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Jerome Murphy-O'Connor > PAULUS Edigdes Loyola “Titulo original Paul ~ His Story © Jerome Murphy-C’Connor, 2004 ISBN (-19-926653-0 Paul—Hlis Story was originally published in English in 2004. This transla by arrangements with Oxford University Press. For sale in Brazil only. jon is published Paul — His Story foi originalmente publicado em inglés em 2004. Esta tradugio & Publicada de acordo com a Oxford University Press. Para venda somente no Brasil. DIAGRAMACAG: So Wai Tam REVISAG: Renato da Rocha Paulus Rua Francisco Cruz, 229 4117-091 Sio Paulo, SP @ «an 5087-3700 @ ay 5579-3027 ww paulas.com, be editorial@ paulus,com.br Edigies Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga 04216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — (4218-970 ~ Sio Paulo, SP @ an 6914-1922 @ a 6163-4275 Home page ¢ vendas: wwwloyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Yendas: vendasc@loyola.com. br ‘Todos 8 diteitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reprocuzida au transmitida por qualquer forma eiou usisquer micios (eletSnica ou mecinico, mcluindo fotoedpia f gravee) ow arquivada em qualquer sistema ow banco de ddados sem. permissio escrita da Editora ISBN: 97B-B5-15-08329-4 © EDIGOES LOYOLA, Sio Paulo, Brasil, 2007 Sumario Prefacio a edicao brasileira Prefacio do autor ... 7 ‘| 0s primeiros anos 23 Galiléia 24 Tarso 25 A subida a Jerusalém 28 Uma cidade guarnecida na montanha 30 Um fariseu na Cidade Samtassnsnnnnnee 33 Paulo teria encontrado Jesus em Jerusalém? 37 O confronto com o cristianismo .... 38 2 Aconversao e suas CONSEQUENCIAS we 41 Reconhecendo o irreconhecivel .. 42 O conhecimento de Jesus por um fariseu 43 O encontro com o Senhor Ressuscitad¢ 44 Missao na Arabia 46 Trés anos em Damasco.. 47 Aprendendo a negociar. 49 Uma partida apressada.. 51 Pedro e Jesus... 52 Um messias que nao deveria ter morrido 54 3 Aprendizado em Antioquia A terceira cidade do império Uma comunidade mista .... Missées a partir de Antioquia .. Um viajante numa terra desconhecida. 4a VIAQEM Pala A EUPOAN casreseresserensrsvserenns Uma inesperada visita aos celtas Para 0 oeste € para a Europa... A primeira viagem maritima Parceria em Filipos . Estratégia missionaria Trabalho em Tessalomicasicscscscssessssssssssssssssssssess 5 Rumoao SUI, PAPA @ ACAIA scission Ansiedade em Atenas ... Corinto, a encruzilhada. Primicias da Acaia ... Correspondéncia com Problemas financeiros Uma data crucial... 6 Antioquia e Jerusalem .. Uma misstio desvinculada da Lei de Moisés Uma assembiéia em Jerusalém 0 conflito de Antioquia ... Adeus a Antioquia .. 7 Oprimeiro ano em Efeso Volta a Pessinunte. Efeso Crise na Galacia Uma estratégia sofisticada 8 O segundo ano em Efeso .. PHISAO sess A debilidade de um pastor. Problemas em Colossos.. Um pastor dando 0 melhor de si. Planos futuros .. oO 10 11 Tratativas com Corinto .. Noticias sobre a situagao de Corinto 1 Corintios Uma visita imprevista a Corinto A fiel Macedonia... Maceddnia e lliria.. Um plano de emergénci: O relatorio de Tito. Uma carta cuidadosamente composta.. Missiondrio na Iliria Mas noticias de Corinto Uma resposta indignada.... Adeus ao leste..... Planos para 0 futuro. Decisdes e taticas. Uma carta para Roma. Viagem a Jerusalém. Recepcao em Jerusalém Sob a custédia roman: OS UICIMOS ANOS ..erssesmeenrnenensnniesn Uma misséo na Espanha Retorno a lliri Macedonia e Asia. Problemas em Efeso Uma desastrosa viagem a ROMA -sssesessssesserere De novo numa priséo romana. Sentenga de morte... Epilogo Notas 1. Os primeiros anos 2. A conversdo e suas conseqiiéncia 3. Aprendizado em Antioquia........ 4. A viagem para a Europ: 5. Rumo ao sul, para a Acaia. 6. Antioquia e Jerusalém 7.0 primeiro ano em Efeso .. 175 176 179 184 187 189 189 191 195 201 203 204 209 210 213 215 220 227 229 233 233 235 237 238 240 242 247 249 255 256 Mapa 1 Mapa 2 Mapa 3. 8. O segundo ano em EfESO ssssssssssesessseen 9. Tratativas com Corinto .. 10. Macedonia e Iliria. 11. Adeus ao leste 12. Os ultimos anos Leituras sugeridas.. Indice remissivo Apéndice a edicao brasileira. Asia Menor no tempo de Paulo... A provincia romana da Macedonia ea Via Egnaci Corinto: as muralhas... 262 263 263 264 267 269 271 279 21 87 104 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. para distinguir Story de History. 0 prdprio livro dos Atos dos Apdstolos é uma Story que surpreende pelos desacordos histéricos quando comparado com as Cartas paulinas. Sem pretensao de fornecer um quadro completo, é possivel reunir al- gumas caracteristicas do que Murphy-O’Connor entende por Story: a) antes de tudo um relato informativo, instrutivo, edificante sobre o herdi, no caso, Paulo; b) com estilo atraente, frases simples, cenas pintadas em pinceladas vibrantes, expressdes fortes, fluéncia na linguagem e¢ encantamento para aprisionar o leitor; c) afirmagdes histéricas e teolégicas surpreendentes, contestadoras, desafiadoras, para provocar reacao do leitor € sua reflexéo posterior; d) narrativa limitada ao que o Autor considera essencial, dei- xando evidentes lacunas, sem pretensao de ser exaustivo ou de responder a todas as questdes que essa Story provoca; o Autor nao abrange todos os aspectos da teologia paulina que os leitores talvez desejassem ver explica- dos nesta vida de Paulo. Essa acepedo de Story nos leva a perguntar: como traduzi-la ao por- tugués? Nossos dicionarios mais importantes, 0 Aurélio Sécula XXI e 0 Diciondrio Houaiss da Lingua Portuguesa, conhecem tanto Histéria como Est6ria, mas preferem empregar 0 termo Historia para dizer tudo 0 que Es- toria pode dizer. Por outro lado, mostram como o termo Est6ria limita-se a contos, de preferéncia infantis. Portanto, para nao diminuir o valor do livro de Murphy-0'Connor, nao convém traduzir Story por Estoria — pois nao é uma fibula ou lenda — mas sim por Histéria, que inclui tanto 0 aspecto da Story como o da History. De fato o Autor néo entende sua obra como mero conto sem embasamento na realidade histérica, mas nao quer que seus leitores se prendam diretamente ao género literario da biografia his- torica, onde ndo haveria espaco para a imaginagao, conjeturas € hipdteses. Nesta obra, 0 Autor da asas a imaginacao para fazer uma reconstrugao de fatos sobre a vida de Paulo que nao estéo documentados em suas cartas nem no livro dos Atos dos Apdstolos. 0 que sabemos como historicamente confirmado, Murphy-0'Connor oferece numa obra precedente, histérica no sentido rigoroso, Paulo: biografia critica, mencionada em seu proprio prefacio. Sua intengéo em Paul: His Story é mostrar uma figura viva de Paulo. Deseja entrar em seu intimo, em seus pensamentos, mente e coracao, nas diferentes ocasides e circunstancias de sua vida, para nos permitir nao s0 9 conhecimento de sua personalidade como também a compreensao de PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA 413 TORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 414 sua teologia sem as amarras de uma visao rigidamente histérica. No fim de seu preficio, 0 Autor diz que esta Story 0 fez descobrir um Paulo diferente pelo fato de ter-se desprendido dos rigores do género literario histdrico da biografia, e deseja que os leitores fagam a mesma aventura. O método cientifico reconhece a importancia das intuigdes no processo do conhecimento, embora nao admita limitar-se a elas, pois tal processo se vale dos outros recursos racionais, 0 da inducao, da dedugao, analise e sintese, montagem de modelos com base em conjeturas ¢ hipdteses, etc., tudo sob o controle firme do rigor cientifico. 0 insight, a intuigao, a im- pressdo imediata, as percepcdes relampagos que passam pela mente em meio a um raciocinio tém seu valor, mas sao de dificil comprovacao. Por isto a filosofia da ciéncia tem suas cautelas quanto as intuicgdes. Porém, no caso de uma Story, nao seria possivel introduzir o leitor no clima de uma historia contada com paixéo e encanto sem lhe conceder um minimo de liberdade as inventivas cativantes da imaginagao. Como comprometer 0 leitor, 0 ouvinte de uma histéria, sem contar com tais intuicdes, emogées e mesmo algo de fantasia? E isso este livro contém, numa proporcao que pode desapontar 0 leitor, como desagradou a critica que recebeu, no meio académico, devido aos equivocos entre Story ¢ History”. Para o leitor brasileiro esse risco nao pode ser desconsiderado. Numa cultura que da tanto valor as telenovelas, saber distinguir neste livro 0 que é Story ¢ History é essencial para nao confundir 0 hipotético com o real. Do contrario, havera quem jure, com base nas hipoteses deste livro, que Paulo nasceu mesmo em Gischala, ou que os gregos que Jesus encontrou em Jerusalém (Jo 12,20) eram exatamente os efesinos que nao conheciam o Espirito Santo e que tinham novidades a contar a Paulo sobre o Jesus histérico (At 19,2); ou que 2Ts, 2Tm e Colossenses sejam consideradas por todos como cartas auténticas de Paulo, ou que Paulo tenha mesmo ido & 2. Quanto ao desconforto provocado pelas hipéteses histaricas e especulagbes teolégicas de Murphy-O'Connor neste livro, cf. M. PASCUZzI, “Is His Story Paul’s Story?", em http: www.h-net.org/reviews/showrev.cgi?path=211471133976233, consultado em 11/6/2007. A recenseadora deste livro procurou entender “Story” no sentido de “History” € por isso nao captou apropriadamente a intengao do Autor. Cf. St. FOWL, recenssdo publicada em The Journal of Theological Stedies, 57/2 (2006) 673-675, em que se afirma que as especulagdes sobre as emogdes de Paulo neste livro padem frustrar a muitos especialistas, porque muito dependentes de uma leitura das entrelinhas (“mirror reading"), assim como outras conclusées de carter histérico ou tealdgico. Espanha, ou ainda que a Igreja toda o tenha aceitado como apéstolo so- mente apds seu reconhecimento por S. Ireneu ete. etc. Um grau minimo de conhecimento dos escritos paulinos é necessdrio para distinguir 0 hipotético do comprovado histérica e teologicamente. Hipoteses ou conjeturas aparecem ao longo do livro todo. Dentre as langadas pelo Autor, quais sao as mais verossimeis? 0 que pode ser aceito e o que deve ser discutido? 0 Autor nao se sente na necessidade de respon- der. Nao porque no queira ou nao saiba, Ninguém duvida da competéncia de Murphy-0’Connor. E porque deseja intrigar o leitor. Quer provocd-lo a busca pessoal das solugdes depois de estimular sua imaginacio numa narrativa envolvente. Os contadores de historias nao devem revelar todos os seus segredos. Nao precisam dar todas as solucées; caso contrario, nao fariam uma Story. Devem, sim, langar o leitor na busca pessoal de novas descobertas. Para prevenir compreensées erréneas, é preciso afirmar que o leitor nao é obrigado a aceitar 0 que o Autor apenas Ihe propde como hipdteses hist6ricas ou teolagicas, mas pode confiar nos dados histdricos evidente- mente seguros sobre os quais o livro se baseia. As especulacées teolégicas que Murphy-0'Connor faz neste livro nao sto dogmas de fé ¢ sim pontos de partida para reflexes, discussdes e aprofundamentos posteriores. Ha muitos modes de contar histérias. Este livro conta uma entre tantas que poderiam ser escritas sobre Paulo. Nao é a tnica nem a definitiva. Ou- tros acentuariam 0 itinerario espiritual antes do eclesial e pastoral. Porém a competéncia do Autor é inegavel. Ougamo-lo capitulo por capitulo. Aonde quer nos levar? Por qual motivo insiste tanto na indole irascivel de Paulo? Por que acentua tanto seus conflitos com Antioquia, Galacia, Corinto e Efeso? Por que desafia, surpreende, intriga e também chega a corresponder a varias de nossas expectativas? Apenas uma parte das respostas nos ¢ dada no Epilogo: foi assim que Deus fez de Paulo um verdadeiro apéstolo como os demais, Esta Story, portanto, é a Historia de um apdéstolo: Paulo de Tarso. A traducao brasileira pracurou mantero tom do contador de historias, isto ¢, conduzir a narrativa numa linguagem espontanea e condizente com nosso modo de contar historias, sem, porém, modificar o conteudo do livro em hipétese alguma, Sea tradugao fosse muito literal e menos parafraseada, PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA 45 STORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO: Hi 16 em certas passagens, ao menos, a fluéncia se perderia, 0 sabor da histéria contada se dissolveria. Para ajudar os leitores que desejarem conhecer melhor a geografia das localidades em que Paulo viveu ou por onde passou, é dado um apéndice a esta edicao brasileira. Nele estao as coordenadas geograficas a serem mostradas pelo programa Google Earth. Teatros, hipodromos, agoras, ruas etc. podem aparecer sob seus olhos, facilitando a compreensao das descri- gdes das viagens de Paulo neste livro, provavelmente com mais vivacidade ainda do que a proporcionada pelo Barrington Atlas. Bons sites de busca na Internet podem oferecer excelentes fotos das localidades paulinas; basta procura-las indicando 0 nome inglés das cidades mencionadas neste livro: Antioch ou Antakya, Pisidian Antioch ou Yalvag, Assos ou Behram, Atalia ou Antalya, Berea ou Veroia, Colossae ou Honaz, Damascus, Derbe, Ephesus ou Efes, Filippoi, Hierapolis ou Pamukkale, Iconium ou Konya, Jerusalem, Laodicea, Lystra ou Hatunsaray, Miletus, Perge, Pergamon ou Bergama, Philadelphia ou Alasehir, Sardis, Smyrne, Tarsus, Thessalonika, Thyatira ou Akhisar, Tarsus, Tralles, Troas. Pe. Valdir Marques, SJ Prefacio do autor Fazer este livro foi uma aventura maravilhosa na tentativa de trans- formar uma biografia numa historia contada. Ha muitas biografias de Paulo de Tarso, mas todas se limitam a dar énfase a dados historicos com certo grau de probabilidade. Focalizando argumentos em vista de conclusées predefinidas, tais “fatos histéricos” sao apresentados como espléndidos troféus, mas nao integrados no conjunto. Por sua natureza, tal modo de fazer uma biografia de Paulo jamais leva a conhecer sua personalidade viva. Algumas coisas sobre ele sao reveladas, mas dai nao sobressai Paulo como © individuo que foi. 0 Paulo que transparece da maioria dessas biografias nao passa de uma mente fria da qual vao saindo idéias teolégicas. Em Paulo: biografia critica (Sao Paulo, Loyola, 2000), escrevi um livro desse tipo. 0 que o diferenciou de outros foi o peso que dei as cartas de Pau- lo como fontes primarias do material biografico. 0 resultado foi um esboco bibliografico diferente do elaborado por Lucas nos Atos dos Apéstolos em pontos cruciais, mas muito mais detalhado. Todos os dados hist6ricos tidos por certos la, aqui s4o retomados como seguros, sem mais documentacdes: a cronologia da biografia de Paulo, os dados sobre seu relacionamento com suas fundacées, os problemas que enfrentou em varias situacdes, 0 carater peculiar da composigao de certas cartas ete. 47 TORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 18 Aqui retomo tais “fatos” como partes de um esqueleto bem preservado. Tanto 0 cranio como os ossos se acham em boas condicées. Foram medidos e definidos. Continuam sélidos ¢ de peso. Porém nao se mexem. Neste livro quero dar vida a esses ossos, revestindo-os com carne e pondo neles 0 sopro da vida. Dai deve surgir o Paulo herdi de uma histdria. Assim reconstruo sua vida com suficientes detalhes para lhe dar con- sisténcia ¢ colorido. Retomo a ordem cronolégica do livro anterior, porque somente uma consistente linha narrativa consegue dar a Paulo a imagem de uma pessoa de seu tempo. Inevitavelmente, num trabalho como este muito deve ser hipotético e fruto da imaginacgao. No entanto, cada vez que adoto uma hipotese, adoto a mais provavel possivel. Controlo-me pelo crivo dos dados historicos documentados nas fontes ¢ monumentos daquele tempo e, ainda, pelo conhecimento direto que tenho dos lugares em que Paulo esteve. Ao contrario de Lucas, que no livro dos Atos pde discursos na boca de Paula, prefiro descobrir seus pensamentos e sentimentas. Aqui me controlo pelo bom senso. Suponho que Paulo refletia muito antes de tomar decisées. Eu o descrevo ponderando varias possibilidades numa viagem ou numa nova situacao. Ele podia deixar-se levar por sua impetuosidade e acabar cometendo desastrosos erros estratégicos ¢ taticos. Quando comete ertos, procuro explicar seus motivos ¢ como se preveniu para evitar novas falhas no futuro. Suponho também que Paulo reagia de modo normal aos estimulos externos. Assim, como eu mesmo me emocionei, vendo a extraordinaria beleza do Monte Cassio ao nascer do sol, suponho que o coracio de Paulo também vibrou ao ver a maravilhosa paisagem que diante dele ia-se des- cortinando 4 medida que caminhava para o sul de Antioquia do Orontes. Também eu ficaria estupefato vendo que a principal rua de Pessinunte era o leito de um rio, pavimentado para dar vazao a enxurrada da forte chu- va. Imagino também como Paulo quebrou a cabega tentando entender as surpresas que ia encontrando entre os galatas, a0 passar com eles aquele inverno. 0 povo de Antioquia nao se comportava daquele jeito! Os celtas eram mesmo gente muito diferente! Um elemento novo deste livro é a importancia que dou as distancias geograficas. Para isso recorro as escalas dos mapas do Barrington Ailas of the Greek and Roman World (Princeton: Princeton University Press, 2000), que indico em notas, sempre que possivel. Os mapas desse Atlas estao em escala tao grande, tao bem desenhados e coloridos, que ¢ quase impossivel nao ver por onde Paulo passa. Preciso lembrar ao leitor que nos tempos de Paulo tudo acontecia mais devagar do que hoje. Portanto precisaremos desacelerar radicalmente nosso tempo se quisermos entrar no ritmo de sua vida. Nossa tendéncia ¢ imaginar que as viagens e comunicagées eram apenas um pouco mais lentas do que as de hoje. Na verdade, a diferenca era enorme, ¢ essa lentidao influenciava grandemente a comunicacao entre pessoas ¢ lugares. Somente quando compreendemos que Paulo ou seus mensageiros se contentavam em percorrer em media 32 quilémetros por dia - levando em conta doengas, ferimentos, mau tempo, rumores sobre bandidos ou Lobos pela estrada, ou a necessidade de esperar uma caravana para viajar com alguma seguranga —, somente assim podemos entender o que diz sobre “o peso, a cada dia, da preocupacao com todas as Igrejas” (2Cor 11,28). As cartas levavam se- manas, se nao meses, para chegarem a seu destino. Paulo ficava a maior parte do tempo sem contato com seus convertidos, até quando mais precisavam dele. Dizer que frustragdes € temores devoravam sua alma é interpretagao correta, nde imaginagao gratuita. Quando Ihe chegavam as informagées esperadas, seus sentimentos logo davam colorido a suas reagoes. Porém, esse € apenas um exemplo de come exploro os detalhes de suas cartas para mostrar 0 que se passava em seu intimo. Paulo tinha as emogdes a flor da pele. E fora do comum a rapidez com que muda de humor no capitula 4 de 1 Corintios. Uma razoavel moderagao (vv. 1-6) cede lugar a uma dura ironia (vv. 7-10), logo substituida por ousada autocomiseracao (vv. 11-13), que se transforma em afeigio ansiosa (vv. 14-17) e deflagra, por fim, acaloradas adverténcias (vv. 18-21). Ha muitas pistas que dao a conhecer os sentimentos de Paulo, mas nunca exploradas sistematica- mente. Podemos conhecer o carater de Paulo e descobrir 0 que o deixava feliz ou triste, interessado ou indiferente, despreocupado ou temerosa, Sua personalidade se expressava na continua interagao entre suas emogdes e seus pensamentos. Ele podia ser tudo, menos 0 pensador frio que dele fez a principal corrente da pesquisa atual. Para nao cair no género de novela histdrica, nao criei situacdes estri- tamente particulares. Nao imagino a cena de Paulo se levantando de um PREFACIO DO AUTOR 19 TORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 20 banco e iluminando sua fisionomia logo que ouvisse alguém bater a porta, para anunciar a chegada, tao protelada de Timéteo, de Tessalénica! Também nao ponho na boca de Pedro ou de Paulo, em Jerusalém, as palavras de suas conversas sobre Jesus, sobre 0 certo ou errado de comer com os gentios de Antioquia. Chegar a detalhes tao particulares tornaria ilegitimo o uso da imaginagao historica neste tipo de livro, pois aqui o controle seria impossivel. Porém, quanto a certas coisas préprias daquele tempo, a questo ¢ outra. Em todos os lugares eram do mesmo tipo os barcos, estradas e esta- lagens. Dispomos de informagdes daquele tempo que nos permitem fazer descrigdes muito realistas de viagens, estadias ou pemoites numa estala- gem. Neste caso exerco grande controle sobre minha imaginacao. Cedo a inventivas na medida em que a generalizagao é possivel, ¢ apenas para dar colorido a minhas experiéncias histéricas pessoais. Nao ha notas de rodapé, por muitas razées. A mais evidente ¢ que conto uma historia, nao escrevo um tratado. Tenho muito mais experiéncia em escrever tratados do que em contar historias, ¢ te inha intengao se usasse de uma forma literaria que me ¢ familiar. As notas de rodapé nao sé afetariam subconscientemente a redac4o do texto, como também mandariam um sinal equivoco ao leitor, a quem foi prometida uma historia. Desviando da histéria a atencao do leitor, as notas insinuam didlogos, com colegas da mesma Area, sobre questes que nao vém diretamente ao caso. Pelo contrario, os contadores de historias devem se concentrar em seus personagens. Tudo 0 que dispersa a atencio dos ouvintes é mal recebido por quem deseja ver-se levado para dentro da histéria. No entanto, para aqueles que desesperadamente quiserem conhecer a justificagéo de minhas principais op¢ées, inclui uma série de notas no fim do livro. Ao longo de minha carreira académica trabalhei sobre muitos aspectos da biografia e da teologia de Paulo, masa tentativa de destilar este refinado conhecimento contando uma historia levou-me a profundas compreensées, nunca imaginadas antes. Para mim, agora, Paulo é mais real como pessoa vel como tedlogo. Somente posso desejar o mesmo aos meus e mais intel leitores. Jerome Murphy-O'Connor, OP. 1° de janeiro de 2003. frapeqsim Hepa, uoypioy Supmy nq WAUKdoD “L Aq ‘IHaLO Halapiog sap soy sabuigny :21M03] ojneg ap oduI>y OU LOUAyA IS “T EdEY sauerg omar, ~~ OINYYUILIGIN NVI is po ~ aa einbonuy, , WSOHDOU ep seg) von om ep seuiog aquag* vingvont vwibodvdv> "ape s emele My, atu —__oueoing 2 SOISQBOISTIOL ) ) opiueipy # > wDvIv5 J Spuy sorpysous31 Tuniaey* SOMDOUL fe “a ] out onebues ory wn vIovuL ‘ouDaN BVA, vINQGa. VIN 21 1 Os primeiros anos Paulo tinha argulho de sua origem. Ele se gloria disto em dois textos. ‘os filipenses escreveu: "Se alguém pode ter certeza de sua prépria origem, eu tenho mais ainda cireuncidado no oitavo dia, do povo de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu filho de hebreus, perantea Lei, fariseu" (FI 3,4-5) £m 2 Corintios, comparando-se com seus opositores, mostra este con- traste: "Se outros tém motivos para se engrandecerem, eu —€ falo como quem perdeu 0 juizo— tenho também motivos para me gloriar. Sao hebreus? Eu também. Sao Israelitas? Eu também. Sao descendentes de Abrado? Eu também” (2Cor 11,21-22). Nesses dois textos Paulo garante que nao apenas € “israelita", mas um “hebreu’ As duas palavras se correspondem numa considerdvel gama de usos; ambas eram empregadas no tempo de Paulo para identificar um judeu. Porém quando aparecem juntas, como aqui, € porque uma esclarece a sentido da outra. 23. HISTORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 24 Em oposigaa a "“israelita’, que tem um sé significado, bem preciso, “he- breu” é usado muitas vezes no Novo Testamento para dizer a lingua falada pelos judeus na Palestina. Lucas, por exemplo, descreve Paulo falando a uma multidao em Jerusalém "em lingua hebraica” (At 22,2), enquanto Joao nos dé uma série de nomes de localidades em Jerusalém. Porém o hebraico era pouco falado; uma palavra que Joao diz ser hebraica na realidade ¢ aramaica (Jo 19,13), lingua dominante na Palestina no primeiro século. "Hebraico" era empregado comumente para dizer “aramaico", lingua cognata muito proxima. Paulo, partanto, argulha-se de ser um judeu que fala aramaico como lingua herdads de seus pais. A dedugio imediata é que sua familia era ori- ginaria da Palestina, pois fara dela os judeus nao precisavam do aramaico. Para a comunieagéo do dia-a-dia usavam um dialeto local qualquer, mas para acomunicagdo.com um mundo mais amplo falavam o grego. A Biblia hebraica teve de ser traduzida ao grego para os judeus da Diaspora Galiléia Paulo era galileu por nascimento!', Seus pais viveram em Gischala {atual Jish), aldeia das montanhas da alta Galiléia, famosa pela qualidade de seu azeite. Paulo teria dois anos em 4 a.C., quando a tranqitila vida de seus pais foi brutalmente abalada. O rei Herodes, o Grande, morrera naquele ano, e o pais explodiu. Seu povo o odiava; néo podendo mais vingar-se contra ele, 0 povo se voltou contra seus filhos. Mas estes tinham o apoio de Roma, e Varus, 0 governador da Siria, para impor a paz, precisou mandar, duas vezes, suas legides para a Palestina. Na segunda vez destruiu Séforis, capital da Galiléia. Os romanos tinham o costume de obrigar os vencidos a pagar a conta de sua derrota de varios modos. Mas optavam pelo mais eficiente e mais simples: faziam prisioneiros, nao so entre os saldados, como também entre a populacao em geral, ¢ os vendiam como escravos. Quando o levante contra os filhos de Herodes foi sufocado, os pais de Paulo tiveram a infelicidade de ser aprisionados por uma legido romana em ronda pela Galiléia. Antes de voltar para sua base em Antioquia do Orontes (Moderna Antakya, no sul da Turquia), a legiao devia vender seus prisioneiros aos onipresentes comerciantes de escravos que os despachavam por todo 0 Me- diterraneo. Afinal, escravos cram mais um tipo de commodity, como o vinho a pasta de peixe, levados aonde houvesse maior demanda. No enorme mercado da ilha de Delos, 10.000 escravos eram vendidos num sé dia. Os pais de Paulo ¢ seus filhos provavelmente foram levados de Ptolemais (atual Akko, no norte de Israel). Vendo desaparecerem as verdes montanhas de sua terra, mal podiam imaginar que passariam a viver 4 sombra de montanhas muito mais altas, as da cadeia do Taurus, no sudeste da Turquia. Tarso Anova patria deles seria Tarso, capital da provincia romana da Cilicia Pedias’. Localizada a pouco mais de 16 quilémetros terra adentro, junto do rio Cidno, a cidade tinha mais de 4.000 anos. Ficava numa das grandes rotas mercantis do mundo antigo, ligando a Siria aos mais distantes locais a leste, com a Asia Menor e o Egeu. A planicie fértil a seu redor era muito rica em aguas; nela eram cultivados cereais, uva e mais ainda, a fibra do linho, material bruto paraa maior industria regional, a tecelagem do linho. Mais caracteristico ainda era 0 feltro, feito com a 14 das ovelhas negras que vagavam pelas faldas do Taurus. Era tao proprio daquela regido que dela recebeu seu nome: “cilicio”™. Como as habitantes locais nao conseguiam explorar todo o potencial econdmico de Tarso, os seléucidas da Siria levaram para I colonos gregos ¢ judeus, no século 11 a.C. Foi nessa ¢poca que deram a Tarso 0 status de cidade-estado grega. Essa mistura de oriente e ocidente ficaria para sempre como uma das caracteristicas mais duradouras da cidade. Quando Julio César a visitou em 47 a.C., causou tamanha impressdo sobre os habitantes de Tarso que estes mudaram o nome da cidade. Um dos tragos da cultura oriental foi conservado pelas mulheres de Tarso: continuaram a usar 0 chador, veste de corpo inteiro, até o fim do século II d.C. Integrada ao sistema romano, quando Pompeu reorganizou a Asia Menor em 63 a.C., Tarso foi governada por oficiais de alto nivel, como 0 grande orador Cicero (51-50 a.C,). Marco Antonio recompensou a lealdade de Tarso a Julio César depois que este foi assassinado em 44 a.C., dando- lhe liberdade € isengao dos impostos imperiais. Esse raro privilégio, dado a uma cidade que no era colénia romana, foi confirmado por Otaviano, futuro imperador Augusto, depois que venceu Marco Antonio na batalha de Accio em 31 a.C. OS PRIMEIROS ANOS 25. TORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 26 A grande importancia dada a Tarso pelos romanos ¢ confirmada pela concessao da cidadania romana aos principais lideres da cidade. Com o tem- po essas familias cresceram e passaram a ser uma significativa porcentagem da populagao de Tarso. Essa é a explicagao mais simples para a cidadania romana que Paulo teve por hereditariedade (At 22,27-28). Os pais de Paulo teriam sido comprados por um cidadao romano de Tarso; quando foram libertados, teriam recebido legalmente essa cidadania de seu patrao. Nao é possivel saber quantos anos Paulo tinha quando isso aconte- ceu. Na verdade nada sabemos sobre sua infancia. Porém é possivel supor dois dados. Primeira: seus pais deviam ter boas condigées financeiras quando chegou a adolescéncia, porque ele demonstra a atitude esnobe de uma classe social com tempo livre A vontade e menosprezo pelo trabalho manual; considerava-o “servil” (1Cor 9,19) e “desprezivel” (2Cor 11,7); 08 artesdos de nascimento referiam-se a sua profissio com orgulho, ¢ muitos as indicavam em suas lapides tumulares. Segundo: as cartas de Paulo mostram que ele recebeu excelente educacao, tanto religiosa como secular. Esse privilégio era dispendioso e inacessivel 4 grande maioria dos judeus. Alguém teve de pagar por essa educacao, pois o estudo exige tempo integral. Paulo nao precisou trabalhar nem quando era crianga nem quando jovem. Educacao Quanto a sua educacao religiosa, aprendeu a traducdo grega das Eserituras hebraicas muito bem*. Em suas cartas as cita quase noventa vezes explicitamente, ¢ implicitamente faz ainda muitas outras referén- cias ¢ alusdes, 0 modo como maneja os escritos sacros de seu povo revela a profunda familiaridade resultante de seu constante manuseio. Seria a marca do tempo em que estava com sua familia e de quando freqiientava a sinagoga em Tarso. Recordava os textos porque estava convencido de que as Escrituras Ihe falavam pessoalmente. Eram uma voz nao do passado, mas do presente. A revelagao da prowidéncia de Deus despertou em Paulo aquele amor que o fez capaz de usar as Escrituras com tal liberdade, que muitas vezes permanece inexplicavel. Apesar de ter abandonado a Lei de Moisés como regra de vida, nunca perdeu de vista o sentido das Escrituras como comunicacao de Deus com seu povo. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Em principio tinha duas opgées de viagem: por terra ou por mar. A opgado mais confortavel e segura seria embarcar num dos numerosos navios mercantes que subiam e desciam costeando 0 litoral. Nao cansaria seus pés ¢ ficaria fora do aleance dos ladrdes. Essa opcao nao pode ser excluida, mas € a opcao menos provavel, pelo que conhecemos do temperamento ardoroso de Paulo. Ele teria preferido chegar a Jerusalém na melhor época possivel, isto é, numa peregrinagao no tempo da Pascoa. E os peregrinos tinham de ir andando. Podemos, portanto, imagina-lo como um jovem cheio de entusiasmo juntando-se ao grupo dos peregrinos da Cilicia. Estes tinham sua propria sinagoga em Jerusalém (At 6,9). Jerusalém ficava a mais de 800 quilémetros de distancia. Paulo devia saber que passaria mais ou menos seis semanas na estrada’. A Pascoa podia cair numa data qualquer entre margo e fim de abril. Uma data precoce imporia aos peregrinos uma viagem especial- mente dura, porque coincidiria com a estagéo das chuvas. A viagem seria incémoda, mas nao totalmente impossivel. A estrada através da planicie da Cilicia estaria cheia de lama, masa subida dos montes Amanus, as Portas da Siria, tinha s6 154 metros. Uma vez que ultrapassassem as Portas da Siria, Antioquia do Orontes ficava apenas a um bom dia de caminhada. Era a capital da Siria romana, uma das mais deslumbrantes cidades do oriente. Porém nao havia tempo para admira-la. Os peregrinos tinham os olhos voltados para Jerusalém, Paulo nao podia imaginar que no futuro, um quarto de século depois, An- tioquia do Orontes seria, por muitos anos, a base de seu trabalho, A viagem dos peregrinos sobre as montanhas, dirigindo-se para 0 sul de Antioquia, se iluminava com a visio do espléndido Monte Cassio (atual Jebel al-Aqra, com 1.728 metros de altitude}, com formato de um seio, vol- tado para o oeste. Por sua aura extraordinaria foi considerado sagrado tanto pelos fenicios como pelos gregos. Quando os peregrinos atingiram a costa de Laodicea (atual Latakia), deviam apenas continuar descendo a estreita faixa da planicie litoranea, ao continuo bramido das ondas a sua direita. Ficavam cheios de orgulho enquanto seguiam ao lado do aqueduto de Cesaréia Maritima. Esta cidade fora construida apenas 25 anos antes. Era a obra-prima das construgées seculares de Herodes o Grande. Suas largas ruas se cruzavam formando quadrados, ¢ ja Ihes eram familiares seus monumentos deslumbrantes (teatro, estadio, templo) conhecidos em OS PRIMEIROS ANOS 29 TORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 30 outras cidades greco-romanas. Porém em Cesaréia tais monumentos eram criagdo de um rei judeu, que também construira ali um porto inigualavel. Sera que passou pela mente de Paulo que a morte de Herodes 0 Grande foi 0 motivo do exilio forcado de seus pais? Depois de Cesaréia restavam dois dias de facil caminhada até Jeru- salém. A estrada que provavelmente seguiram era também a mais antiga. A descida de Beth Horon foi o caminho de Josué mais de mil anos antes, quando pés em fuga de Gibeon os cinco reis reunidos contra ele (Josué 10). Descendo do norte, os peregrinos viram Jerusalém pela primeira vez, estando a apenas uns 3 quilémetros dela. Jerusalém é cantada, poetica- mente, como a cidade no alto de uma colina. Na verdade, os montes a seu redor so bem mais altos. Os peregrinos identificariam imediatamente o Templo no lado oriental da cidade. A fumaca subindo do altar dos sacrificios levaria seus olhares para a forma peculiar do Santo dos Santos, visivel 4 esquerda da ameaga- dora massa da fortaleza Antonia. Se interrogassem sobre 0 edificio com trés imensas torres do lado oposto da cidade, logo saberiam que era 0 palacio construido por Herodes 0 Grande; porém agora era a sede do governador romano, que tinha vindo de Cesareia. O que os peregrinos mais desejavam era ir imediatamente ao Templo. Mas era proibido entrar com bastao, mochila, sandalias e poeira da viagem. Primeiro deviam encontrar acomodagdes onde deixar seus pertences ¢ se arrumarem. Isso nao era facil no tempo da Pascoa, porque a multidao de peregrinos de todo 0 mundo multiplicava por trés 0 ntimero de habitantes em Jerusalém. Peregrinos pobres tinham que acampar no norte da cidade, na encosta do Monte das Oliveiras, caso nao encontrassem lugar nas aldeias proximas, como Betania ou Betfagé. Uma cidade guarnecida na montanha A cidade que Paulo estava para conhecer muito bem era propriamente criagdo de Herodes o Grande®. Herodes teve de lutar para impor sua auto- tidade sobre o reino que os romanos Ihe deram em 40 a.C. Jerusalém nao se submeteu facilmente. No comeco do verao de 37 d.C., as catapultas de seus aliados romanos bombardearam a cidade por 45 dias seguidos, sem misericérdia. Quando 0 exercito entrou na cidade, Herodes encontrou terra arrasada, com prédios destruidas e populagao dizimada. Seu deeidido em- preendorismo e profundo senso de organizacao nao deixaram por muito tempo a cidade naquele miseravel estado. Muito cénscio de ter poucos amigos, sua maior preocupacao foi com sua propria seguranga. Sua primeira construgao monumental foi a fortaleza Antonia, que nomeou assim em homenagem a seu amigo Marco Antonio. Ficava ao nordeste do Templo, com quatro torres; ado sudeste tinha 9 me- tros a mais que as outras. Vendo-a pela primeira vez, Paulo nao podia ima- ginar que um dia seria seu héspede involuntario apds a urgente intervengdo da guarnigdo romana para salva-lo da fiiria dos judeus (At 21,31-35). Mal ficara pronta a fortaleza Antonia e Herodes ja dava inicio a um projeto maior ainda: um novo palacio, no ponto mais elevado da cida- de, a oeste. O que nele mais impressionava cram as trés grandes torres chamadas de Miriamme, a esposa assassinada de Herodes, Hippicus, seu amigo, e Phasael, seu irmao. De inicio essa torre tinha 46 metros de altura, menos elevada que o Farol de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Investir nessas construgées trouxe prosperidade a cidade. Para garantir diversdo a seus aliados Herodes construiu 0 teatro fora dos muros, ao sul, e um hipddromo ou anfiteatro, cuja localizagaéo hoje ¢ desconhecida. Ali se comemoravam com jogos as tradicionais festas pagas, como em todos os outros lugares do império. E isso ofendia a suscetibilidade dos judeus fervorosos. O Templo Porém, esses judeus fervorosos nao eram um segmento da sociedade que Herodes pudesse ignorar. Para aplaca-los, reconstruiu o Templo de Sa- lomo, ja reformado muitas vezes antes. Ampliou na diregao de trés lados a drea sacra original, criando, assim, 0 maior complexo religioso do mundo greco-romano. Como teve de construir sobre trés encostas, precisou fazer gigantescos muros de contengao para preencher € consolidar 0 espago vazio dentro deles. Galerias cobertas foram erigidas nos trés lados do perimetro. No lado sul ficava 0 Portico Real, onde se concentrava a maior parte do comércio da cidade. OS PRIMEIROS ANOS 31 TORIA DE UM APOSTOLO PAULO DE TARSO. 32 No meio da ampla esplanada, os limites do Templo retangular original eram marcados por uma muralha enorme e muito alta. Em cada uma de suas portas havia avisos que proibiam, sob pena de morte, a entrada dos nao-judeus. Os pagaos podiam entrar apenas até o Patio dos Gentios, cujas partes nordeste e sudeste eram ligadas por uma passagem estreita ao longo do lado oeste. Todas as construcdes propriamente religiosas ficavam no interior da esplanada. Voltados para 0 oriente, havia sucessivos patios cada vez mais sagrados: patio das mulheres, de Israel, dos sacerdotes, e, dentro de um edificio, o Santuario; dentro deste, por ultimo, 0 Santo dos Santos. A fachada do Santudrio era revestida de ouro. Em vez de porta havia uma cortina bordada de azul, escarlate e parpura. Membros da aristocracia piedosa, talvez em sua maioria chefes de sacerdotes, construiram casas abastadas perto do paldcio real e na encosta ocidental do vale em diregao do centro da cidade. As classes inferiores dos sacerdotes nao tinham, ¢ claro, aquelas invejadas casas luxuosas. As ou- tras casas, em sua grande maioria, eram pequenas; em alguns casos eram apenas um lado de um patio. Agua era crucial para a sobrevivencia de toda cidade. Cada casa de Jerusalém tinha sua cisterna para coletar agua pluvial. A piscina de Siloé, alimentada pela Fonte do Gihon, era 0 ponto mais baixo da cidade. Era usada so em Ultimo caso, porque para levar agua para cima era preciso subir 0 morro. A maior parte da agua vinha por dois aquedutos que partiam das Piscinas de Salomao, ao sul de Belém. 0 aqueduto baixo supria o Templo ¢ a cidade baixa, enquanto 0 elevado supria 0 palacio ¢ a cidade alta. Toda construcdo, grande ou pequena, era de pedra calcaria, que dava a impressao de que as casas eram maiores quando nelas a luz do sol batia. 0 reflexo dourado variava sutilmente conforme o sol se movia. O brilho radioso da cidade murada contrastava vivamente com a paisagem estéril em volta, onde os ttimulos eram as construgdes que mais se sobressaiam. As arvores frutiferas do Monte das Oliveiras chamavam a atencao porque nao havia outras no resto da cidade. Varios aspectos de Jerusalém seriam muito familiares a Paulo. Ele ja tinha visto construgdes modemas ¢ guarnigdes romanas em Tarso e em Antioquia. La eram normais, mas aqui eram estranhas; eram a Constante lembranga da submissao dos judeus. Mesmo assim n4o sobrepujavam a indiscutivel superioridade do Templo. A grandiosidade que Herodes lhe dera proclamava, sem deixar dtividas, que era a Casa do Senhor, a casa simbolica do unico Deus vivo e verdadeiro. Era 0 que determinava 0 ethos da cidade. Dava a Jerusalém um senso de unidade que nenhuma outra cidade conseguia igualar, exceto, talvez, Roma, onde nada subrepujava 0 poder do imperador. Isso nao queria dizer, no entanto, que todos os habi- tantes de Jerusalém concordassem com tal maneira de prestar culto a Deus. E nesta cidade, se Paulo quisesse integrar-se totalmente, seria obrigado a fazer escolhas. Um fariseu na Cidade Santa Somente depois que os peregrinos se dispersaram no fim da Pascoa, € depois que Jerusalém retornou a sua rotina normal, é que Paulo péde pensar em seu futuro. Ele nos diz que se tornou fariseu (FI 3,5). Lucas da a entender que isso foi muito natural, quando escreve sobre Paulo: “Sou fariseu, filho de fariseus” (At 23,6). Em outros termos, Paulo simplesmente teria aceitado, sem fazer uma escolha pessoal, a mesma opgdo religiosa que ja seria a de seus pais. E muito pouco provavel que Lucas esteja certo. Os fariseus nao tinham estadia permanente na Galiléia, portanto seus pais ndo se teriam juntado a eles em Gischala. Se alguns fariseus foram para a Galiléia, como os Evangelhos sugerem, foram para breves visitas para controle da qualidade do alimento produzido e enviado para Jerusalém. Qs pais de Paulo também nao poderiam ter-se tornado fariseus em Tarso. Nao havia fariseus na Diaspora; somente em Jerusalém. O que esse grupo tinha para atrair Paulo? Se o motivo de sua ida para Jerusalém era viver num mundo judaico auténtico, o farisaismo era pratica- mente a tinica op¢ao. Tornar-se sacerdote nao Ihe era possivel, pois era da tribo de Benjamin (FI 3,4). Paulo precisaria ter nascido na tribo de Levi, pois o sacerdacio era hereditrio. Outra opgiio seria fazer-se saduceu. Mas para isso teria de pertencer 4 nobreza sacerdotal ¢ ou a ricas familias patricias. Os saduceus viviam separados do resto do povo, pelo qual tinham pouco interesse. Os dois grupos sociais de onde provinham seus membros eram arredios a novatos. Talvez algum judeu, extremamente rico ¢ influente da Diaspora, conseguisse romper esse circulo fechado. Paulo, um desconhecido, e, ainda mais, com apenas seus vinte anos, nao tinha a menor chance. OS PRIMEIROS ANOS 33 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. o mais importante, ¢ sim cumpri-la; quem multiplica palavras da ocasiao ao pecado” (Tratado Aboth 1,17 da Mishna). Paulo nao era imune a tudo isso. 0 fato é que se comprometeu deli- beradamente com o farisaismo. Escrevendo muitos anos depois sobre sua vida passada, ¢ completamente repudiada, nao conseguia ainda ocultar certa complacéncia, de auto-satisfagdo, nestas palavras: “No judaismo eu era mais adiantaco que muitos judeus da mesma idade, porque era extre- mamente zeloso pela tradigdo de meus pais" (Gl 1,14). “Tradigio de meus pais” é expressio caracteristica dos fariseus para engrandecer a Lei oral, enquanto o tom combativo ¢ 0 espirito competitivo eram as caracteristicas de um grupo de elite. Paulo tinha orgulho de pertencer a tal minoria, mas nao exagerava. Nao diz que era o melhor dos fariseus, absolutamente, mas o mais adiantado entre colegas da mesma idade. No entanto, chegar até esse ponto significou muito para ele, pois viera da Diaspora e entrara no grupo tendo mais idade que seus colegas. Quando entrou teria seus vinte anos; 0s outros ja estavam la desde criangas, como Simedo ben Gamaliel. O empenho e a dedicagao totais de que Paulo fala para conseguir esse sucesso querem dizer que ele teve pouco tempo, ou talvez nenhum, para cuidar de seu sustento. Ben Sira explica o contraste entre o homem que trabalha eo homem que estuda, com estas palavras: “A sabedoria do escriba supde tempo livre; somente quem tem poucas ocupagdes pode se tornar sabio" (Sir 38,24). Continua dizendo que estao impossibilitados de adquirir sabedoria “os operarios e artesdos que trabalham dia ¢ noite” (Sir 38,27). As outras atividades nao deixavam a mente livre para concentrar-se exclusivamente no estudo da Lei. Pobreza De que Paulo viveu, se nao podia trabalhar? E possivel que sua familia Ihe mandasse dinheiro. Em Tarso puderam dar-the uma educagao cara; portanto poderiam continuara sustenta-lo em Jerusalém. Seus pais ficariam orgulhosos porque ele retommava & terra de onde tinham sido deportados a orga. Paulo viveu uns vinte anos como fariscu em Jerusalém antes de se tornar cristdo. E seus pais teriam continuado ricos até a velhice? Mesmo que OS PRIMEIROS ANOS 35 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. doloroso recorda-lo € sagrado demais para ser partilhado. Seja como for, Paulo jamais se casou de novo (1Cor 7,8). Paulo teria encontrado Jesus em Jerusalém? Se Paulo chegou a Jerusalém no ano 15 d.C., e aceitou Jesus de Nazaré como Messias por volta do ano 33 d.C., deve ter estado na cidade quando Jesus a visitou durante seu ministério publico e quando foi crucificado em 30 4.C. No entanto Paulo nao deixa pista alguma, nem mesmo de um minimo contato com o Jesus historico. Nao ha razdes para supor que a vida de um interferiu na vida do outro. Naqueles anos Paulo se dedicava totalmente a seus estudos. Por qual motivo gastaria tempo procurando ou ouvindo alguém que devia ser ignorado por ele, a0 menos por trés boas razOes? Jesus era da Galiléia. Nao era habilitado para ensinar. Pior ainda, parecia julgar-se o Messias. E um engano cristao pensar que toda Jerusalém tenha ido ver a cruci- fixdo de Jesus, Poucos teriam tempo para isso. A sexta-feira, 7 de abril do ano 30d.C., era o Dia da Preparagao para a Festa da Pascoa, que comecava ao por do sol. Naquele dia coincidia com um Sabbath; nenhum trabalho podia ser feito depois do pér do sol. No Dia da Preparagao as mulheres deviam garantir que em rou- pa alguma e em cémodo algum da casa ficasse a menor pitada de fermento. As ruas estariam cheias de homens carregando cordeiros. Perto de 18.000 cordeiros eram necessarios para aquela multiddo de peregrinos que redobrava a populacdo de Jerusalém. Na Pascoa, leigos podiam degolar os cordeiros, mas, como cram vitimas para sacrificio, deviam fazer isso no Templo. Assim iam ao Templo carregando ani- mais se debatendo; cram empurrados pelos que voltavam trazendo os animais degolados. Sé um portdo dava acesso ao local da degola. Esse local tinha apenas 4,255 metros quadrados de espago wtil, mesmo assim dividido com o grande altar e o tanque de agua para limpeza! Era uma movimentagao confusa. Fazer fila jamais foi uma caracteristica cultural do Oriente Médio. No Dia da Preparacao 0 caos era tal que ninguém saia pelas ruas, a nao ser por estrita necessidade. Uma pequena procissao de soldados romanos OS PRIMEIROS ANOS 37. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 2 A conversdao e suas consequéncias Aexplicacao mais simples para a presenca de Paulo perto de Damasco quando encontrou o Senhar Ressuscitado € que estava em viagem para vi- sitar Tarso. Por seguranga era necessario ir numa caravana; eram freqiien tes entre Jerusalém e Damasco os grandes entroncamentos comerciais da Siria. Tinha certeza de que encontraria caravanas requlares de Damasco para Antioquia do Orontes, e de Id para todo o ocidente. Aestrada para Damasco levou Paulo, o ambicioso estudante, a passar por lugares que ele nunca tinha visto antes’. 0 primeiro dia de caminhada no seria dificil nem para um fariseu sedentério. Era uma descida desde deserto da Judéia até o oasis de Jericd. Porém, outra coisa era caminhar nos quatro dias sequintes, no calordo vale do Rio Jordo, que em seu extremo sul fica 369 metros abaixo do nivel do mar. Certamente fol com grande alivio que Paulo viu o Mar da Galiléia, em seu profundo leito. 0 som das pequenas ondas ao menos dava a impressao de mais frescor, Aessa altura a caravana estava a meio caminho de Damasco. Em seguida a estrada virava para a margem oriental do Jordao @ costeava a vasto pantano Huleh com sua vida selvagem em miriades de formas. ‘Aingreme subida que conduzia ao platé do Golan passava por Cesaréia de Filipe, da qual Pedro falaria a Paulo num futuro nao muito distante. Mesmo que Paulo tivesse visao excepcional, nao conseguiria distinguir Gischala, sua patria ancestral, 2 margem do distante vale do Jordao; 41 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Seja como for que isso tenha acontecida, a unica coisa de que podemos estar seguros é que com essa experiéncia Paulo soube, com a inconfundivel conviecao da experiéncia direta, que o Jesus crucificado por Poncio Pilatos estava vivo. A Ressurreigéo de Jesus, outrora desprezada como fraude, mostrava-se agora uma realidade to evidente como seu prdprio nariz. Jesus continuava a existir, mas em autro plano do ser. Esse era 0 tipo de reconhecimento de que Paulo precisava para sua conversao, pois mudou completamente seu sistema de valores. Esse brutal giro de 180 graus é lembrado por Paulo quando diz: “Fui pego por Jesus Cristo” (Fl 3,12). Com forca dominadora, Jesus se apoderou dele pés sua vida noutro rumo, completamente diferente do da vida ante- rior. E muito dificil, talvez impossivel, encontrar uma ilustracao tao clara do que significa, para Paulo, um ato de “senhorio” de Jesus. 0 primeiro ponto de que Paulo se convenceu, em relacdo a verdadeira identidade de Jesus, foi de que Jesus era o “Senhor’. Uma vez aceito Jesus como “Senhor", devia ser reconhecido como o “Cristo” (0 Ungido). Jesus nao era um “Senhor” qualquer, mas 0 Messias judeu que Paulo estava esperando. Mais ainda: se Jesus era 6 Messias, era o “Filho de Deus”, pois essas duas nogées eram intimamente associadas no judaismo. Portanto, desde o comego da vida de Paulo como cristao, “Jesu: “Cristo”, “Senhor" e “Filho” estavam intimamente associados na mente de Paulo, porque enraizados em sua experiéncia pessoal do poder de Jesus. A idéia seguinte veio naturalmente, porque em sua mente Paulo a pre- se Jesus era 0 Messias, tinha terminado o tempo da Lei. 0 que a Lei exigia para que os homens conseguissem a vira para isso ja estava preparad salvacdo nao vigorava mais. Portanto os gentios, que também esperavam pela salvagao, néo eram em nada diferentes dos judeus. Para ser salvo nao importava mais o seguimento da Lei, mas a aceitagao de Jesus. 0 Messias nao era Messias somente para judeus. Era o Senhor de todo o mundo, No caso de Paulo essa dedugdo racional se afirmou por meio de sua experiéncia pessoal. Se antes, em nome da Lei, tinha-se oposto a Jesus, agora vivia sob 0 efeito da Graga que Ihe fora dada. Sua aceitagao de Jesus em nada dependeu da Lei. Logo, do mesmo modo, a Graga seria dada aos pagaos que a Lei punha do lado de fora. Essas duas compreensées se fundiam numa sé na mente de Paulo. “Aquele que me separou desde o seio matern € que me chamou por meio 2 A CONVERSAO E SUAS CONSEQUENCIAS 45 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. maior. Portanto, nos trés anas passados em Damasco {Gl 1,18), Paulo nao teria tido dificuldade em exercer sua voeagao missionari em quantidade a serem chamados para Cristo. Aprendendo a negociar Em Damasco Paulo nao so fez sua parte de colaboragao como também recebeu muito. Foi pregador, mas também aprendiz. Havia muito a assimilar do cristianismo. Além disso, precisava receber uma formagao profissional para se tornar auto-suficiente economicamente. Somente a independéncia financeira poderia garantir a mobilidade necessaria a um missionario. Como vimos antes, era claro que enquanto viveu em Damiasco e Jeru- salém nao precisou trabalhar para viver. Nas duas cidades havia estudantes de tempo integral que viviam da caridade dos outros. Porém, ele diz que, sendo missionario, teve de trabalhar com suas proprias maos (1Ts 2,9; 2Ts 3,7-9; 1Cor 4,12). Portanto deve ao menos ter aprendido algum tipo de profissio. Nao ha provas de que tenha feito isso nos trés anos passados em Damasco, mas nesse tempo deve ter pensado muito sobre sua futura estratégia missiondria, especialmente depois do fracasso ma Arabia. Havia varias opgoes. Poderia ficar sob a protecao de patrono que 0 sustentasse. Porém estaria 4 mercé de seu senhor, a cujos caprichos teria de adaptar sua pregacao. E ainda ficaria preso a um s6 lugar. Outra alternativa seria mendigar enquanto viajava. A objecao a isso nao era a precariedade da subsisténcia, mas a infestacao, nas cidades do mundo greco-romano, de charlataes, que levavam boa vida enganando pessoas piedosas com falsos milagres. Se Paulo decidisse ser um deles, estaria perdido naquela multidao, Apesar dos preconceitos herdados contra 0 trabalho manual, Paulo deve ter compreendido bem depressa que nao tinha outra alternativa sendo ganhara vida por si mesmo. Precisava ter rendas enquanto viajava. E isso queria dizer que devia tornar-se um artesio profissional. Logo precisava se tornar aprendiz. Que tipo de comeércio seria mais adequado a seus objetivos? Nao pretendia enriquecer, mas apenas sobreviver por sua conta. Sem duvida, Paulo aplicou aqui sua inteligéncia aguda tal como faria mais tarde para resolver os problemas teoldgicos. 0 servicgo a escolher deveria ter suficiente 2 A CONVERSAO E SUAS CONSEQUENCIAS 49 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. rusalém. Ele esperava que seus leitores entendessem o que queria dizer por “para encontrar Cefas” ;o que Paulo realmente queria dizer era “informar-se com Cefas” (GI 1,18). Sobre o que Paulo devia falar com Pedro? Nao faz sentido imaginar que Paulo gastasse duas semanas conversando sobre o clima, a satide de sua sogra ou sobre as saudades do tempo de pescaria no Mar da Galiléia. $6 havia uma questao fundamental na mente de Paulo: Jesus. Quem era realmente Jesus? Sem divida, Paulo em Damasco ouvira histérias sobre Jesus contadas pelos cristdos. Mas so davam informages de segunda mao, nao podiam responder a questdes fundamentais. Ele invejava os que tinham convivido com Jesus em sua vida terrena. Deve ter sentido profundo arrependimento por ter perdido a oportunidade, naqueles anos, de ouvir Jesus pregando em Jerusalém. Mas agora era tarde demais. Pedro era a pessoa ideal para preencher esse vazio. Ele tinha sido tes- temunha ocular das agdes e palavras de Jesus desde quando ambos eram discipulos de Joao Batista. Quando Paulo se encontrou com Pedro pela primeira vez, em 37 d.C., Pedro ja tinha pregado sobre Jesus por sete anos, mais ou menos. De tanto repetir, sua pregacao ja tinha adquirido uma forma fixa. Dava maior énfase as palavras ¢ aos milagres mais importantes de Jesus. Este sim era um material rico para Paulo meditar. Mais importante ainda, Pedro péde responder a todas as questées de Paulo. Apersonalidade de Jesus A partir dessas informagées, Paulo formou uma imagem muito deta- Ihada da personalidade de Jesus. Elas passaram a ser uma parte fundamental de sua pregagdo oral (2Cor 11,4) ¢ a base para sua doutrina ética (Gl 6,2), comportamento de Jesus era téo claro a Paulo, que podia ser imitado (1Cor 11,1), a tal ponto que seu proprio estilo de vida era conscientemente um espelho da “vida de Jesus” (2Cor 4,10). Infelizmente, Paulo nao reproduz em suas cartas 0 vivido retrato de Jesus que ele pintava oralmente (Gl 3,1). Tudo o que nos da é uma breve lista de “fatos”. Jesus nascera numa familia judia (Gl 4,4), descendente de Davi (Rm 1,3). Tinha varios irmaos casados (1Cor 9,5); um deles se chamava Tiago (GI 1,19). Na noite em que foi traido, celebrou com seus discipulos uma ceia final, com pao e vinho, ¢ mandou que dela fizessem um ritual 2 A CONVERSAO E SUAS CONSEQUENCIAS 53 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. por nds" (1Ts 5,9). Em outros termos, a morte de Cristo fora em beneficio da humanidade. Em sua busca pelo motivo da decisao de Cristo, Paulo tinha trocado uma coisa pela outra. Morrendo, Cristo quis fazer esse bem para a humanidade. Portanto, 0 motivo de sua escolha pela morte de cruz foi fazer o bem aos outros, bem que eles nao conheciam e pelo qual nem se interes- savam. Aos olhos de Paulo, esse altruismo se explicava somente como um ato de amor: “Ele me amou, isto ¢, entregou-se por mim" (Gl 2,20). Essa compreensio de tal modo impressionou Paulo, que dai em diante no podia mais pensar na morte de Cristo sem desejar que outros com- preendessem a extraordinaria profundidade e 0 poder do amor que tal morte revelava. Nao lhe bastava falar daquele amor. Tinha de mostra-lo na pratica. Isto é, devia forcar seus ouvintes e leitores ao confronto pessoal coma crucifixéo de Jesus, Dai seu propdsito: “Quando estive convosco eu nao queria saber de outra coisa a nao ser Jesus Cristo, e Jesus, crucificado” (1Cor 2,2). Assim fazia sua corregao ao ensino tradicional sobre a morte de Jesus. Em suas cartas, cita dois hinos litargicos. Um diz: “humilhau-se, sendo obediente, até a morte”, ¢ acrescenta: “e morte de cruz” (FI 2,8). 0 outro hino diz: “Deus quis reconciliar todas as coisas consigo por meio de Cristo”, 0 que Paulo interpreta como “fazer a paz entre todas as coisas, as do céu com as da terra, por meio do sangue de sua cruz” (CI 1,20). Agora fica claro como a morte ¢ 0 iinico fato da vida de Jesus que Paulo sempre retoma em suas cartas. Era importante que seus convertidos entendessem o que Jesus falou € fez, ¢ foi isso que Paulo thes disse em sua pregagao oral (2Cor 11,4), mas, em ultima analise, nao era isso que distin- guia Jesus. Outros mestres ensinavam profundas compreensées teolégicas e éticas. Outros tinham fama de fazedores de milagres. Para Paulo, 0 fato de Jesus poder escolher entre morrer ou nao tornou-o diferente de todos 05 outros, para os quais a morte era inevitavel, no uma escolha. Portanto, a morte de Jesus passou a ser a chave para entender sua vida. Mostrou a Paulo que o que faz uma pessoa genuinamente humana é 0 amor de auto- sacrificio, como o mostrado por Cristo. Que seus Ieitores levassem isso extremamente a sério era o que Paulo mais desejava. 2 A CONVERSAO E SUAS CONSEQUENCIAS 57 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. prosperidade e seguranga, ele precisava controlar 0 todo o vale terra aden- tro, onde as rotas comerciais se cruzavam na fértil planicie de Amuk, com seu lago rico em peixes?. Seleuco construiu sua cidade pouco distante do litoral, na planicie limi- tada a oeste pelo Orontes e a leste pelo sopé do Monte Silpius (492 metros). 0 tragado das ruas era quadriculado, formando quarteirées retangulares, protegidos pelas muralhas ao seu redor. A agora original ficava a margem do rio; nela 0 comércio era intenso. Um aqueduta, comecgando no jardim do subtirbio chamado Daphne, 8 quilémetros ao sul, levava abundante agua doce para a cidade. A beleza ¢ a prosperidade de Antioquia atraiam cada vez mais ha- bitantes, mas seu crescimento era cuidadosamente planejado. No tempo dos seléucidas foi preciso construir mais casas, € novos bairros surgiram, cada um com sua propria muralha. Os dois primeiros ficavam no norte da cidade original e numa ilha do Orontes. 0 terceiro, chamado Epiphania, ficava entre o centro da cidade e 0 Monte Silpius. Mesmo com muralhas proprias, esses bairros mantinham o tragado de suas ruas em quadrilateros, como as da origem da cidade. Feita capital da provincia romana da Siria por Pompeu em 64 a.C., imperadores, reis ¢ simples milionarios competiam pela honra de aumentar seu esplendor. No tempo de Paulo foi transformada na mais romanizada cidade do oriente. Em importancia, so Roma e Alexandria a superavam. Inevitavelmente sua populagao cresceu. Agripa, genro do imperador Au- gusto, acrescentau outro bairro, pravavelmente ao norte do de Epiphania, e fez ainda mais dois banhos publicos. Também aumentou a capacidade do teatro, que pouco depois seria ampliado. Para entretenimento da popu- lagdo crescente, Agripa recuperou o antigo hipodromo. No século I d.C., a populagao era no minimo de 100.000 habitantes. Grande variedade de templos atendia a suas necessidades religiosas, O brilho da Antioquia que Paulo conheceu foi em parte devido a Herodes 0 Grande, cujos edificios Paulo ja admirara em Jerusalém. Um urbanista andnimo, mas inteligente, viu que aquela cidade em expansao precisava, para interligar os diferentes bairros, de uma avenida de propor- 60s grandiosas. Para ela havia espago entre o local onde a cidade nascera ¢ o bairro Epiphania ao sul; e para 0 norte a avenida podia ainda se estender sem problemas. EM ANTIOQUIA APRENDIZABO 61 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. legal. A seus olhos o problema era falso, e toda tentativa de resol vé-lo seria pura perda de tempo. No entanto, Paulo tolerou essa situagao; mas a0 mesmo tempo deixava claro como tinha mudado sua opiniao sobre a Lei. Enquanto fora estudante em Tarso, a Lei tinha sido tanto motivo de orgulho como de embarago. Como fariseu em Jerusalém, seu compromisso com a Lei era total. Como seguidor de Jesus, ficou convencido de que a Lei era completamente irrele- vante para a salvagao. E agora, em Antioquia, tolerava a Lei, vendo nela a caracteristica tradicional que dava identidade étnica aos judeus convertidos. A seu ver, no entanto, a Lei nao tinha importincia maior do que os diversos modos com que outros povas se identificavam, como as vestimentas ou adomos na cabeca, que mostravam suas diferentes origens étnicas. Como conseqiiéncia, Paulo se convenceu de que atribuir qualquer fun- cao a Lei, mesmo que minima numa comunidade crista, seria um convite ao desastre. Sua posigao final foi de que aos judeus convertidos nao seria mais permitido observa-la (At 21,21). Porém, isso somente iria acontecer muito mais tarde, num futuro distante. Miss6es a partir de Antioquia Como a caridade animava a comunidade de Antioquia, era de esperar que se tomasse missionaria. Efeito espontaneo da caridade mitua de seus membros seria © desejo de condividir com pessoas de fora a boa nova do Evangelho. A primeira viagem de Paulo sob o patrocinio de Antioquia é narrada somente por Lucas (At 13-14). Paulo sai com Barnabé para Chipre e depois para a Asia Menor. Uma anilise cuidadosa desse relato mostra muitos pormenores inverossimeis, incompativeis com a realidade’. De quais fontes Lucas dispés e qual uso fez delas? Ao que parece, Lucas obteve informa- goes vagas sobre duas viagens missiondrias, uma a Chipre e outra ao sul da Asia Menor. Ambas sao, em si, provaveis, e especialmente sua relagao com Antioquia do Orontes. Os relacionamentos de Antioquia com Chipre eram fortes. Entre as duas havia parceiros comerciais regulares. As comunicagées maritimas entre elas eram facilitadas pelos pontos de referéncia geografica que aos navegantes altas montanhas proporcionavam: em Chipre os Montes Troodos (1.230 EM ANTIOQUIA APRENDIZABO 65 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. eficacia, mas sem assumir maiores responsabilidades. A fungdo de Paulo nessa primeira viagem missionaria correspondia 4 de Timdteo, quando Paulo passou a agir independentemente de Barnabé. Um viajante numa terra desconhecida A essa altura de sua vida, Paulo teria viajado mais de 3.200 quiléme- tros. Era um viajante experiente. Porém, dessas experiéncias da somente relatos sumarios, anos depois: “Em minhas viagens freqtientes fui exposto a perigos nos rios, perigos de assaltantes, perigos de meu proprio povo, dos gentios, na cidade ¢ no interior, no mar, nas maos de falsos irmaos” (2Cor 11,26). As condicdes das viagens daquele tempo sao bem documentadas, e € possivel ter mais informagdes do que as dadas apenas por Paulo". Essas informacdes nao sio apenas de interesse histérico, pois sua experiencia, integrada numa nova visdo do mundo, teve um impacto significativo sobre sua teologia. O que em 2 Corintios 11,26 mais surpreende é a énfase sobre “perigo” ¢ nao sobre “dificuldade’. 0 elemento “risco”, ¢ nao 0 elemento “combat € o que predomina na mente de Paulo. Nas grandes estradas romanas com pontes, os rios apresentariam pequenos perigos. Porém, estradas secunda- rias cram outra coisa. No leste as pontes eram construidas apenas para a estagdo sem chuva, quando nos leitos dos rios pouca ou nenhuma agua corria. No comego da primavera as enxurradas das tiltimas chuvas de in- verno arrastavam tudo nos estreitos riachos, numa violéncia que até hoje se vé nas margens do Mar Morto e no vale de Arava. Perigos na estrada 0 risco das enxurradas, embora real, era esporadico. Ladrdes eram um desafio muito maior. Até na Italia, por causa da anarquia da guerra civil, a ladroagem era endémica. Os viajantes corriam um risco a mais, o de serem contratados como trabalhadores pelos proprietarios das terras a beira da estrada e depois obrigados ao trabalho escravo. A reacdo do imperador Augusto foi instalar tropas nas estradas e delegar a Tibério a inspegao das prisdes de escravos, para assegurar-se de que nenhum homem livre estivesse preso. Quando Tibério se tomou imperador, precisou diminuir a distancia EM ANTIOQUIA APRENDIZABO S 69 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Origem do conceito de Pecado no pensamento de Paulo Esta descrigo breve e geral é valida para a parte do mundo greco- romano em que Paulo trabalhou, isto ¢, as provincias da Siria, Asia, Mace- dénia ¢ Acaia, Basta um pouco de imaginagao para entender a tenstio em que vivia nesse ambiente. Sua conversao o fizera um seguidor de Jesus, que dera sua vida para a salvacao da humanidade. Essa maneira totalmen- te diferente de vida se tornou o ideal de Paulo. Seu objetivo era torna-la transparente através de seu comportamento, “sempre levando em meu ser a morte de Jesus, para que em mim a morte de Jesus possa se manifestar” (2Cor 4,10). Em cada estrada temia por sua seguranga. Em cada estalagem tinha de desconfiar dos outros, como se fossem ladrées de suas preciosas fer- ramentas, das quais dependia sua vida. Aquelas situagdes 0 obrigavam a preocupar-se consigo mesmo, quando ele desejava ser totalmente dedicado aos outros. Sua vida se tornou um combate perpétuo contra 0 insidioso miasma do egocentrismo. E nessa tens&o que encontramos a raiz do conceito paulino de Pecado. Quando diz: “todos, gregos ¢ judeus, est4o debaixo do (poder do) Pecado” (Rm 3,9), ele esta falando evidentemente de alguma coisa que vai além dos pecados pessoais. Por isso uso a inicial maitiscula para “Pecado”. Nesses textos o Pecado ¢ 0 simbolo ou o mito de um ambito em que os individuos eram obrigados a viver contra sua vontade. 0 auténtico “ego” era posto para fora, cedendo seu lugar ao Pecado (Rm 7,20). Por sua experiéncia de missionatio itinerante, Paulo descobriu que os homens nio cram egoistas por escolha propria. Eram obrigados a isso para sobreviver. Seus padrdes de comportamento eram ditados pelas incontrolaveis pressdes da sociedade. Eram dominados por uma forca superior, um sistema de valores desenvol- vido por sua sociedade. 0 poder desse sistema ficou evidente para Paulo quando experimentou a dificuldade de ser auténtico a si mesmo, propondo- se como modelo da imitacdo de Jesus Cristo (1Cor 11,1). Dai seu lamento doloroso: “Como nao me sentir fraco quando vejo que alguém é€ fraco? Quem é levado a cair, sem que eu fique com raiva por isso?” (2Cor 11,29). Além dessa compreensao dos fatores que impediam as pessoas de serem coerentes com suas aspiragées — “Posso desejar 0 certo, mas nao EM ANTIOQUIA APRENDIZABO 73 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Uma inesperada visita aos celtas Quando Paulo deixou Antioquia da Pisidia, sua intengao era voltar para 0 oeste, para a “Estrada Comum”, em diregdo a Efeso, capital da provincia romana da Asia. Este seria o segundo passo, normal segundo a estratégia dos organizadores de Antioquia do Orontes. No entanto, algo o deteve. Lucas da somente uma piedosa explicagdo. Os missionarios foram “impedidos pelo Espirito Santo de pregarem o Evangelho na Asia” (At 16,6). Nao ha duivida de que Paulo era guiado pela Providéncia, mas seria bom saber exatamente em quais circunstancias a deciséo divina foi comunicada a Paulo. Se a Asia ficara fora do aleance de Paulo, ldgico seria seguir para a Via Sebaste, ao sul. Ela o levaria para fora da provincia romana da Gala- cia, onde muitos criticariam sua atividade, e também para a provincia da Panfilia. Lucas nao explica por qual motivo uma op¢ao obvia como essa foi rejeitada. Em vez disso, apenas diz que Paulo decidiu ir para o norte, a provincia da Bitinia. Exatamente entre Antioquia da Pisidia e o Monte Sultan a provincia da Asia avanga em diregio ao leste*. Para ficar 0 mais perto possivel da fronteira leste da provincia, Paulo deve ter ido, de Antio- quia da Pisidia, para a estrada de Ancira, que a nordeste fazia uma curva na direcao de Germa, de onde ele poderia ter voltado a noroeste para Doriléia, e dai ento para a Bitinia’. Esse projeto também faliu. Com sua habitual inclinagao a ajudar, Lucas apenas diz que “o espirito de Jesus nao lhes permitiu” (At 16,7). Mas desta vez, felizmente, é 0 proprio Paulo quem explica como a Providéncia agiu: ele ficou doente. A partir da alusao a um “espinho na carne” (2Cor 12,7), muitos peritos concluiram que Paulo teria algum tipo de doenca congénita, fisica ou psi- colégica’. Nenhuma dessas solucées resiste a um exame rigoroso. Quando se pensa nos milhares de quilémetros que ele ja tinha percorrido em lugares tao diferentes, fica claro que Paulo gozava de boa satide c tinha constitui robusia. Portanta, nesse caso, devemos supor uma crise momentanea, cuja natureza nao podemos determinar. Como 0 resultado de sua doenga foi a evangelizagao dos galatas, Paulo deve ter cruzado o Rio Sangario (atual Sakaria) estando doente, porque nes- se ponto o rio éa fronteira sul do territorio galata étnico com aquela parte da provincia romana da Galacia®. Para além do rio, a tnica cidade galata A VIAGEM PARA A EUROPA 4a Ve «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. No entanto, naquele momento, Paulo pode ter visto as vantagens de uma estadia mais longa em Pessinunte. Esta cidade nao so era 0 maior centro comercial da regio, mas sediava o templo da deusa mae dos deuses, poderosa atragao de peregrinos. Apesar de seu culto estar difundido por toda parte no tempo de Paulo, Pessinunte era 0 lar de Agdistis/Cybele, a suprema divindade da Frigia, adotada pelos galatas. Era 0 unico lugar do mundo antigo em que a deusa reinava soberana. Attis, o deus agregado a seu culto, era apenas seu criado ¢ acompanhante inferior. Naturalmente, isso influenciava 0 status da mulher na Frigia. Sem duvida reforgou 0 reconhecimento, por parte de Paulo, dos mesmos direitos das mulheres cristas em relacdo aos homens. Como Pessinunte era uma cidade atraente, no verao de 47 d.C. deve ter ficado agitada com muita gente de fora, com quem Paulo poderia entrar em contato, e que talvez 0 procurasse por seu competente trabalho com 0 couro. Se exerceu seu ministério em Pessinunte por um longo tempo, 0 que € muito provavel, foi obrigado a permanecer la no inverno de 47-48 d.C., pois do contrario teria de ter partido para o platé da Anatolia antes que o inverno comegasse. No comeco do verdio de 48 d.C., Paulo fez © que pode pelas comunidades que fundara na Galacia. Ele Ihes dedicara mais ou menos 0 mesmo tempo gasto com outras fundagGes. Mas havia mais trabalho a fazer em outros lu- gares. Mesmo com compromisso to sério, o coracao de Paulo deve ter ficado pesaroso ao dizer adeus aos que tinham sido tao generosos com ele enquanto doente. Nao é provavel que cle tivesse planos para voltar um dia. Nessa fase de sua carreira achava que sua missao era apenas fundar Igrejas. Sustenté-las, uma vez que Ihes fossem tiradas as fraldas, era responsabilidade do Espirito Santo. Paulo entenderia logo que as coisas nao eram tao simples assim. Para o oeste e para a Europa Sabemos, pelas prdprias epistolas de Paulo, que depois de evangelizar a Galacia foi fundar Igrejas na provincia romana da Macedénia, no norte da Grécia. Infelizmente, ele mesmo nao diz como chegou la. As poucas palavras de Lucas, “tendo passado pela Misia desceram a Troas” (At 16,8), dao larga margem para claboradas hipoteses. Mas a primeira vista dao a entender que Paulo apenas seguiu uma variante de seu plano original. A VIAGEM PARA A EUROPA 4a 81 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. pesada arrebentacao, quando foi arrastado para uma praia pedregosa. Mas esse pensamento nao bastaria para acalma-lo noutra ocasido, quando foi langado na agua, no meio de uma tempestade em que o barco foi perfurado pela ponta de uma pedra do fundo. Qualquer experiéncia desse tipo faria muita gente ficar longe do mar para sempre. Se Paulo continuau, foi porque era necessario. Uma viagem poderia ser 0 tinico modo, ou o mais rapido, para chegar de um ponto A a um ponto B (como no caso de que tratamos agora). Ele acreditava que havia pouco tempo antes da volta de Cristo com sua gléria; era seu dever ir ao encontro do maior numero possivel de pessoas para anunciar-lhes 0 Evangelho. Se sofresse ou se ficasse tomado pelo medo, simplesmente tinha de aceitar as coisas assim como cram. Lucas da a impressdo de que essa primeira viagem ocorreu sem inci- dentes: “Levantando velas de Troas, fomos direto para Samotracia e no dia seguinte chegamos a Nedpolis” (At 16,11). Passaram a noite em Samotracia. Tais pernoites eram normais e mais uma razao para explicar a necessidade das tendas. Uma olhada no mapa mostra por que os navios daquele tempo nao velejavam de noite no inverno"’. Para chegar a Samotracia, saindo de Troas, capitao (1) tinha de deixar a ilha de Tenedos a sua esquerda, (2) evitar adiante uma série de ilhotas desabitadas, (3) ter cuidado para que o grande volume da corrente do Helesponto (atual Dardanelos) nao 0 arrastasse para a ilha de Lemnos enquanto se esforgava para contornar a ilha de Imbros (atual Gokce) a oeste, Num mar tio cheio de perigos, s6 era seguro viajar de dia, quando o barco podia ser levado com seguranca de um a outro ponto geografico. No inverno a visibilidade podia ser drasticamente diminuida pela neblina, pela maresia, pelo céu ameacador. Tudo isso aumentava ainda mais os perigos, dado que de outubro a abril ninguém aceitava fazer seguro maritimo. Apés Samotracia, os viajantes passaram ao norte da ilha de Thasos e chegaram com seguranga ao porto de Neapolis na véspera do segun- do dia. Q capitao nao era apenas um competente navegador; ele sabia interpretar 0 tempo com extrema precisdo. Para fazer o percurso de 60 milhas nauticas (112 km) em dois dias consecutivos, 0 barco tinha de percorrer em média 5 nés'2, isto 6, precisavam do vento em popa ou de la- do, do vento mais favoravel possivel na diregao do destino desejado ou A VIAGEM PARA A EUROPA 4a 85 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. trabalhadora: para ganhar a vida tinham de labutar doze horas por dia, sete dias da semana. Nao ha o menor trago de um patrono rico em Tessal6nica. Nem havia quem pudesse dar hospedagem & comunidade; que todos contribuissem para a refeigdo comum (2Ts 3,10). Os cristaos de ssim esperava-se Tessaldnica se reuniam em corticos, nao em ricas residéncias. Nao mais um salao, mas uma oficina Assim, em Tessalénica, 0 cenario do ministério de Paulo era uma oficina, mao um grande salao. Nao sabemos quem 0 empregou, nem qual era o tama- nho do estabelecimento. E claro, porém, que havia grande procura por tendas € outros artigos em couro numa cidade com tantos comerciantes de passagem. Tessalénica tinha a vantagem de sera cidade mais importante da Via Egnacia e de ter um porto excelente e bem defendido; uma importante rota comercial saia para o norte, pelo vale do Rio Axios, até a bacia do Danubio. A oficina que ficou sendo 0 endereco de Paulo era a base estavel de uma rede de contatos ja organizada pelo seu empregador, por seus fregueses ¢ companheiros de trabalho, Todos esses trés grupos tinham suas familias e amigos; entre eles haveria um continuo intercambio muito variado em diferentes niveis, e disso tudo Paulo tirou proveito (“trabalhando anuncia- mos” ITs 2,9). Essa oficina estaria numa rua movimentada ou num mercado, mundo novo que exigiria ainda mais energias de Paulo. Assim que o ministério de Paulo comecava a dar frutos, inevitavel- mente precisaria encurtar seu tempo de trabalho, diminuindo igualmente seus ganhos, pois certamente seus trabalhos eram ocasionais, nao com salrio fixo pago por um patrao. Como sobreviveu? Foi pela generosida- de dos filipenses, que Ihe mandaram dinheiro (FI 4,16). Sera que algum filipense, visitando-o, percebeu como era precaria sua situacao? Ou Paulo mesmo teria pedido ajuda, sabendo muito bem que seus convertidos de Filipos tinham recursos para ajuda-lo? Isto 6 0 que parece mais provavel. Ele estava convencido de que quem dava bens espirituais merecia receber em troca bens materiais (1Cor 9,11); ele se refere 4 ajuda de Filipos como “despajo” (2Cor 11,8). Talvez porque eles também eram comerciantes, ou porque suas lideres tivessem maior preocupacgao com os pobres; o fato é que os filipenses foram inteligentes o bastante para entender que, quanto maior fosse o ministério de Paulo, menos tempo teria para se ocupar com A VIAGEM PARA A EUROPA 4a 93 «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. «a You have either reached a page thatis unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. era um lugar em que enfrentaria “perigos de ladrées, ... perigos do deserto” (2Cor 11,26). A passagem pelo Istmo Em Schoenus constatou pela primeira vez o dinamismo da cidade de Corinto. O Istmo, faixa de terra de 6,4 quilémetros de largura, era a ligagao terrestre que facilitava 0 comércio entre o Peloponeso e 0 interior da Grécia; porém era impedimento para os navios que viajavam de leste para 0 oeste. Os marinheiros precisavam de um caminho altemativo ao longo contorno do Peloponeso por mar. Porém, desde o comeco do século VI a.C. os corintios procuravam abrir um canal. Mas esses projetos no deram em nada; somente uma solucao engenhosa € provisoria funcionou por 1.300 anos. Foi o caminho pavimentado com pedras, 0 diolkos, para ligar os golfos de Corinto e 0 SarOnico. Sua largura variava entre 3,4 ¢ 6 metros. Através do Istmo dois sulcos no chao, distantes 1,5 metro um do a para levar barcos de peque- no porte ¢ outras mercadorias. Pelos caminhos de terra, animais de tracdo puxavam os troles*. A multidao apinhada e barulhenta da estrada por onde Paulo devia ir abrindo caminho terd sido sua primeira experiéncia conereta do tipo de vida que levaria em Corinto. Nunca tinha visto coisa igual. Comparadas ‘0, as Cidades interioranas da Asia e da Macedénia eram sonolentos oasis de sossego; IA sua pregacdo podia ser comparada a um agradavel passatemipo. Corinto tinha mais atividade comercial do que podia suportar. Q imenso volume de comercio tinha aumentado imensamente o numero de viajantes, A riqueza chegava facilmente aos que trabalhavam duro; a competicao feroz garantia sobrevivéncia somente dos mais decididos. “Viajar a Corinto nao € para qualquer um", dizia um dos mais famosos provérbios do mundo antigo. Sem diivida, Paulo se perguntava se um povo tao atarefado ¢ tao acupado, tao ansioso pelo lucro, teria algum tempo para ouvir sua mensagem. Uma vez mergulhado na multidao, Paulo se viu num mundo comple- tamente diferente. A estrada levava ao templo de Posséidon, em Istmia. Mesmo com sua reforma recém-comegada, 0 local devia lembrar os Jogos istmicos, uma das cinco maiores celebragdes pan-helénicas, comemorada outro, guiavam as rodas dos troles de mad com RUM® AO SUL, PARA A ACAIA 5 101

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