos em barbari- dade e nao foi sem inten¢ao: sé mesmo recuando aos tempos de Atila, ou dos vandalos, ou dos terriveis 4varos, que destrufram nas patas de seus cavalos 0 Santo Império do Oriente, encontraremos tanta iniqiiidade. Estaremos vi- vendo uma €poca semelhante aquela em que os proprietarios da terra, que ¢ram ao mesmo tempo os chefes do exército e condes do reinado, sé conse- guiam salvar da ruina total os camponeses ¢ as cidades, ameacados por hor- das barbaras do leste europeu, exercendo o terror do Estado, impedindo que os barbaros se fixassem? Sendo esses condes e o proprio rei barbaros, senho- res de povos barbaros que conseguiram organizar-se como um Estado — isto é, um conjunto de homens vivendo sobre um territorio e sob um conjunto de leis — eles adotavam na guerra os mesmos métodos de seus inimigos: 0 terror. Estamos, entao, voltando a esses tempos barbaros? E triste pensar que sim.” Salto um pedago muito verboso e ai vem o seguinte: “A tradigao do castigo exemplar em praga publica ¢ exibic¢ao do criminoso em pelourinho até a morte remonta aqueles tempos em que a humanidade lutava para criar © que veio a ser a Europa moderna. Era 0 unico meio de agir? Nao nos cabe julgar a Historia, mas dela retirar ligdes, a partir dela refletir. Era 0 tnico meio de agir? E triste pensar que sim; é humano e¢ cristo pensar que nao.” Salto mais um pedago e temos aqui: “Que Maquiavel — para avancar um pouco mais na Histéria — ter inspirado tal criagao? Que diabdlico cientista politico teré imaginado essa fantdstica prisdo de vidro, paragrafo que esca- pou ao genial pensador de O principe no capitulo dezessete, onde se discute se é melhor para o governante ser amado ou ser temido?” Os senhores Chefes me desculpem se estou me alongando, mas isso é proprio dos comentarios da Imprensa, esse apego a formulas do passado. Depois de umas tantas bo- bagens nessa ret6rica antiga, vem o final: “Cabe ao Poder, se algum respeito ainda resta ao povo deste Pais, explicar esse novo arbitrio. Que ele prove estar agindo com motivos humanistas e cristaos. Que ele prove estar agindo no interesse da Patria e da Familia.” Terminou. A primeira vista parece uma condenagao irrespondivel ao nosso Programa Gradual. Barbaros, arbitrarios, desumanos, maquiavélicos, Eu pergunto: onde é que esta a idéia substantiva 169 ContosCrusis: no meio desses adjetivos? Senhores Chefes: se precisassemos de uma oposi- ¢a0 que nos legitimasse, teriamos nds mesmos de escrever um editorial como esse, as escondidas! Diz ele: “agressao a sociedade”. Mas é uma agressao. E um ponto basico do projeto que essa agressao seja clara, nada dos antigos pordes, aquilo sim, um barbarismo. Depois ele fala do “terror do Estado”. Mas é isso mesmo. As velhas palavras, as velhas idéias liberais — nao serao os valores ‘ao orientar a sua destruicao, certo? A desse liberalismo corrompido que i guerra é uma pratica e o préprio jornal a justifica ao dizer que s6 com méto- dos barbaros foram salvos os camponeses e as cidades, talvez até a Europa moderna. No fundamental eles concordam conosco, sobre quem deve estar por cima e quem deve estar por baixo; sé nao querem é ver a agressao, tém pudor, estomago fraco. O editorial fala da luta da Humanidade para criar 0 que veio a ser a Europa moderna — ha aqui um rango de determinismo his- torico com que eu nao concordo, mas nao vem ao caso — e do pelourinho, e pergunta se era o tinico meio. Estao vendo? E o meio que incomoda, 0 méto- do, porque nao ¢ cristao e humano. Mas que cazzo de humano? Tudo que homem faz é humano. E cristo? Ora, a propria Igreja usou os métodos que usamos hoje e continuou crista. Quanto a Maquiavel, a comparacdo s6 nos envaidece. Para resumir, 0 que eu submeto a consideracao dos senhores Che- fes é 0 seguinte: nés queremos a verdade, ela é a principal idéia na implanta- a0 do PGP. E por isso que as paredes sao de vidro, porra! Perdao, perdao senhores Chefes. Eu... perdao. Bem, 0 que nés queremos € a liberagao de noticias e comentarios sobre a Casa de Vidro. Queremos que as sentinelas sejam abolidas. E queremos que ela abrigue a todos, nao s6 os ladrées, assas- sinos, trombadinhas, dissidentes, mas também os veados que usam navalha, as putas zangadas, os negros insubordinados. Ela deve ser conhecida por to- dos, ela deve ser a consciéncia de todos. O povo esta avido pela verdade, ele quer saber, ele quer ver. A Verdade, senhores Chefes, eu vos peco que espa- Them essa Verdade por todo o Pais, através da Imprensa. Retiraram as sentinelas, suspenderam a censura as criticas 4 Casa de Vi- dro e abriram as primeiras salas de depoimentos. ‘Transparéncias: vis6es triplexas 70 verso € anverso 0 olho desagua na coxa na concha no cocho das coxas reflexos de flechas na racha roxa do baixo coccix nas duas feridas no basso no brago e dai o complexo de lasso cabago na baga vidraca O Experimentador ligou 0 gravador: “Estou dizendo que eles nao se importam.” “Nao tem nada de ficar parado ai. Passa, vai olhando, nao precisa parar.” “Bobagem. Pra que o vidro? E pra olhar, porra.” “Nao quero nem saber. Nao vou parar aqui e pronto.” , porra. Ah, Marta, aqui nao. O que que vao pensar, com vocé chorando aqui? Vao pensar que vocé tem alguém ai dentro, porra. Vexame. “Entao vi Embora, embora, caralho.” (Ruido.) “Isso é todo dia. Eles acordam um cara das celas ali 6, aquelas la da direita, ¢ trazem para essa sala. Fica assim: uns gritam com 0 cara, outro escreve.” “Dao porrada?” “Bom, aqui ¢ moleza. Dao um aperto no cara, ai falam umas coisas, 0 cara fala, eles escrevem. Tem vez que eles levam o cara lA pra dentro e ai volta, as vezes nao volta; as vezes volta carregado pra cela e fica la deitado.” “Todo dia?” “Todo santo dia. Tem vez que é mais, tem vez que é menos. O preso che- ga de carro e fica la pra dentro, na parte que a gente nao vé. Um dia ele aparece nas celas de vidro. Nao é no mesmo dia que eles chegam que eles vao para as celas, porque tem vez que nao chega carro nenhum e mesmo assim aparece um cara novo. Até agora 0 que eu entendi foi isso.” m “Eles deixam olhar, assim?” “No comego a gente ficava meio sem saber. Depois, ninguém falou nada, fiquei olhando. Hoje tem até jornal que me pede entrevista pra explicar como é que funciona e tal.” “E ai: eles chegam, ficam la pra dentro, e depois?” “Bom, eu acho — ninguém me disse nao, hem — eu acho que | dentro €0 sigilo, o interrogatério. Quando eles ja sabem tudo € que colocam os presos ai nas celas de vidro e ai, nao €?, s6 chamam pra saber mais alguma coisa, pra escrever o que ja sabem. F isso.” “Quer dizer que la pra dentro deve ser pior?” “Ah, nao tem duvida.” “Eo senhor fica olhando isso ai pra qué?” Eu, quando era menino, gostava “Nao sei. Quero entender como € que é. de desmontar relégio e matar bicho pra ver como que era por dentro. Curio- sidade. Eu sou curioso.” (Ruido.) O Experimentador, entusiasmado: ‘iram que 6timo esse? (Ruido.) “Naturalmente eles querem nos provar alguma coisa. (— Esse é um pro- omo aquela fessor af de frente, disse o Experimentador sem desligar.) maquina diabolica da novela Na colénia penal, do Kafka. O que é que eles querem que a gente entenda — é preciso saber é isso, pra ver se essa maqui- na para. Na novela, o criminoso compreende vagarosamente o seu crime, a propor¢ao que as agulhas da maquina vao gravando nele sua culpa, e — morre até feliz, aliviado porque compreendeu. Para o Homo sapiens, o hor- rivel é nao compreender. £ 0 pior de tudo.” “Cai lé dentro, pra ver” “Nao tem perigo. Eu sou apenas um velho decadente.” (Ruido.) O Experimentador: — A propésito; é preciso tomar cuidado com certos artistas. Eles usam 0 mesmo método que nés, em que a perfeicao da forma perturba o publico e esconde os truques. Mas a emogao sem controle cientifico, 0 suspense, as idéias, transformam as pessoas em bombas de inquietagao, soltas por ai. me Rinaldo de Fernandes (Ruido.) “Sumiu tem uns seis dias. Jé procuramos por todo canto, hospitais, ne- crotério, todo lugar.” “Que coisa, gente. E falaram que ele esta ai?” “Eles nao falam. Vim ver se ele aparece no vidro.” “E dificil, eu sei como é que é. Tem vez que tiram eles da cela de vidro e nao trazem mais, tem vez que trazem no dia seguinte. Nao tem uma norma.” “Eu moro tao longe.” “Que que ele faz?” “E motorista de taxi. Ajuda muito em casa. E dificil vir aqui mais de uma vez por dia. $6 se ficar olhando o dia inteiro, nao € mesmo? Se a gen- te soubesse com certeza que ele té ai podia descansar um pouco, esperar. Perdendo trabalho, um problema, viu. Dois dias j4 que eu venho aqui ¢ nao vejo nada.” “© meu nao, o meu eu sei que té ai.” “Ja viu ele?” “Eu mesma nao. Mas um amigo dele viu e falou pro meu marido. Ta ai dentro.” “E certeza?” “E> “Que bom, hem?” “Bom nao é, né?” “Nao: a gente achar eles ja ¢ um alivio, isso que eu falei.” (Ruido.) “absurdo. Olha la. Tem trés horas que o homem esté ali sem poder abai- xar os bragos. Isso nao pode.” “Fazer 0 qué?” “Alguma coisa. Uma comissao, falar com os homens, reclamar no jornal.” “O jornal ja falou, nao mudou nada. Até veio mais gente olhar.” “Porra, olha 14, olha la. Isso é sacanagem.” “absurdo. Imagine se tem uma mae aqui vendo uma coisa dessas.” “E diz que l dentro é pior, hem.” “Sera possivel.” ContosCrucis “Eu li no jornal. Ai é sala de depoimento, moleza. Interrogatério é 14 pra dentro.” “Ainda bem.” “Ainda bem o qué?” “Bom, quer dizer. Nao, nao sei. Tem coisa que é melhor a gente nao ver. Sei la” “Posso falar?” “Légico.” “Seguinte. O senhor falou se tivesse uma mae aqui. Ontem teve uma.” “Puta merda. Té aqui hoje?” ’ “Levaram. Passou mal ai e levaram ela.” “Bles levaram?” “Nao, parente dela, acho. Ficou ai gritando meu filho, meu filho. Mas lé dentro dos vidros parece que nao se escuta nada, como a gente nao escuta nada deles aqui. Ai ela passou mal ¢ levaram. Uma pessoa falou que teve outra mulher que parece tinha um filho dela ai. Diz que ela jogou uma pe- dra ai no vidro.” “Quebrou?” “Nao quebra. Diz que nem bala rebenta isso ai.” “Ea mulher?” “Levaram la pra dentro” “Diz que la dentro escutam a gente sim.” “Ela ficou lA, ta la agora?” “Nao sei, me contaram.” “Diz que as vezes eles ligam a choradeira das maes para os presos ouvi- rem. Diz que é” (Ruido.) O Experimentador: — O importante é 0 seguinte: vemos que eles nado sabem o que fazer porque nao sabem de que se trata. O que eles querem é compreender. Eles sabem que nés temos um motivo e isso é bom sinal, étimo sinal. Os se- nhores Chefes verao nesse requerimento que agora encaminho a necessi- dade de dar um grande passo: derrubar as casas desapropriadas, aumentar para trezentos o numero de celas e construir um abrigo de vidro para os parentes dos presos. E uma idéia recente, acrescentada ao projeto original, 14 que serve perfeitamente ao Objetivo Final. Assim nds separamos os paren- tes dos simples olheiros, para que a emogao natural dos parentes nao os perturbe, nao atrapalhe a assimilagao. E vista através do vidro essa emo- ao até ajuda. Em trinta dias/noites fez-se 0 trabalho, com novos vidros, mais per- feitos, muito mais duros e transparentes. Ao longo dos dois patios late- rais do prédio principal, frente as celas, ficavam os abrigos dos parentes, estreitas faixas de vidro entre os olheiros e os presos. Os olheiros viam pais aflitos, maes perplexas, irmaos angustiados, namorados chorando, amigos solidarios percorrendo o grande corredor de vidro a procura de uma graca desgra¢a em continua e repetida pantomima, reprisada busca ambulatoria. Corriam varios para a mesma cela onde se acreditava que aparecera um novo preso, olhavam, procuravam e voltavam aos poucos a percorrer 0 estreito corredor acrescentados de uma pequena angustia pelo fracasso. Nao se sabia se eram orientados por algum sistema eletré- nico quando corriam todos para a frente da mesma cela; talvez algum deles mesmo avisasse que estavam abrindo uma porta, trazendo ou le- vando alguém; talvez algum pequeno sinal ja os houvesse condicionado as novidades do lado de la. As vezes 0 encontro se realizava: maos nos vidros de ca, maos nos vidros de la, quatro metros de separagao, nenhum som. Através dos vidros, socos nos vidros, gestos, algum preso mandava embora um desespai; as vezes mae e filho ficavam apenas olhando-se demoradamente, conformados. Na ala das mulheres, maes e filhas ti- nham medo de se olhar demoradamente, as duas talvez sabendo 0 que estavam as duas pensando. Transparéncias: a a forma informa a forga deforma o bago do olho 0 fio desfia © pai desespai 0 peito desfeito 0 fecho desfecho a filha desfolha a fila desfila a mama desmama © preso desprezo © torque retorce 0 lago desenlace O Experimentador desliga o gravador: 4 — Perfeito, nao é? E além do resumo de gravagdes temos hoje um novo editorial, com um tema que pode nos ajudar. E um trecho do final. Diz aqui o dono da revista: “Simao Bacamarte. Imagino se o nome deste sabio, cientista e humanista conspicuo, tera chegado aos vossos ouvidos em meio ao difuso alarido de nomes e datas dos cursos ginasiais. E uma historia dos tempos do Rei. O douto Bacamarte construiu um grande hospicio pintado de verde e encerrou nele os doidos varridos. Depois en- cerrou os maniacos recuperaveis. Depois, tentando delimitar a exata fronteira entre a loucura e a normalidade, encerrou também os excéntri- cos. Verificou entao que os presos eram maioria. E como, pela légica, a maioria deve ser a normalidade, o integro cientista soltou os presos € prendeu os soltos, isto é, prendeu o pequeno ntimero de pessoas teorica- mente sem defeitos. Curou-as, incutindo-lhes algumas anormalidades e por fim, reconhecendo-se 0 unico homem perfeito da cidade, encerrou-se para sempre na Casa Verde. Essa hist6ria, edificante para o momento, é uma das melhores do nosso excelente Machado de Assis. Entre perplexo e indignado, eu queria apenas recomendar aos responsaveis pela Casa de Vidro que poupem a Nagao tempo, dinheiro ¢ sofrimento com a terapia dos modernos loucos; que eles queimem algumas etapas e se encerrem irante a para todo o sempre na sua Casa de Orates.” Senhores Chefes: petulancia, para a qual encontraremos algum remédio, esse artigo con- tém uma idéia que nos convém aprofundar: onde comega a loucura. Ele antecipa um ponto que eu ja pretendia levar aos senhores Chefes sob a forma da seguinte pergunta: quem deve ser preso? Os métodos de traba- lho tém trazido, junto com os elementos que devem ser eliminados ou encerrados ou reeducados, um tipo de preso que nao é exatamente aque- 6 le que pretendiamos. £ alguém que pode saber de alguém, a mulher ou filha que usamos no interrogatério, alguém que conheceu alguém e nao sabemos se ainda conhece, algum parente ou amigo que pode saber algu- ma coisa — enfim, uma quantidade de gente de interesse tempordrio que nos tem causado problemas de superpopulacao na Casa de Vidro. Entao, eu pergunto: quem deve cer preso? $6 os loucos, of cem-limites? Lem- brem-se de Simao Bacamarte. Seria timidez, hesitacao, e nao podemos hesitar. Temos de mostrar que nao temos limites! Toda insubordinagao deve ser punida! E 0 professor que em vez de professorar esta duvidando, € 0 artista que em vez de pintar o Belo pinta o Feio, é 0 filésofo que em vez de pensar, fala; é 0 trabalhador que em vez de produzir, discute; é a dona-de-casa que usa a panela para fazer barulho em vez de comida, é 0 estudante que nao estuda — tudo que nao produz, que leva a duivida, a frustracao e a insubordinagao deve ser capado! Portanto, peco aos senho- res Chefes 0 seguinte: libertagdo dos presos desinteressantes e prisao dos inquietos. Os libertados divulgarao ainda mais a nossa experiéncia. E de- vemos comecar imediatamente a constru¢gao das cinco unidades previstas no projeto. Os outros estados ja estao reclamando. Entregaram uma noiva furada para um noivo sorrindo uma senhora sem um dente para dois filhos chorando um velho de muletas para um velho de barbas um mogo mancando para uma senhora gritando alegre um mogo sonambulo para uma senhora assustada uma moga de pernas abertas para um senhor de éculos escuros uma moga de seios queima- dos para ninguém esperando um moco de pernas incontrolaveis para 0 canto da calcada esperando alguém um homem de cabega baixa para ninguém esperando um homem de costela quebrada para uma familia sorrindo um homem de olhos assustados para uma senhora aliviada uma moga correndo para uma moga chorando uma menina para um médico um mogo andando devagarinho para o canto da cal¢ada espe- rando alguém um rapaz com os pulsos roxos para um homem severo uma moga correndo assustada para uma mie junto com um médico tentando alcangé-la um homem de barba queimada para trés mocos alegres um menino para uma mulher uma mulher gravida para um homem com dois meninos uma moga alegre para um mo¢go com um cachorro um homem de maca para uma ambulancia uma sombra para m ContosCrucis: a luz um mo¢o apoiando-se numa mulher de rosto queimado de cigar- ro para um casal de meia-idade junto com um senhor um padre para um arcebispo uma coisa para uma coisa um coisa para um coisa uns coisas para uns coisas. ‘Transparéncias: 0 choc do choque oaido pai a face desfaz-se o pa da pancada auva da vulva 0 oh do homem ohido himem a fila do falo a fala do falo o tim do timpano o nome da mae o au do pau orito do grito O Experimentador ligou o gravador: “Como € que elas fazem pra mijar, com tudo aberto?” “Umas ficam na frente, tapando.” “Vocé ja viu?” “A gente nao vé nada. Elas fecham tudo.” “Podiam deixar uma sozinha pra gente ver.” (Ruido.) “Tem uns dez dias que comegou a sair gente dai.” “Por que sera?” “O jornal diz que sao parentes. Os quentes mesmo ficam lé dentro.” “E esse ai?” “Uns cinco dias que tai esperando aparecer alguém pra levar ele.” “Machucado?” 178 “Parece. A gente fala pra ele levantar, ele fala que sozinho nao da. Quise- ram levar pra algum lugar, ele nao quis. A gente da comida pra ele e ele fica ai, quieto, esperando” “Quem sabe a gente avisa alguém.” “Ele diz que nao se lembra. Que o nome vem chegando na cabega, vem chegando e apaga.” “Por que nao levam pra um hospital, gente?” “Nao quer. Diz que se sair daqui ninguém acha ele mais. Que é aqui que vio procurar por ele um dia. De vez em quando alguém leva ele ao banheiro, depois traz de volta e ele senta ai, meio deitado.” “Eo nome dele?” “E isso que ele nao sabe. Vem na cabega dele e apaga antes de chegar na lingua.” “Esquecimento. Eu também tive um primo assim, que esquecia. Padeiro. De vez em quando perdia um forno inteiro, esquecido.” “Ea profissao dele?” “Diz que é torneiro mecanico. Acha que &” (Ruido.) “Ontem saiu uma moga linda. Puxava um pouco da perna, assim. Pode ser de nascenga, nao sei.” (Ruido.) O Experimentador: — Viram s6? Viram? Esta indo. (Ruido.) “Vam’bora, mae. Vamos saindo.” “Fala, meu filho. O meu Deus!” “Anda, mae, que coisa. Nao para ai.” “Fala, meu filho. Eu vou la, eu vou 1a!” “Fica quieta, mae. Nao faz escindalo. Vam’bora, que merda!” “Como é que foi isso, me fala.” “Eu cai, mae, s6 isso. Vamos. E fala baixo que tem gravador por ai tudo. Eles levam a gente de volta. Vamos sair daqui, depressa.” “Eu vou processar eles, isso eu vou.” “Embora, mae, senao a gente nao sai daqui mais.” “Eu processo eles.” 19 ContosCrucis “Que processo, mae. Vam’bora. O meu Deus!” “Eu vou, mas isso nao fica assim nao. Nao pode. Olha s6, meu Deus do céu. Que que foi, meu filho, ta passando mal?” “Me segura aqui. Aqui, mae. Ai. Vai, vai andando. Depressa.” “Todo mundo olhando, ninguém pra ajudar a gente. O que que essa gen- te vem olhar aqui?” “Deixa, mae. Fala baixo.” “Ele ta passando mal, nao estao vendo?” “Deixa, mae. Ta tudo certo. Caladinha, pelo amor de Deus, ta? Segura aqui, é sé isso que vocé tem que fazer.” (Ruido.) “Eu €a primeira vez. Vim do Nordeste, pra ver.” “L4 nao tem uma? Ouvi dizer que jd tem” “TA quase pronta. Mas nao vai ser nunca deste tamanho daqui.” “Tem parente ai?” “Deus me livre. La em casa é s6 gente boa” “De vez em quando eu venho. Assim num sabado, domingo, nao tendo nada pra fazer, venho dar uma espiada.” “Esquisito eles 14 dentro, a gente olhando aqui. “$6 no come¢o. Agora: que é uma beleza de prédio, isso é, hem?” “Joia.” (Rufdo.) “Eles comem ai, tudo ai?” “Tudo. Todas as celas tem privada e chuveiro. Quando vao usar a privada os outros fazem uma rodinha assim de costas pra pessoa, tapando pra gente nao ver. Principalmente as mulheres.” “£ sempre cheio assim?” “Sempre. Saiu muita gente, mas entrou muito mais.” “E aqui fora?” “Ah, sempre. Cheio.” “Porra, que loucura, hem?” “Depois que comegaram a falar na televisdo, no noticiério, vem mais gente. Sabado e domingo fica lotado.” “£ sempre um programa, né?” “Fazer o qué? E de graca. A gente gasta menos do que no aeroporto.” “Meus meninos vivem me pedindo pra ir.” “No aeroporto?” “p “Melhor. Pra menino é melhor.” “Levei nao. Um médico na televisao falou que faz mal pro ouvido.” “O qué?” “Aquele barulho, diz que faz mal.” “

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