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LYGIA BOJUNGA O PINTOR 22 EDIGAO AGIR Copyright © 1989 de Lyeia Bojunga Nunes Direitos de edigao para a lingua portuguesa reservados a AGIR S.A. EDITORA proibido reproduzir este livro, no todo ou em parte, ‘por quaisquer meios, sem permissao expressa de "AGIR S.A. EDITORA Capa: Rui de Oliveira Foto: Peter Lopez. CIP-Brasit. Catatogasto-na-fonte Sindicato Nacional dos Editorer de Liveos, RI Nunes, Lygia Bojanga, 1932- N926p ‘O inter = teatro / Lygia Bojunga Nunes, ~ 2. ed. ~Rio me de Janeito ARIE 10 ISBN 85-220-0303-3 1, Teatro brasileiro (Literatura). 2. Peas infamis. 1 Tilo cpp 869.92 96-1665 DU s69.0¢8 SEDE: rua dos Invilidos 198 cep 20231-020 tel: (021) 509-6424 fax: (021) 509-3410 caixa postal 3291 cep 2001-970 Rio de Janeiro, RI Impresso em dezembro de 1996 PERSONAGENS CLAuDIO — 10 anos Rosktia — 10 anos IRMA = — 15 anos Janaina — 15 anos PINTOR MAE PAL CLARICE SinDIco eas Trés Figuras do Quadro (que podem ser feitas pelas atrizes que representarem os papéis de Mae, Irma e Ja- naina). O PINTOR Os personagens esto iméveis em cena (com exce- gio do Pintor). Cléudio no meio do palco. E trés grupos espathados: Pai e Me; Irma e Janaina; Sindico e Ro- sdlia, Luz esbatida. Tempo. O rel6gio bate. Mie: Ele morreu? PAI: Fala baixo, o Cléudio esté af na sala. Mae: Mas morreu quando? Pat: Parece que foi essa madrugada. Mie: O Claudio vai ter um choque: ele gostava demais daquele pintor. Pat: E melhor nao dizer nada agora: nao té na hora dele ir pra escola? Mie: (Faz que sim.) Pat: Entao deixa, Quando ele voltar a gente conta. Mie: O enterro é ainda hoje? PAI: Nao sei, vou perguntar pro sindico. (Se en- caminha para 0 Sindico e Rosélia.) Mie: (Olha um instante pra Claudio; sai.) Pat: (Pro Sindico, tom discreto.) O enterro do Pin- tor 6 hoje? Sinpico: Ah, o senhor j4 soube que... Pat: B, eu ja sei que ele morreu. Sinpico: Morreu, nao. Ele... (Olha pra Rosdlia; pega o Pai pelo braco e se afasta um pouco; cochicha pro pai.) Par: (Se espanta; fica chocado.) E mesmo? Rosia: (Segue os dois fingindo que nio estd pres- tando muita atengao.) Sinpico: E pra mim isso aconteceu por causa das idéias politicas que ele tinha. Pai: O Claudio vai ficar muito impressionado se souber disso. 10 Sinpico: Esse Pintor ja esteve preso, o senhor sa- bia, nao 6? (Olha pra Rosdlia e volta aos cochichos en- quanto vao saindo.) JANAINA: "Tao dizendo que foi ela a culpada da morte do Pintor. IRMA: A Dona Clarice? JANAINA: (Faz que sim.) Vocé conhecia ela? IMA: Quem conhecia era o meu irmao, o Claudio. Ele ia sempre lé em cima jogar gamio. (Gesto pro es- ago do Pintor.) Uma vez o Pintor até disse pra minha mie que jogar gam&o com o Claudio fazia bem pra cuca dele. Sabe que ela é casada? Janafna: A Dona Clarice? IRMA: Casada e com filho. Mora no Rio. Vinha aqui em Petrépolis s6 pra encontrar com ele... JANAfNA: Semana passada quando eu entrei no ele- vador eu dei de cara com ele de mao dada com uma mu- Iher. Devia ser ela. Tava com um vestido de uma cor linda! Uma cor assim... sei 14, bem que eu queria sa- ber que cor que é aquela. IMA: Fala com o Cléudio. Nunca vi ninguém tao ligado nesse negécio de cor. (E sai com a Janaina.) Tempo. " Luz s6 em Claudio. Crévpio: (Perplexo.) Morreu?! © meu amigo mor- reu? Nao pode. Eu ontem estive ld, ele nao tinha nada. ‘A gente jogou trés partidas, uma atrds da outra, ¢ ele nao tinha nada! (Sai correndo pro upartamento do Pintor.) O plano superior se ilumina, revelando agora com nitidez uma verdadeira orgia' de cores: quadros pendu- rados, telas inacabadas, paleta, tintas, livros, cavalete, etc. Em destaque: o reldgio, a mesa com o tabuleiro de gamao (uma cadeira de cada lado) e um quadro com trés figuras mascaradas (uma figura é preta, outra é branca, outra, amarela). Porta entreaberta ao fundo (presumi- velmente, a porta do quarto). C1Aupio: (Entra correndo no apartamento, mas logo para, e se aproxima devagar da porta entreaberta. Espia. Recua, tomado de emogao forte. Vai pra junto da mesa de gamao. Mexe nos dados e nas pedras, querendo segurar a vontade de chorar.) O som dos dados e das pedras vai formando um ritmo caracteristico, que se reproduz em tom baixo. Créupio: (Escorrega pra cadeira; esconde a cara no tabuleiro.) Tempo. A Mae eo Pai surgem por trds de Claudio. 12 Par: Vem, meu filho, vamos pra casa, vem Caupio: (Faz que nao.) Mie: Vocé tem ensaio da pega de teatro, Seus co- legas jé telefonaram dizendo que voce tem que ir. CLéupto: (Faz que nao.) MA: Mas vocé aceitou tomar parte na pega, agora nao pode faltar ao ensaio, té na hora, vem. CrAupio: (Fica quieto.) O Pai ¢ a Mae insistem, mas nao se ouve mais 0 que eles dizem: 0 ritmo das pedras e dos dados aumen- tou: Cléudio mergulhou numa recordacao. O apartamento escurece. Sé a mesa de gamio fica iluminada. O Pintor vem se sentar em frente a Claudio. Jogam. CLéupro: Boa jogada. PinTor: S6 que nao adianta: yocé hoje té com uma sorte danada. CLAupto: (Joga os dados.) Pintor: Nao disse? Com isso vocé vai ganhar a partida. (Otha Cléudio movimentar as pedras.) Tail (Acende o cachimbo e levanta, enquanto Claudio come- ¢a a arrumar as pedras para uma nova partida.) Eu tenho um presente aqui pra vyocé. CLAupIo: Que que é? 13 Puntor: (Pega um dlbum.) Eu fiz um élbum pra te mostrar melhor esse negdcio de cor que a gente tem conversado. Olha. (Vai folheando.) Aqui eu fiz um es- tudo de amarelos e azuis; aqui é pra vocé ver no que que vai resultando a mistura dos dois; ah! aqui eu resolvi pintar o céu de uma manha de verdo, mas ai eu me apai- xonei tanto pelo sol e pelo azul que eu quis pintar o céu bem grande: por isso que eu juntei as duas folhas assim. (Vira as fothas.) Daqui pra frente eu botei algumas re- produgGes de quadros famosos que tém a ver com essa mistura de cores que eu mostro aqui. C1Aupto: E essa mulher azulada? Pintor: Foi o Matisse que pintou. CiAupio: Quer dizer que ele também pintava mu- Ther azul? Pinto: Também por qué? CrAupto: Porque uma vez vocé pintou a Dona Clarice toda amarela. Pintor: Pintei ela amarela porque ela estava con- tente, ora. C1Aupto: (Meio que ri.) Pois €, e eu contei essa hist6ria 14 em casa numa hora que o pai da Rosélia ‘tava de sabe o que que ele disse? Pintor: Quem é que é a Rosélia? 14 CLiupio: E uma amiga minha do terceiro andar. Quer dizer, ela és6 um pouco minha amiga porque cu acho ela meio chita. E ainda por cima o pai dela 6 sindico aqui do edificio. Prntor: Ah, o Sindico. Criupto: Pois é, entdo o pai da Rosélia disse que pintor que pinta mulher amarela é porque nio sabe pin- tar mulher como ela 6. (Cara de pouco caso.) Tipo do cara que no saca nada de arte, nfo &? Pinror: Mostra pra ele esse Matisse. Aproveita e ensina pra ele quem é Matisse. Té vendo essa mancha que eu fiz aqui? Que cor que 6? CiAupio: Nao é a tal cor de siena? Pintor: Parecida. Siena é essa aqui. CiAupio: Entdo que cor é essa? Pintor: Cor-de-saudade. C1aupto: E desde quando essa cor existe? Pintor: Desde o dia que eu inventei... (E vira @ pagina.) Cxkvpro: (Aponiando.) Pintura abstrata! Pinror: Tormie Ohtake, Cores profundas. Quanto mais eu olho pra essas cores, mais coisa vai saindo de dentro delas. 15 CiAupIo: (Duvidando.) Hmm.... (O Pintor olha pra ele.) Esse negécio de tanta coisa ir saindo de dentro de uma cor... isso nao birutice de pintor? Pintor: (Meio que ri, faz que ndo, vira a pagina.) CrAupio: Ah, 0 seu quadro! aquele ali. (E aponta © quadro das trés figuras mascaradas.) Pintor: (Fazendo que sim.) E a reprodugao dele. CrAupio: (Lendo.) Amor? 0 nome desse quadro é Amor? Pintor: (Faz que sim.) Amor. CLAupio: Mas que amor? Pixror: Amor de muita coisa misturada, Amor de trabalhar. De pintar. Amor de homem ¢ de mulher, de pai, de mie, de cidade-pafs-e-mundo onde a gente mora, amor de filho, de amigo. Amor assim feito a gente tem um pelo outro. CrAupio: (Leva um susto.) Pintor: Que foi? CrAupto: E que... bom, € que... desde que a gente ficou amigo que eu... gosto de vocé assim. assim grande, sabe como é que €? Mas eu sempre pensei que vocé gostava menos de mim. Nao sei se porque eu sou crianga e vocé nao; ou se porque voce é um artista © eu 16 nfo; s6 sei que quando vocé falou em amor meu coraco dew até um puldo porque eu nunca pensei que a gente podia se gostar igual. Quer dizer, cu ndo sei se é igual. (ntrigado.) Como & que voce gosta de mim? Pintor: Depende. Tem dias que cu gosto feito pai: me dé pena de yocé nfo ser meu filho, de ndo poder dizer: fui eu que fiz esse garoto legal! (Meio que ri. Fica sério. Levanta.) Mas af, no outro dia, eu nfo tenho ne- nhuma vontade de ser teu pai: quero s6 ser teu amigo € pronto. As vezes eu gosto de vocé porque vocé € 0 meu parceiro de gamio; outras vezes porque eu tenho von- tade de ser vocé, quer dizer, de ser crianga de novo. Entio é isso: cada dia eu gosto de vocé de um jeito. E se a gente junta tudo que é jeito vé que gosta bem gran- de, vé que € amor. (Se imobiliza.) O apartamento se ilumina de novo. CrAupio: (Vai olhar outra vez 0 quarto para se certificar que 0 Pintor morreu mesmo. Sai apressado.) RosAuta: (Grita do outro tado do palco.) Claudio! CrAupi0: (Péra, olka pros lados.) Rosia: Sou cu, a Rosaaaaaaaadlia. (E vem an- dando felto quem wm wm segredo: ponta de pé, dedo na frente da boca.) Tenho um segredao pra te contar. Ciévupro: ? RosAtia: © teu armigo Pintor foi pro inferno, W CLAupIo: 2? ROSALIA: Ele se matou. E diz que quem se mata vai pro inferno. Tempe. CrAupw: (A fala afinul desempucu.) Quem disse que ele se matou? RosAia: Ele deixou uma carta dizendo. CiAuio: Cade? RosAt1a: Nao foi pra gente nao. Foi pr'aquela ami- ga dele que vem af. CLAupIO: A Dona Clarice? Rosauia: E. CiAupio: E 0 que que ele diz na carta? RosAu1a: (Sacode 0 ombro com cara de quem nao 14 ligando.) A essas alturas ele jé torrou no inferno igual- zinho feito 0 frango que a minha mae esqueceu no forno. (E sai, meio pulando, meio dangando.) CrAupio: (Pega ela pelo braco.) Voce té inventan- do, é mentira, é mentira! Rosia: Pergunta s6 pro meu pai. Civpio: 0 teu pai nao sabe nada! O teu pai nao gostaya do meu amigo Pintor. Rosia: O meu pai é muito melhor do que o teu, viu? Mas se vocé néo acredita no meu, pergunta pro teu, pra ver s6 se o teu amigo nao t4 torradinho 14 no inferno. (E faz caretas horrorosas.) CiAupio: © diabo de garota! some da minha fren- te, some!! (Sai empurrando Rosdlia.) Luz na mesa de refeigdes. O Pai, a Mae e a Irma estdo comendo. CrAupio: (Se aproxima, ofegante.) Eu queria saber se € verdade que o meu amigo... se matou. A familia ndo responde. Cléudio olha de um pro outro. Sai. Mie: (Baixo.) Quem sera que contou pra ele? Par: Eu nao queria que ele soubesse. IRM: Por qué? Pai: Ele s6 tem 10 anos. E suicfdio € uma coisa dificil de entender. Luz s6 em Claudio. Ele vai se sentar na cama. Estd doido e perplexo. CrAupio: Por qué? Por qué? (Pega o dlbum que 19 0 Pintor deu pra ele. Olha intensamente pras paginas.) Por qué? O reldgio bate horas. CrAupio: (Se assusta com as batidas. Mas é um susto contente. Esquece o dlbum. Vai até esquecendo a dor. Se concentra em “Id em cima™ querendo ouvir as batidas do reldgio.) ‘As batidas se superpdem. Indicando passagem de tempo e criando uma musicalidade. Créuvio: (Se deita e fica curtindo aquele som.) Mais lentas as batidas; mais lentas. Até que param. CiAupio: (Escuta intensamente “ld em cima”. Mas agora é sé siléncio. E 0 siléncio déi na cara de Claudio. Ele fecha os olhos.) As Trés Figuras, pertencentes ao quadro “Amor”, entram em cena. Elas usam mdscaras, salto alto, vesti- mentas soltas e longas, e apesar de muito estranhas elas devem ser atraentes. Entram coladas uma na outra, como estiio no quadro, num passo estrartho de sonho. Se possi- vel, efeito sugerindo nevoeiro. As Figuras param. Cléudio se levanta e comega a procurar uma coisa. Figura PreTa: Que que vocé t4 procurando? CtAupio: O meu amigo Pintor. Onde € que ele anda? 20 Ficura AMARELA: TA se preparando. CrAupio: Pra qué? Figura AMARELA: Pra tomar parte no teu sonho. CLAupio: Ah 6? ¢ que papel que ele vai fazer? Ficura AMARELA: Dele mesmo: 0 Pintor. Ficura Branca: Ele vem aqui pintar a gente. FiGuRA PrETA: Olha ele chegando. Pintor: (Entra de pincel ¢ paleta na mao; cachim- bo na boca. Vai pra frente das Figuras e comeca a “pin- td-las”.) CiAupio: (Estd encantado de ver o pintor.) Que bom que vocé veio! eu tava querendo tanto te contar uma coisa. Pinror: Que é? Cr&upto: Eu comecei a sacar melhor aquele neg6- cio de cor que a gente conversava. E com essa histéria do reldgio entio, eu saquei ainda mais. PINTOR: Hist6ria do relégio? que relgio? CrAupio: © teu. De parede. Eu gosto demais da- quele reldgio. a Pintor: E eu também. (Se distrai com a lembranga do relégio; vai parando de pintar; e durante a cena se- guinte acaba seniando no chao com Cléudio.) J4 ando sentindo falta daquelas batidas. CiAupio: Eu nunca te contei, sabe, mas o pessoal 1d em casa reclamava & bega do teu relégio. PINTOR: Ah é? Luz na mesa de refeigdes da casa de Cldudio: Mae, Pai ¢ Irma Mie: (Olhando pra cima.) ©, mas que coisa mais enjoada essa bategao de reldgio. Pat: Se batesse s6 as horas, tudo bem. Mas cada meia hora também?! IRMA: Scté que csse Pintor nunca vai se esquecer de dar corda no relégio nao? 2 vai Pat: Se eu acordo de noite fico naquela david: bater? jé bateu quantas? Mie: E se dé uma pancada 6, a gente fica pensan- do aflita, seré que € uma hora? ou foi sé uma meia hora que ele bateu? Pat: Pois é, a vida da gente acaba ficando confusa por causa dessas coisas. . IRMA: Bom, mas também a tinica coisa que a gente ouve 1d em cima € 0 reldgio, nao é? Se nao fosse o relé- gio batendo ia até parecer que ninguém morava 14. A luz-sobre a mesa se apaga. Pintor: Ainda bem que eles sabem que eu sou um cara quieto... CLAupIo: Mas 0 que eu queria te contar nao é isso. Eu queria é te dizer que na terca-feira, quando eu che- guei da escola, eu fiquei sabendo que vocé tinha mor- rido.. Ficuras: Psiu!! CrAupio: ... ¢ nessa hora eu comecei a me sentir todo escuro por dentro. ‘Tao escuro que nao dava pra enxergar mais nada dentro de mim. Mas af... Pinror: Nem precisa contar, eu ja sei: 0 relégio comegou a bater. CrAupio: Foi. Pintor: Bater & bega. Porque era meio-dia. CLAupIo: Ué, como & que vacé sabe? Pinror: Ora... CrAupro: Pois é: meio-diasissimo. inToR: E se eu te perguntar que cor que tinha aquela batida, CrAupio: Eu respondo correndo: amarela!! AMA- RELA! 23 Pintor: (Rindo.) Ah, entdo vocé ficou igual a mim: deu pra achar que amarelo é uma cor contente. Ciéupio: (Ri também e faz que sim.) Pintor: Entéo foi bom ouvir aquele meio-dia, nao é? Crévpto: Tao bom! Cada batida dava mais a im- presso de que todo o mundo tinha se enganado e que vocé continuava vivinho ld em cima. E eu ndo quis mais saber de ir a lugar nenhum. PinToR: S6 pra ficar escutando o relégio bater? C1Aupio: (Faz que sim.) E no principio ele bateu amarelo bem forte. Pintor: Mas a corda dele s6 dura uma semana e eu dei corda na... pera af, quando foi mesmo? CrAupto: Pois é: 14 pelas tantas 0 amarelo das ba- tidas foi ficando mais fravo. Pintor: Hmm... as batidas se arrastando CLAupt0: Se arrastando com aquele amarelo cada yez mais desanimado, cada vez mais esbranquigadv. Eu quis ir 14 dar corda nele. Pinror: (Fazendo que nio.) A porta estava tran- cada. 24 CLAupio: Eu nao sabia se alguém tinha ficado com a chave. Pintor: A Clarice ficou, A fala dos dois vai ficando também arrastada. - cu fi Créupto: E ai... quando cu fui dormir quei esperando, esperando. .. E nada. Pintor: Ele nao batia mais nada? Ciéupo: Nada. S6 aquele branco todo. PinTor: Siléncio é uma coisa tio branca, nao é? C1Aupto: E foi sé ai que eu vi mesmo que voce tinha morrido, c que branco doia mais que preto; ama- relo nem se fala! dofa mais que qualquer cor. Os dois ficam olhando pra frente, sentindo a dor do siléncio. Irma: (Chega rapidinho junto de Claudio, embru- lho na mao, falando baixo.) Cléudio, a Dona Clarice tai. O Pintor se levanta abruptamente. Ele e as Trés Fi- guras desaparecem em passos de sonho, recuados. O ne- voeiro some. CiAupio: (Fica um momento atordoado; depois se espanta.) A Dona Clarice?! Aqui em casa? 25 IrMA: Ela trouxe isso aqui pra vocé, e eu disse que vocé queria falar com ela. Vai 14. Ela ta na porta esperando. Cxaupto: (Olha pro embrutho.) £ a letra dele. (Lé.) “Para o meu parceiro de gamio.” (Comega a desembru- thar © pacote.) IrMA: (Baixo.) Vai 14, Cléudio! Ela t4 esperando. C1Aupto: (Baixo.) Digo o que pra ela? IMA: Ué, vocé nao disse que queria falar com ela? C1Aupto: Mas digo 0 qué? IRMA: Diz 0 que a gente diz nessas horas: que ficou com pena... que... CLAupK Que 0 qué? IRMA: Mas voc8 nfo disse que queria pedir pra ela dar corda no relégio? CrAupio: (Faz que sim e vai andando em diregao @ Clarice, abragado com o embrulho.) IRMA: (Vai atrds de Claudio, feito “irma mais ve- tha que vigia”.) (Cldudio ¢ a Irma param em frente de Clarice.) CLARICE: Oi, Claudio. 26 C1dupio: Ele diz na carta por que que ele se maton? (Susto e choque de Clarice e da Irma.) IRMA: (Disfarga e vai saindo de perto.) Ciarice: (Passa a mao pela testa num gesto ner- voso.) Ele pediu pra cu dar o jogo de gamio pra voce. Tempo. Os dois ficam olhando pro embrulko. Cxarice: (Olha pro chio, mas fala com firmeza.) Ele nfo se matou nv. Ele morreu que nem... que nem todo 0 mundo um dia morre. Tchau. (E sai depressa.) CAupio: (Sente um alivio grande; meio que ri.) Irmk: (Zangada, voltando pra perto.) Puxa vida! como € que vocé faz uma pergunta assim to horrivel pra ela?! C1Avpio: Saiu sem querer. InmA: Nossa! CxAvp10; Nao deu tempo de segurar. Mas viu s6? & mentira: cle ndo se matou, Ele morreu feito todo o mundo um dia morre. (Acaba de desembrulhar 0 pacote.) Que bom que ele mandou isso pra mim. Hoje era dia da gente jogar. (Examina as pedras; a mao faz uma festa meio disjargada no tabuleiro. De repente se lembra.) O rel6gio! (Ele e a Irma correm pra janela.) IMA: Nao adianta, ela j4 té pegando um téxi. 27 CrAupio: Ah, que burro! como é que eu fui me esquecer de falar no relégio. (Comega a arrumar as pe- dras no tabuleiro de gamdo.) Ela sabe de tudo isso me- Ihor que ninguém, e ela disse que ndo foi de propésito, viu s6? (Sacode os dados no copo. Solta eles no tabulei- 10.) Assim... quando n&o € de propésito, esse negécio de morte nao fica ti fio... tao vermelho, nav é? IMA: Tao 0 qué? CiAvpi0; Vermelho: dificil de entender. IrmA: (Olha pra ele intrigada e sai.) C1Aupio: (Vai mexendo com as pedras. Lanca os dados de novo e passa pro outro lado do tabuleiro pra jogar pelo outro.) O som dos dados e pedras jd se transformou no ritmo caracteristico das recordagdes. Janaina surge em sintonia com o ritmo, transbor- dante de vermelho. Claudio fica deslumbrado olhando pra ela. Entram a Irma, o Pai e a Mae. IRMA: Claudio, essa é uma colega minha, a Janaina. Mie: Que nome bonito: Janaina. IrMA: Ela vem morar aqui no prédio. 28 JanaiNa: (Ao passar por Cldudio faz uma festa nele.) Gracinha A miisica aumenta, encobrindo os outros sons. Ja- naina ri; fala com um, com outro; vai na janela; danca, se exibindo e exibindo o vestido vermelhissimo que ela usa. Claudio esté hipnotizado por Janaina, E aia Janaina vai embora e a musica vai sumindo. Os quatro vao pra mesa e durante um instante co- mem em siléncio. Caupt0: (De repente anuncia solenemente.) Eu tou apaixonado pela Janaina. Um momento de espanto. Depois a familia cai na gargalhada, IRMA: Mas a Janaina tem 15 anos, Claudio! Créupio: E dai? Por que que eu nao posso me apaixonar por uma mulher mais velha? Pai, Mae e Irma se entreolham; riem CLaupto: (Fica emburrado.) Vocés podem rir & vontade, mas eu vou continuar apaixonado pela Janaina, pronto. (Vira pra platéia.) E continuei. Fiquei um més in- teirinho apaixonado. $6 esperando o dia da Janaina vol- tar. 29 Mik: (Levanta e vai abrir a porta.) Old, Janaina, nunca mais vocé tinha aparecido. Ciévpro: (Levantando num pulo.) A Janaina vol- tou! (Corre pra porta e se detém bruscamente vendo a Ja- naina entrar vestida de calea azul e blusa branca; na tes- 4a, em vez da tira vermelha, uma franja. Se ouve de novo 4 misica que introduziu Janaina. Como na cena anterior, @ Janaina fala, ri e se locomove ao som da mtisica; o Pai, @ Mae e a Irma olham pra ela com a mesma naturalidade da cena anterior; e s6 0 Claudio é que otha pra ela abso- lutamente intrigado. E é com essa cara de intriga que ele sobe pro apartamento do Pintor, senta pra jogar gamdo em frente ao Pintor.) Cessa a musica, Pai, Mae, Irma e Janaina desapa- recem, PInTor: Ei! CLAéupio: Hmm? PINTOR: O que que vocé tem hoje? CrAupio: Hmm? PINToR: Vocé t4 superdistraido, 0 que aconteceu? CLAupto: Uma coisa tio... to esquisita. Lembra da Janaina? Aquela amiga da minha irma que eu contei Pra vocé que foi 14 em casa toda vestida de vermelho, com manga grande assim vermelha, com uma tira aqui 30 vermelha, e 0 vestido até aqui embaixo na perna de ver- melho? Pois é: eu me apaixonei por ela. Pintor: Ah é? CiAupi0; Quer dizer, eu acho que era paixdo, eu no tinha bem certeza, mas cada vez que eu pensava na Janaina (¢ cu pensaya nela o tempo todo!) eu sentia den- tro de mim uma coisa diferente que eu nao entendia o que que era, mas que era vermelha, porque é claro que eu sé pensava na Janaina vestida naquele yermelho todo, (Para de falar. O Pintor fica esperando.) Mas hoje acon- teceu uma coisa horrivel! a Janaina voltou. PInTor: ?? Crévp1o: Quando eu ouvi a mirtha mie dizer “old Janaina”, 0 meu coragao fez puf! pensei até que tinha estourado. Corti pra sala, Nem deu pra acreditar: a Ja- naina estava de calca azul e blusa branca. E na testa, em vez da tira, uma franja. Pintor: Hmm... Crdupio: (Sacode a cabega, perdido.) Quanto mais eu olhava pra cla, mais eu ia me desapaixonando. Como € que pode?! Vocé quer me explicar como é que pode? Pintor: (Acende 0 cachimbo; olha pra janela em siléncio — talvez até o relégio possa bater nesse meio tempo; depois conclui.) Vermelho é mesmo uma cor di- ficil de entender, 3 Crévpio: (Fica esperando, mas 0 Pintor nao diz mais nada. Ele entao vira pra platéia com cara de quem se desculpa.) E nfo dissc mais nada. Porque ele era assim: se ele nfo estava a fim de falar, nfo falava. (Levanta e sai.) A luz se desloca do apartamento do Pintor pra casa de Cléudio. Em cenu o Sindico, a Mae, 0 Pai e a Irma. Claudio ird se chegando pra perto desse grupo e vai ficar escutando feito quem escuta airs de uma porta. Sinpico: Fle ficou marcado pelas idéias politicas dele. Pra mim ele se matou por causa disso. Mas: Serd que ele achava que ia ser preso de novo? Pal: Mas ele nao estava mais mexendo com poli- tica, ele estava completamente dedicado A pintura. Sixpico: Du-vi-dis-si-mo! Quem mexe com politica uma vez, tem sempre recaida. MAE: Pra mim, politica no tem nada que ver com © caso: isso foi suicidio de amor. Pat: Psiu, olha o Cléudio chegando. CrAupw: (Entra decidido e fala pro Pai.) A Dona Clarice disse pra mim que o meu amigo morreu feito todo © mundo um dia morre, Nao foi de propésito nao! Sinpico: Ela tinha que dizer isso, nao tinha? 32 CtAupio: (Sem tirar 0 olho do Pai.) Ela conhecia ele melhor do que ninguém, e ela me garantiu que nao foi de proposito. Sinpico: Ela tinha que dizer isso: pra ninguém fi- car pensando que foi por causa dela que ele se matou. CLéupio: Mas por que que ele ia fazer isso, por qué?! Pal: Ele estava doente, meu filho. C1Aupio: Doente? A gente jogou trés partidas de gamdo naquele dia. Ele ganhou uma e eu ganhei duas. E ele nao tinha nada! Pat: Doente aqui. (Bate na cabega.) S6 uma pessoa que esté muito doente aqui faz 0 que ele fez. C1Aupio: Mas a Dona Clarice me garantiu que MAE: (Cortando.) Oiha, nés vamos chegar atrasa- dos na reuniao de condominio. CrAuvio: Ele era meu amigo, pai! Mae: E melhor irmos andando. C1aupio: ... amigo pra valer. Ele mesmo falou que idade nao contava pra gente ser amigo sincero. E eu vou ficar assim? no ar? sem saber em quem que eu acre- dito? Mae: (Abraca Cldudio.) Vocé nao tem mais que fi- car pensando nisso, Claudio. Na sua idade a gente tem 33 que pensar na vida e nao na morte. Vocé tem outros ami- gos... CLAUDIO: Que eu nao gosto feito eu gostava dele! Mie: ... voc€ tem tanta coisa pra estudar, pra brincar, pra inventar, para de ficar pensando no que aconteceu com ele e toca a vida pra frente, meu filho! (E sai, seguida do Pai e do Sindico. O Sindico tenta fa- zer uma festa em Claudio, mas Claudio se esquiva.) Crivpro: Aposto que é esse cara que anda inven- tando que o meu amigo se matou. IRMA: Ora, Cléudio, que besteira. Créunro: Sabe aquela camisa amarela que a vov6 me deu? E um amarelo horrivel, todo cheio de pinta mar- rom; € téo horrivel que eu chamo ele de AMARELO- S{NDICO! Um dia cu tava 14 em cima jogando gamao ¢ tocaram a campainha. Quando eu abri a porta dois caras disseram que eram da policia ¢ me mandaram embora: queriam ficar sozinhos com 0 meu amigo pra interrogar ele. Depois a gente ficou sabendo que 0 Sindico tinha ido na policia dizer que o meu amigo estaya morando aqui no prédio. (Chuta com raiva o pé de uma cadeira.) Tipo do cara que ndo saca nada de cada um na sua! Fol cle, foi ele que inventou essa histéria do meu amigo ter mor- rido de propésito! A Dona Clarice disse que no foi. (Vai dar outro chute, mas esmorece com o pé no ar.) Mas ela diz que no foi sem olhar no meu olho, e o meu pai 34 diz que foi olhando bem pra dentro de mim... (Senta em frente do tabuleiro de gamao e fica olhando pras pedras.) InMA: (Faz um afago na cabeca de Cléudio.) Nao esquenta desse jeito, garoto. CrAupio: Ele gostava tanto de pintar, de jogar ga- mio, de comer, de pensar, ele gostava do reldgio tocan- do, e se via uma flor lé embaixo logo debrugava na janela pra me dizer: olha que coisa bonita. E ele vai e acaba com tudo isso que € tio bom? (Sacode a cabega.) Se na hora de debrucar pra ver a flor ele caia da janela; se na hora de comer ele se engasgava e sufocava; ou se ele ento tivesse ficado bem velho; mas assim? resolvendo ele mesmo? eu vou me acabar é agora? Por qué? Por qué! (Pausa.) E por que que quando é assim todo o mun- do faz mistério? ¢ fala baixo? ¢ fica até parecendo que suicidio € um superpalavrio? Por qué? Se um cara vai preso porque matou porque roubou, gente assim da mi- nha idade fica sempre por dentro; por que entdo se di- zem “ele 6 um preso politico” gente da minha idade nun- ca entende direito o que que isso quer dizer, por qué? IrMA: Ah, Cléudio, péra de pensar nisso, té? (E sai.) Cthupio: (Mexe distraido nas pedras, dando inicio ao som caracteristico das recordagdes.) O apartamento do Pintor se ilumina, volta a ter vida. O Pintor, diante do cavalete, esté pintando. 35 Cléudio vem vindo e fica durante algum tempo olhando 0 Pintor pintar. O tema sonoro dos “Dados e pedras” vai sumindo. CLAuDIO: Vocé acha que a gente € parecido? Pinror: Quem? nés dois? (Olha pra Claudio, ¢ Claudio faz que sim.) De cara, no; de jeito, é. Jeito de ficar quieto, jeito de espirrar sem estar gripado, jeito de olhar pras coisas. Tive muito amigo grande, mas nenhum de jeito tio parecido comigo feito vocé. CLAupio: E, mas com amigo grande voce pode con- versar coisa que no conversa comigo. Pixtor: Por exemplo? CLdupio: Bom, comigo vocé nao fala da Dona... (Se contém; sacode 0 ombro. Fica prestando atengao no quadro. Otha pra outros quadros. Compara. Vai exami nar de perto outros quadros como para se certificar de uma coisa que estd pensando. Volta.) Escuta, cu sei que pintor gosta de pintar umas coisas diferentes e eu ja aprendi que pintar bem néo precisa ser pintar tudo cer- tinho feito fotografia mostra. Mas tem uma coisa que eu no entendo. Pinror: Que que é? C1Aupio: E que todas essas mulheres af que vocé pintou... 36 Pintor: Hmm hm.. .? CLéupio: Flas podem ser gorda, magra, preta, branca, uma pode ter olho, nariz e boca, a outra pode ser feito aquela, s6 com uma mancha na cara, mas elas tém sempre 0 mesmo jeito, e tem sempre um pedaco ama- relo também. Por que que tudo que é mulher que vocé pinta tem um jeito igual? PINTOR: (Continua pintando, Depois...) Tem uma mulher que mora no meu pensamento, sabe; eu nem vejo quando ela sai da minha cabega e entra na minha pin- tura. C1Aupio: E a Dona Clarice? Pintor: E. (Mas ai ele pdra de pintar. Levanta. Fica olhando pra umn quadro; pra outro.) Mas nao era pra sair assim sempre igual. O amarelo, sim, eu fago de pro- Pésito. Amarelo pra mim é também cor de Clarice, e eu gosto de botar ela em tudo que eu faco. Mas se eu fosse um bom pintor, mesmo com a Clarice morando no meu Pensamento, eu pintava cada mulher do jeito que ela é € ndo assim sempre igual. CLAupio: (Surpreso.) Mas vocé é um bom pintor! Pintor: Nav! nao, eu néo sou. Eu sei muito bem como € que se pinta; eu tenho técnica; eu trabalho ¢ tra- balho pra ver se eu dou vida aos meus quadros, Mas niio adianta: sao telas mortas. (Vai apontando com 0 pincel.) Olha! Otha! Olha! nao dé pra ver? Nao dé pra sentir 7 que a minha pintura nao tem vida? (E joga o pincel pro lado num gesto desesperado que causa uma projunda impressdo em Cldudio. Vai pra janela; fica olhando pra fora. Depois de um tempo, assumindo um tom casual.) Eu gosto de ficar vendo a variedade de verdes que tem nessa mata af em frente. CiAupio: A minha mae fuluu que nunca vai que- rer mudar aqui do prédio por causa da vista que a gente tem da mata. Pintor: Ta vendo o verde daquelas folhas grandes ali? como € que vocé consegue ele? CLAupIo: Onde é que vocé guardou as minhas tin- tas? Puntor: Ai na estante. CtAupio: Ja te mostro. (Vai pegando umas tintas.) Vou fazer um verde igualzinho aquele. Pintor: (Como se falasse sozinho.) Hoje depois do almogo eu tirei um cochilo de dois minutos. Dois minu- tos 86. E coube um sonho 14 dentro, imagina. Sonhei com a Clarice. CLAupio: (Espantado, pra plaréia.) Primeira vez que ele fala nela pra mim. Pintor: Ela apareceu no sonho brotinho ainda. Feito no tempo que a gente se conheceu. Ela foi a minha 38 primeira namorada, sabe, e eu também, imagina, eu tam. bém fui o primeiro namorado dela. A gente era um bo- cado crianga. C1Aupio: Assim feito eu? Pintor: Mais velho um pouco. Que vontade que a gente tinha de casar, que afligao de ver logo tempo Passando, Mas como custou a passar! E a gente esperan- do. Até que tim dia o tempo passou. Mas af ninguém ca- sou: a gente comegou a brigar. CLéupio: Por qué? Pintor: Ela reclamava que eu tinha me apaixona- do pela politica, que em vez de gostar s6 dela eu tinha dado pra gostar de tudo que é brasileiro igual, que em vez de ficar namorando ela eu ia pra comicio, pra reu- niéo, pro norte, pro sul, de tanto andar pelo Brasil um dia eu até sumi: me prenderam. CrAupi0: Como é que é a gente se apaixonar por politica? ¢ assim feito a gente se apaixonar por uma ga rota? Pintor: E ¢ no é, Ai eu fiquei preso muito tempo € escrevi sempre pra Clarice. Mas ela nunca recebeu car- ta nenhuma. E ai ela pensou que cu tinha me esquecido dela. Um dia, de tanto cansar de esperar, ela acabou ca- sando com outro. E teye filho e tudo. E s6 no ano pas- sado a gente se encontrou de novo. Aqui em Petrépolis mesmo. De repente, puf! um esbarriio na rua. E a gente 39 ficou se olhando sem nem acreditar. Vendo que tinha passado tanto tempo. E que a gente continuava se gos- tando igualzinho. Depois, cada vez que a Clarice vinha me visitar eu pedia pra ela largar tudo ¢ ficar comigo. Mas ela sempre dizendo que nao. Sabe o que que ela falava? que eu era um homem dividido em trés paixdes: paixdo por ela, pela pintura e pela politica. (Sé ai ele olha pra Cldéudio.) Mas no era por causa disso que ela nao ficava comigo. Era por causa do filho dela, eu sei, ele pedi pra ela no se separar do pai. CLéupio: Mas quando eu vejo politico falando na televisio eu acho aquele negécio tao complicado, tio chato: como é que pode virar paixdo? Pintor: (Sai da janela; acende o cachimbo na cal- ma.) Politica 6 mesmo uma coisa complicada. (Se imobi- liza.) CLAupio: (Desapontado, pra platéia.) E pronto, ndo disse mais nada. Que nem naquele dia que eu contei pra ele do vestido vermelho de Janaina Escuro, Tempo. Vozes (das Trés Figuras) chamando em forma de eco: “Claudio! Claudio! Claudio!” Luz nas Trés Figuras e em Claudio. Ele faz mimica de abrir uma porta. 40 — CiAupto: UE: vocés? de novo?! Ficura AMARELA: Pois é, CiAupto: Vocés se mudaram de 14? Ficura PReETA: De onde? CtAupio: Lé da parede de cima. (Gesto pro apar- tamento do Pintor.) Ficura AMARELA: E que a gente t4 querendo mo- rar no teu sono. C1Aupio: No meu sono? As Trés Ficuras: (Fazem que sim.) ‘CrAupio: Pra qué? Ficura BRANCA: Assim, quando vocé quiser so- nhar, é s6 abrir a porta pra gente entrar. Ciéupto: Ta legal, obrigado, mas eu hoje nao (0 a fim: tenho que acordar cedo pra ensaiar uma pega de teatro 14 na escola. Fecha a porta ¢ 0 foco de luz se desloca para Ro: sélia, pulando amarelinha. Ela pula até chegar junto de Claudio, que esté sentado numa mureta, desenhando. RosAx1a: Oi. 41 C1Aupio: (Continua desenhando.) Oi. ROSALIA: Que que € isso? Cuno: Ora, taf. ROSALIA: Tai 0 qué? CLAupr Mas ido da pra ver 0 que que € isso? ROSALIA: Nao. C1Aupio: (Coloca o desenho na mureta pra platéia poder ver, ¢ ele mesmo toma distancia pra ver melhor. O desenho é um coragdo marrom, achatado pro lado, e acabando de maneira abrupta na parte debaixo, i. e., cortado.) CrAupto: (Intrigado.) Nao dé mesmo pra ver? RosAL1A: Nao, ué! CrAupio: Entao adivinha, ora. RosA1a: Sei 14. Crévpio: £ 0 meu coragio. ». Olha RosAta: (Faz uma careta de incompreens mais de perto 0 desenho.) CrAupio: Ainda nao té vendo nao? RosAx1a: Eu nao! Pra comegar, coragao é vermelho. 42 CrAupio: Bom, mas esse ¢ 0 meu coragio. RosAt1a: E dai? por que 6 teu ndo é vermelho? CrAupio: Nao € isso. E que eu ando chateado ¢ en- tdo o meu coragao ta assim desse jeito, parecendo que le- vou um soco e se achatou todo pro lado. RosALia: Soco? CrAupto: E coragdo vermelho é coragio de todo-o- dia. © meu nfo esté que nem todo o dia; ele td todo dife- rente; ent&o tem que ser de outra cor. Tem ou nao tem? Rosita: (Pensa um tiquinho.) Nao pode. Coragio tem que ser vermelho. E tem que ser pontudo embaixo. ‘Me d’aqui o papel pra eu te mostrar como é que é. ‘CLAupio: ’Pera ai! vocé nao té me entendendo. Acontece que... Rosia: Me d4 o papel, deixa eu desenhar isso direito, CrAupio: Quer fazer o favor de escutar 0 que eu t6 te explicando? Se 0 meu coragio té diferente, todo ruim, todo chateado, eu nao vou desenhar ele feito aque- Ic coragao que todo 0 mundo desenha pra namorada, nao €? ’Pera ai, no puxa! RosAuiA: (Jd puxou. E tira do bolso uma caneta vermelha e vai mudando a cor do coragio, fazendo ele 43 embaixo bem pontudo.) Coragdo tem que ter seta. (Risca uma seta no meio.) E ele nao pode ficar assim esborra- chado. C1Aupio: Mas eu tava te explicando que ele se es- borrachou de chateagao. Rasir1a: Pois entiio, se ele té chateado, diz logo, cara! Faz assim, 6! puxa uma seta aqui pra cima e es- creve: “T6 esborrachado parque t6 chateado.” (Escreve.) Pronto! agora todo o mundo entende. (E dé 0 desenho de volta pra Cldudio. Mas 0 coragao cai no chao.) CtAupio: (Danado, chutando o coragao.) Pra que que eu quero agora essa porcaria?! RosAuia: Porcaria é aquele trogo que vocé tinha desenhado. Ih, olha 14 0 Sérgio! O garoto mais fofo. (Pega o desenho.) Vou dar esse corago pra ele. “TO es- borrachado porque 16 chateado...” (Comega a escre- ver.) “... ¢ t6 chateado porque VOCE NAO OLHA PRA MIM.” (Sai correndo com a desenho.) Séececergio!! CrAvpi0: (Vai protestar. Desanima.) Ah. (Pensa. Suspira.) Mas também, 0 que que cu ia fazer com um coragio que jé no tem nada que ver com o meu? (Senta na mureta; cabega na mio.) Acho que vai levar muito tempo pra arranjar um amigo que saque também esse ne- gécio de esborrachar e amarronzar coragao. Tempo. IrMA: (Se aproxima.) Ei! té dormindo? (Cléudio faz que nao.) Que que vocé té fazendo ai? C1Aupio: Esperando o énibus. IRMA: Onde é que vocé vai? Crévupio: Pra escola, ué. IRMA: Mas hoje nao tem aula. C1Aupio: Tem ensaio da tal pega que a gente té fazendo. InmA: (Bate na testa.) Chi! CrAupio: (Nem vé o gesto: jd afundou outra vez @ cara na mao.) Nao sei por que que cu fui accitar de fazer parte dessa pega. S6 de pensar que eu tenho que ir pro palco falar, sabendo que ta todo o mundo no teatro olhando pra minha cara, meu coragao sai batendo adoi- dado e me dé um frio aqui, 6, aqui. Eu nao quero ser ator! cu sou muito envergonhado, o que eu quero € ser pintor... (Olha pra irma.) Que cara é essa? IrMA: E que eu me esqueci de te dizer que telefo- naram da escola avisando que hoje nfo vai ter ensaio. CrAupio: Ent&o eu levantei cedo desse j feriado de manhi & toa, a toa?! num IRMA: Desculpa, té? 45 CLAupio: E agora, o que que eu fago? Im: Volta pra cama e dorme, ué. (Sai.) CtAupro: E ainda por cima vai chover. Claudio, superdesanimado, dé um ou dois passos. As vozes das Trés Figuras comecam a chamar por ele. Claudio se imobiliza. Mudarea de luz. Surge em cena o “palco de mentira”’, ou “minipal- co”. Cortina fechada. As vozes chamam Claudio de novo, e Cldudio se movimenta outra vez. Circunda o palco, examina ele, vai se sentar na boca de cena de frente pro palco. Tempo. O rel6gio bate trés vezes. A cortina do “palco de mentira’’ se abre devagar revelando duas das Figuras (envoltas em panos averme- thados), e mais o Pintor (metido em panos brancos, num disfarce de fantasma). Os trés estdo iméveis, colados um no outro. C1Aupio: (Levanta, espantado.) Ah! as duas de novo. Mas e aquela? quem é aquela outra ali? 46 Vozes: (Vindas da platéia.) E ele! Eo teu amigo Pintor fazendo o papel de fantasma. CrAupto: (Horrorizado.) Fantasma?! Vozes: (Da platéia.) Fantasma. Fantasma. CrAupIo: (Senta de novo, mas agora de frente pra platéia. Tapa o rosto.) Eu nao quero ver ele assim virado fantasma. Pintor: (Tira um pincel do bolso e chama Claudio com o pincel.) Vozes: O teu amigo fantasma té te chamando, Claudio. Vai 14. CAvupio: (Chora-ndo-chora.) Nao vou! Eu tenho medo de palco. Eu tenho medo de chegar perto do meu amigo assim tao virado fantasma. Pintor: (Exagera o gesto de chamar Cldudio com o pincel.) Vozes: Vai de uma vez! ele té te chamando, CLAupio: (Destapa o rosto; vai se virando devagar pro palco. O Pintor encoraja ele com a cabega. Ele le- vanta ¢ se aproxima do Pintor. Toca nele feito quem tem medo de levar choque; cochicha.) E voc€ mesmo? PinToR: (Faz que sim e cochicha.) E agora? 47 CLéupie: Agora 0 qué? Pintor: Eu nio sei representar fantasma, Cléudio, © que que eu fago? eu ndo sei o que que cu digo. CiAuDIO: Mas vocé nao ensaiou a pega? Pintor: (Faz que ndo.) Criupio: Nao decorou o papel? Pinror: Nao deu tempo. Eles me botaram nessa roupa, me empurraram aqui pro palco, disseram agora vocé é um fantasma, e pronto. CrAupio: Ai, O piblico, isto é, as vozes na platéia desatam a re- clamar: “Essa pega vai ou niio vai comegar?” CLAupto: Diz pra elas representarem. Pintor: Quem? CiAupto: Essas duas af do teu lado. Pinror: Jé disse, Elas falaram que so coro. CAupto: Sao 0 qué? Pintor: O papel delas nessa peca € comentar a mi- nha histéria. Se eu ndo conto a minha historia, elas néo tém nada pra comentar. CrAupio: Nossa! PINTOR: Que que eu fago, Cléudio? olha, t4 todo © mundo esperando, ‘tao comegando a vaiar. CtAuDIO: Vai embora! diz que voc€ nao quer ser fantasma. PinToR: No posso. CrAupio: Por qué?! Pinror: TO preso: costuraram a minha roupa na roupa delas. CtAupio: Deixa comigo, eu rebento a linha. (Vai pra trds do amigo pra “descosturar” uma roupa da ou- tra.) Chi! nao é costura, é pintura! Pintor: Ah, entéo nao vai dar pra separar. De novo as vozes reclamam da platéia, querendo saber se a pega vai ou ndo vai comecar. Vaias, assobios, CrAupio: (Comega a chorar de nervoso.) Pivtor: Nao é hora de chorar, é hora de me aju- dar! Me ajuda, me ajuda! C1Aupio: (Consegue se controlar. Respira fundo pra tomar coragem, e vai pra beira do palco.) CtAupt0: Distinto piblico, atengiio: eu vou contar pra vocés a histéria desse fantasma, E uma histéria curta 49 porque éle ¢ um fantasma recém-morrido. Ele virou fan- tasma pelo seguinte: ele se enganou de tempo de morrer. Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer. Mas acon- teceu. Era pra ele morrer s6 quando ele fosse velhissimo, mas ele era um artista, era um pintor (olha s6 0 pincel na mao dele), tinha a mania de viver pensando em cor. Acordava, e em vez de dizer feito todo o mundo,“eu estou triste, eu estou contente;’ele falava: PiNToR: Hoje eu estou roxo. Hoje eu fiquei tio amarelo! Hoje eu acordei meio roxo, mas fui amarelando 14 pro fim da tarde. Cihupio: Pra ele a coisa que tinha mais cor de morte era nevoeiro. As vezes, quando fazia céu azul de manhi, mas de tarde comecava uma névoa, ele dizia: Pintox: Hoje fez vida de manha, mas agora té fa- zendo um pouco de vontade de morrer. CrAupio: E entao, um dia desses, fez um nevoeiro forte toda a vida. O Pintor espiava pela janela do apar- tamento dele, s6 via aquele nevoeiro tapando tudo que € cor e falava feito costumava falar: Pintor: Hoje té fazendo um pouco de vontade de morrer. C1Aupio: Foi um nevoeiro comprido, que durou a tarde toda e a noite inteirinha também. A toda a hora © Pintor espiava na janela. E nada da vontade de morrer acabar. Foi por isso que ele se enganou: achou que a 50 vontade nunca mais ia passar ¢ ent&o resolveu matar a vontade. Tipo do engano sem jeito: no dia seguinte ama- nheceu um céu azul bonito mesmo. Mas ai o Pintor jé tinha virado fantasma. (Suspira. Vira disfargado pra pri- meira Figura e cochicha.) Pronto, a histéria tai. Comenta. Fala. Diz qualquer coisa. Ficura 1: (Cochicha, danada.) A gente nio se en- gana feito ele nao! a gente decora papel, ensaia pega. Figura 2: ... a gente sabe tintim por tintim o que tem que dizer. CAupio: Entao diz!! Ficura 1: Mas o que a gente decorou pra comentar no tem nada que ver com essa hist6ria que vocé contou! Comegam as reclamagées na platéia outra vez. Um homem levanta e pergunta: HoMeM: Quer fazer o favor de explicar 0 que que esses atores esto fazendo ai parados que ndo represen- tam nem nada? Claudio e 0 Pintor se entreolham aljlitos. Ciéupio: (Numa inspiragfio.) Eles ‘tio represen- tando um quadro-vivo, € isso! (O Pintor aprova a idéia.) Ser que o senhor ainda nao percebeu? Eles vieram aqui mostrar um quadro famoso chamado “Amor”. . Risos na platéia. st Criviio: ... e quadro é pra gente olhar ¢ nao pra escutar. HoMem: Mas entdo por que que vocé contou a his- t6ria do fantasma? CrAupio: (Gagueja; empaca.) Pintor: (Soprando.) Diz que € porque té fazendo um nevoeiro muito forte ¢ que é pra eles tomarem cui- dado e nao se enganarem feito eu. Créupio: E porque té fazendo um nevoeiro muito forte e 6 pra vocés tomarem cuidado e nfio se enganarem feito eu, quer dizer, feito ele. Vaias na platéia. CiAupio: (Fica superagoniado.) Mie: (Chega junto de Claudio e pega ele pelo bra- 0. Chama.) Claudio. Cléudio. (Vai puxando ele embora.) O minipalco vai sendo puxado pra fora de cena, re- velando a cama de Claudio. C1Aupio: (Acorda sobressaltado.) Mie: (Inclinada, junto da cama, puxa o brago de Claudio.) Claudio, Cléudio, eu nao ia te acordar, mas 0 teu pai disse que voc$ queria falar com a Dona Clarice. CtAupio: Ela té aqui? Mie: Nao, mas eu t6 ouvindo barulho no aparta- mento af em cima. E como ela é a tnica pessoa que tem a 52 chave... (Ela e Claudio se concentram Para escutar al- gum barutho no apartamento do Pintor.) C1éupi0: Que barulho que yocé ouviu? Mie: Passos. E o barulho da janela abrindo. Eu tenho certeza que eu ouvi. C1Aupio: (Levanta; vai bater no apartamento do Pintor.) Luz no plano superior. Escuro no plano inferior. Tempo. Clarice abre a porta; Claudio abre a boca pra falar; 0 relogio dé uma batida. Uma so. Mas suficiente pra pa- ralisar Claudio, Ciarice: Olé, Claudio. CrAupio: (Olha de Clarice pro relogio.) Crarice: Quer entrar? CiAupto: (Emocionado.) Vocé deu corda no re- légio? Crarice: (Faz que sim.) C1Aupio: Com essa batida fica até parecendo que ele td vivo de novo, nao 6? CLaRICE: Vocé nao quer entrar? 33 Céupto: (Suave.) Nao, Eu sé queria era saber por que que vocé mentiu pra mim. (Os dois ficam se othan- do.) & que... vocé disse que ele tinha morrido feito todo © mundo um dia morre. Mas todo o mundo nio resolve morrer de propésito, resolve? Ciarice: Vocé nao quer entrar? Claudio entra um pouco. Clarice fica parada, sem dizer nada. CLAupK ceu com ele, Eu preciso saber direito tudo que aconte- CLARICE: Vocé diz que eu menti. CLAupio: Entao nao mentiu? entao a noticia jé nao se espalhou e agora todo 0 mundo j4 nao sabe que ele se matou? C1arice: (Vai pra junto da janela e fica espiando pra fora.) Crdvupio: (Se vira pra platéia.) Gozado: 0 meu amigo também pensava assim de pé, com jeito de quem ta sé olhando a rua. (Vira pra Clarice.) Foi porque vocé acha que eu sou crianga? L4 em casa eles acham que esse assunto ndo & coisa de crianga. (Clarice olha pra ele.) Vocé também é assim? foi por isso que vocé mentiu pra mim? Crarice: Nao. Eu tenho um filho da sua idade e eu converso tudo com ele. 54 ‘Créupio: E de suicidio? vocés também falam? Crarice: (Faz que sim.) CLAUDIO: Vocé disse pra ele que o meu... que o Seu... que 0 nosso amigo se... Crarice: (Corta.) Disse. CLéupto: E por que nao disse pra mim? (Clarice vira outra vez pra janela.) Pra eu nao ficar achando tam- bém que foi por sua causa que ele fez isso? (Ela vira pra cle. Se olham. Ele fica meiv sem jeito.) Ciarice: Também por qué? Estéo achando que tudo isso aconteceu por minha causa? CrAupio: Estao. Crarice: E vocé acredita? CrAupio: (Agora é a vez dele ficar quieto.) Ciarice: (Vai pra junto de Cldudio e olha ele no olho.) Eu nao sei por que que ele fez isso. Eu vinha achando ele triste; um dia desses eu perguntei se ele an- dava assim por causa da politica ou do trabalho, e foi ai que ele me disse que nunca ia ser um grande pintor: quanto mais ele trabalhava mais ele via como era dificil transmitir numa tela o que ele queria dizer. Vocé, que era também amigo dele, vocé também no achava ele triste? 55 CrAupto: (Pensativo.) As vezes eu achava sim. Outras vezes eu pensava que nio era tristeza: era s6 0 jeito quicto que ele tinha. Ctaice: Ele queria que eu deixasse a minha fami- lia pra vier com ele. Mas eu andava sem coragem. E a gente entdo combinou de esperar mais um pouco, Eu enso nisso tudo, mas continuo sem saber por que que ele fez isso. (Parece até que ela vai chorar.) A gente era assim, 6. (Junta dois dedos.) Na iiltima vez que eu estive com ele, a gente combinou uma porgao de coisas: um filme que ia ver, um passeio que ia fazer, combinou de ficar sempre assim. (Mostra de novo os dois dedos jun- fos; @ mao treme um pouco, a fala também.) Quando eu voltei ele tinha se matado. Na carta que ele me deixou ele s6 pintou um buqué de flor. Margarida e cravo, que cle sabia que eu gostava. E embaixo, em vez de uma ex- plicagao, s6 tinha um pedido de desculpa; uma coisa... to esquisita, tao curtinha. . . s6 assim: “Desculpa, sim?” Mais nada. (Volta pra janela e fica de costas pra Claudio.) C1Aupio: (Perplexo.) Mas entdo... 0 meu amigo resolveu ir s’embora assim da vida... sem explicar por qué... nem pra vocé? (Ela ndo se mexe.) A gente que sacasse... pronto? Tempo. CiAupio: (Atordoado.) Tchau. 56 CLaRICE: Claudio! Claudio se detém. Clarice vai pra perto dele. Crarice: Eu sei como vocé gostava dele. Quando a gente gosta assim, é muito dificil viver com uma lem- branga que a gente néo entende. Que nem eu estou viven- do agora. Foi por isso que naquele dia eu menti. Eu achei que a minha mentira podia colar e que cada vez que vocé lembrasse dele nao ia ter que perguntar por qué? por qué? por qué! Que nem eu estou sempre pergun- tando. Ficam quietos. Ela dé um beijo nele e ele vai em- bora, Clarice fica um momento parada; desaparece no interior do apartamento. Mudanga de luz. Entram as Trés Figuras e vio se colocar em frente do quadro delas. Estdo “ao natural”: branca, preta e amarela, O Pintor vem se sentar e ler. Tempo. O relégio bate. Cléudio surge afobado, vestido e mascarado do mesmo jeito que as Figuras. A roupa arrasta de um jeito que, pra correr, ele tem que “levantar as saias”. O efeito 37 € comico. Se cola as figuras pra passar também a fazer parte do quadro. O efeito desse “‘quadro vivo” também é engracado com ele assim tao pequeno e elas tao altas. Tempo. Pintor: (Langa um olhar rapido pra Claudio e lé pelas tantas pergunta em tom casual.) Que que voce té fazendo ai, hem, Cléudio? C1Aupio: (Quieto.) As Trés Figuras se entreolham; espremem uma ri- sadinha. Pintor: Eu sei muito bem que é vocé que esta ai. CrAupio: (Quieto.) Pintor: (Encolhe 0 ombro.) Bom, se vocé agora quer ser quadro... tudo bem. (E volta pra leitura.) CrAupto: (Vai tirando a mdscara devagarinho. Co- chicha em tom de mistério pro Pintor, botando a mao do lado da boca pra elas nao ouvirem. ..) Eil(O Pintor otha pra ele.) Nao diz pra elas, viu? mas eu vim morar aqui no teu quadro pra descobrir tudo. Pintor: ? Ciéupio: E ja deu pra ver que elas se mascararam assim s6 pra gente nfo sacar. Mas agora que eu t aqui dentro cu jé sei que elas sfo as tuas trés paixdes. 58 Pintor: (Vem pra ponta da cadeira visivelmente interessado na “descoberta” de Cléudio.)?? C.Aupio: A Dona Clarice, a Politica, e a Pintura. S6 que de cara assim tapada ainda no deu pra saber quem que é uma e quem que é outra. Mas eu you des- cobrir, pode deixar. E vou ficar sabendo também por que que vocé se mat... As Trés Ficuras: Psiu!! CiAupio: (Se endireita. Bota a mdscara. Fica quie- to.) Pintor: (Paciente.) Claudio, sai dai. CiAupto: (Nao se mexe.) Pintor: Nao vai sair dai? Nao vai parar com isso? CtAupto: (Tira um pouco da médscara.) S6 se vooé responder uma coisa pra mim... Pintor: Que que 6? CtAupio: Lembra aquele pedago da tua vida, quan- do vocé ficou triste achando que niio era um bom pintor? Pintor: 7 CxAupio: Quando eu perguntei por que que tudo que é mulher que vocé pintava tinha um jeito igual. 59 Pintor: Hmm... sei. CtAupto: Faz pra mim! faz de novo aquele pedaco da tua vida pra mim. Pintor: Ah, Cléudio, eu t6 cansado, eu quero tan- to ficar quieto lendo. ‘CrAupio: Ah, faz! Faz. Pintor: (Se levanta resignado e revive o pasado.) «| .Se cu fosse um bom pintor, mesmo com a Clarice morando no meu pensamento, cu pintava cada mulher do jeito que ela é e nao assim sempre igual.” CrAupio: (Sai do quadro, entra no jogo.) Mas vocé é um bom pintor! Pintor: Nao! no, eu nao sou. Eu sei muito bem como € que se pinta; eu tenho técnica; eu trabalho ¢ tra- balho pra ver se eu dou vida aos meus quadros. Mas nao adianta: so telas mortas. (Pega um pincel e vai apontan- do, que nem na cenu original.) Olha! olha, olhat Nao dé pra ver? ndo da pra sentir que a minha pintura néo tem vida? (E joga o pincel pro lado.) CiAunro: Isso! Eu fico lembrando e lembrando essa cena; e agora eu quero que voce me responda uma coisa. Pintor: Que é? C1Avpro: Seré que um artista pode amar tanto 0 trabalho dele que... dcixa cu ver como 6 que eu te ex- 60 : plico... pode amar tanto trabalho dele que, se o tra- balho nao tem vida, ele também nfo quer mais ter? Pivror: (Otha intenso para Cldudio; depois desa- bafa.) Eu no quero mais falar da minha morte, Cléudio, eu nao quero mais pensar nela, deixa a minha morte em paz, té bem? té bem?! (E sai batendo a porta.) Tempo. Ctéupi0: (Baixa a cabeca.) Figura 2: Ele té chorando? Ficura 3: (Espicha o pescogo.) Acho que ele nao t4 numa boa, néo. Ficura 1: (Cutuca Cldudio.) Ei! que que vocé tem? CrAuvie: E que isso € to ruim! Ficura 1: Isso 0 qué? CtAupio: Tanto por qué. ‘As TRES FIGURAS: (Simultaneumente, em tons dife- rentes.) Por qué? Por qué? Por que qué? CLéupie: Tudo! Cada vez que eu penso no meu amigo ele vem junto de um por qué. Por que que ele fez assim (ao de propésito pra morrer? por que que ele no explicou nada na carta pra Dona Clarice? por que que ele foi preso se ele era um cara to legal? por que que ele no me contou o que que ele ia fazer? por que que ele queria botar vida no que ele pintava ¢ no botava? 61 Figura 1: E por que que o por qué tem que vir junto com o teu amigo cada vez que vocé lembra dele? CLAupio: Porque vem, ué! FicuRrA 1: Mas separa! Bota amigo pra cé e por qué pra lé.. CtAupio: Mas d4? pra separar? Ficura 1: Claro que dé. Cthvpro: Dé como? sc os dois jé cntram na minha cuca sempre juntos, 0 amigo ¢ 0 por qué. Figura 1: Arranca o por qué fora! Esconde ele es- condido ld no fundo da tua cuca. C1Aupto: Mas pode? Ficura 1: Entdo ndo pode? Experimenta. CrAupro: Fayy 0 que? Fiauras 2 & 3: (Professorais.) Exercicios. Um, dois. Um, dois. Um, dois. Froura 1: (Professoral.) Um € amigo, dois € por qué. Um 6 pensa, dois & esconde. Ficuras 2 & 3: (Em cadéncia.) Um, dois. Um, dois. Um, dois. Pensa, esconde. Pensa, esconde. Pensa, esconde. 62 As Trés Figuras saem num passo lento e ritmado, re- Petindo os exercicios, Cléudio vai atrés, imitando, feito quem tenta apren- der um passo de danga. E os quatro vao repetindo: “Pen- Sd, esconde, pensa esconde...”” As Figuras se colocam de novo diante do quadro. Claudio prossegue sozinho. E é com aquele andar esquisito que, a caminho do quarto dele, passa pelo Pai e pela Mae. Os dois ficam olhando intrigados pra Claudio. Mie: Que jeito esquisito de andar é esse, meu filho? Pai: Vocé ta com algum problema no pé? ‘CLAuDIO: Fica imével.) No pé, nao. (Desaba na cama, exausto. Pai e Mae desaparecem. Tempo. IRMA: (Se aproxima de Cldudio. Faz mimica de abrir uma janela.) Acorda, garoto! Luz: se intensifica, IRMK: ©, mas até que enfim! Depois de uma se- mana todinha de chuva e nevoeiro, olha que manha mais linda de verdo. Levanta, Claudio! té na tua hora. (F sai.) 63 CrAvpio: (Olhando pra fora.) Puxa, que azul ii crivel! Um azul assim faz a gente até... (Vé que a Irma id desapareceu. Fica olhando pro céu.) Pintor: (Aparece de mansinho, Pega o dlbum, que estd em cima da cama, e vai jolheando, que nem na cena em que ele dé 0 dlbum pra Cléudio.) “. . .aqui eu fiz um estudo de amarelos ¢ azuis... aqui eu resolvi pintar 0 céu de uma manha de vero, mas ai eu me apaixonei tan- to pelo sol e pelo azul que eu quis pintar o céu bem gran- de: por isso que eu juntei as duas folhas assim. . .”” (Dei- xa 0 dlbum no lugar em que estava e se afasta.) ‘CrAupio: (Pega o dlbum e comega a comparar.) O azul desse trabalho é igualzinho a0 céu que té 1é fora. (Vai ficando mais interessado na pintura; examina ela bem de perto. Se esquece do azul Id fora. E, de repente, compreende.) Mas 0 que eu tenho que fazer ndo é separar amigo pra cé € por qué pra Ié! Eu tenho é que juntar: fazer 0 que ele fez com esse céu, com essas duas folhas aqui: juntar bem junto. (E agora pra platéia.) E entao eu juntei, Agora, quando eu pensa na men amign — © eu continuo pensando tanto! — cu penso nele inteiro, quer dizer: cachimbo, tinta, por qué, gamfo, flor que ele gos- tava, morte de propésito, por qué? relégio batendo, ama- elo, blusdo verde, tudo bem junto e misturado. (Levanta.) E comecei a gostar de pensar assim. Acho até que se eu continuo gostando de cada por qué que aparece, eu acabo entendendo um por um. (Fecha 0 dlbum e sai.) O palco se apaga. Encenada no Teatro SESC da Tijuca, com diregao de Bia Lessa, sla pegt conquisiou os prémias Mambembe e Molitre (este pela primeira ver atribuido a uma pega Yoltada também para criangas e jovens), Obras dE Lyaia Bogunca pa Acim O Abraco Angélica A Bolsa Amarela A Casa da Madrinha Corda Bamba Fazendo Ana Paz Livro ~ Um Encontro com Lygia Bojunga Nos Trés Paisagem Seis Vezes Lucas Tehau ‘TEATRO Nos Trés O Pintor

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