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5 PERSPECTIVAS SOBRE A SANTIFICAGAO Wesleyana Mewvin E. DieTER Reformada AntHony A, HoeKEMA Pentecostal Santer M. Horton Keswick J. Rosertson McQuitkin Agostiniano-dispensacionalista Jon F: Watvooro Traducdo Pedro de Freitas A ACADEMICA ©1987, de Stanley Gundy, Mesin E, Dieter, Anthony Hockema, Stanley M Horton J Roberson McQuitkin, John F Walvoont Tieul do orginal Five View on Sanctification, ccigao publicda por Zoxosawvas Puntistines House (Grand Rapid, Michigan, EUA) Tad os direitos em Ungua portuguesa reservados por Editora Vida PROIBIDA A REPRODUGAO POR QUAISQUER MEIOS, SAIVO EM BREVES CITAGOES, COM INDICAGKO DA FONTS. ‘Todas as citagoes biblicas foram extraidas da Nova Versio Internacional (NV1), ©2001, publicada por Editora Vida, salvo indicagao em contritio, Eprrora Via | ™ Rua Julio de Castilhos, 280 Belenzinho | Coordenagao editorial: Rosa Ferreira CEP 03059-000 Sio Paulo, SP | Edig&o: Alfpio Franca e Lenita Ananias Tel.: 0 xx 11 6618 7000 | Revisao: Andrea Filatro, Celiz Sayao ¢ Nilda Nunes Fax: 0 xx 11 6618 7050 | Consultoria e revisio técnica: Luiz Sayao wwweditoravida.com.br | Projeto grafico ¢ diagramagio: Set-up www.vidaacademicanet | Capa: Marcelo Moschera Dados Intemacionais de Catalogacio na Pablicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ‘Cinco pespectivas sobre a sancifeagt /orgenizado por Staley Gund ‘tadugio Pedro Wizen de Frits, — Sf0 Paulo: Editora Vids, 2006 (Colegio. ebatesteoldgics) ‘Tico original: Five views on sanctifi Varios autores. Bibliografia. ISBN 85-7367-815-1 1. Santidade 2. Santfieagio - Ensino béblico 3, Vida cis 1. Gundry, Stanley. 06-2504 Indice para catélogo sistemstico 1, Santificag :Salvagio Crstianismo 234.8 SUMARIO Prefacio a edigdo brasileira Prefacio @ edi¢do original ~ ~ A perspectiva WESLEYANA Melvin E. Dieter Réplicas Anthony A. Hoekema Stanley M. Horton J. Robertson McQuilkin John F. Walvoord A perspectiva REFORMADA Anthony A, Hoekema Réplicas Melvin £. Dieter Stanley M. Horton J. Robertson McQuilkin John F, Walvoord A perspectiva PENTECOSTAL Stanley M. Horton Réplicas Melvin E. Dieter Anthony A. Hoekema 52 56 59 63 61 102 106 109 lll 113, 149 152 J. Robertson McQuilkin John F. Walvoord > A perspectiva de KESWICK J. Robertson McQuilkin Réplicas Melvin E. Dieter Anthony A, Hoekema Stanley M. Horton John F. Walvoord A perspectiva AGOSTINIANO-DISPENSACIONALISTA John F. Walvoord Réplicas Melvin E. Dieter Anthony A. Hoekema Stanley M. Horton J. Robertson McQuilkin Notas Indice geral 156 160 163 202 206 210 213 2S 247 250 254 257 259 268 PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA A minha palavra inicial ao leitor deste livro é sobre o interes- sante percurso doutrinario do tema da santidade nele apre- sentado. O primeiro autor, Melvin E. Dieter, escreve a respeito dos conceitos de Wesley sobre a santificac¢ao e o desenvolvimento doutrinaério do tema nos Estados Unidos. Tal compreensdo da histéria dos principios wesleyanos nos ajuda a entender a formacao da Igreja Holliness e, depois, a sua influéncia nas igrejas pentecostais, principalmente na Assembléia de Deus. A historia e a teologia correm paralelas. Assim, 0 metodismo wesleyano esta, de uma forma ou outra, vinculado as circuns- tancias sociais e politicas dos grupos em meio aos quais se desenvolveu. A relevancia da percepcao historica das origens e desdobramentos de tais movimentos é que ela nos ajuda a compreender melhor o tempo presente: podemos entender com mais clareza, por exemplo, a teologia neopentecostal que nos circunda a luz da conjuntura histérica que a antecedeu. Se compararmos os desenvolvimentos da teologia ao cor- rer de um rio, vemos que a origem do conceito sobre a santi- dade tem como vertente principal a doutrina wesleyana, que segue pelas margens da teologia da Igreja Holliness e se abre em afluentes da doutrina pentecostal. Da mesma forma que o ciclo das Aguas de um rio, que se desdobra em varios bracos d’agua, a organizacao deste livro propée réplicas a cada uma das exposicgdes da interpretacao da doutrina da santidade, tragando novamente um percurso des- de a doutrina reformada, vindo a doutrina wesleyana até chegar a da Assembléia de Deus. Os conceitos de cada ponto de vista doutrinario séo retomados nas réplicas; retornam, no entanto, 8 Sperspectivassobrea santiago sob a Otica das diversas linhas de interpretacdo ao longo da his- toria, o que torna necessario repensar cada uma das posicdes. Ao lembrarmos a influéncia histérica sobre as interpretacdes da Escritura, nado podemos deixar de apontar que a modernidade, em seu todo, sofreu a influéncia do positivismo logico cartesiano. Entendo que, no que diz respeito a interpretacado dos textos da Escritura sobre a salvacdo e a santificagdo, essa heranca exerce influéncia determinante. Espera-se, por exemplo, que todos os textos das Escrituras que falam sobre estes dois temas se encai- xem exatamente numa seqiiéncia, de forma que nossa logica possa seguir OS passos e compreender a série de ac6es que um cristao deve seguir para alcancar a salvacdo e a santificacdo. Ministrei durante algum tempo um seminario sobre Psicolo- gia da Religido. Pedi a meus alunos que fizessem um “organo- grama” da salvacao e todas as suas implicagées. O resultado que obtive é que os mais de 30 alunos trouxeram organogramas di- ferentes. Diante disso, tentamos trabalhar com esses organo- gramas e formar um global que manifestasse com maior exatidao © que expressava a Biblia. Tivemos muito trabalho e nao chega- mos a uma conclusdo, O motivo é que a Palavra de Deus se situa além do positivismo logico. Muitas vezes queremos encaixar nossas interpretagées das Escrituras a uma determinada cor- rente de pensamento, mas nao conseguimos, porque a Palavra esta além de nossas categorizacées filos6ficas. A Palavra apresenta suas doutrinas tal qual o delta de um rio. O seu correr é cheio de meandros formado por ilhas e pequenos canais pelos quais a agua flui, fazendo desembocar no mar as Aguas de um grande rio, E das Aguas desse mar, a Biblia, a grande fonte de todas as doutrinas, que devemos extrair conceitos doutrinarios, para que estes “chovam” sobre © povo de Deus, conforme as necessidades do momento his- torico, politico e social em que ele vive. Quem ou qual grupo pode arvorar para si a interpretacao correta? Aquela que abragamos é sempre defendida a luz de uma teoria de interpretagaéo das Escrituras e em determinado momento histérico. Como ja foi dito outrora, uma teoria é sempre uma teoria e Cinzenta, meu querido amigo, é toda teoria, e verde somente a arvore dourada da vida. (Mefistdfeles, em Fausto, Parte I, Cena 4). Sitas MoLocHenco Tedlogo e psicélogo Prof. da Faculdade Teoldgica Batista de Sao Paulo PREFACIO A EDICAO ORIGINAL Os cinco autores desta obra falam do caminho para a vida santa, consagrada. Todos eles escrevem da perspectiva crista evangélica, que considera a autoridade da Biblia e julga o restabelecimento da relagéo com Deus por meio da fé em Cristo a maior necessidade e fonte de satisfagdo pessoal. Essa pers- pectiva unificada subjacente, entretanto, abarca diversas de- finigdes de santificacaéo. Cada autor esboca sua compreensaéo a respeito da doutrina e, em seguida, debate direta e cordial- mente a opiniao dos colegas. Apesar dos contextos teologicos distintos e das conviccdes fortemente divergentes em alguns aspectos, os autores concor- dam em diversos pontos no entendimento da santificagdo. Pri- meiro, todos concordam que a santificagéo ensinada na Biblia implica passado, presente e futuro: passado, porque se inicia numa circunstancia de separacdo ja levada a efeito pela obra perfeita de Cristo; presente, porque se refere ao processo de cultivo da vida de santidade; e futuro, porque a culminacdo desse processo ocorrera com o retorno de Cristo, quando os efeitos do pecado serao de todo eliminados. Em segundo lugar, todos concordam que a santificacéo exige empenho do cristéo para expressar 0 amor de Deus na pratica. O cristéo deve dedicar-se as praticas cristas tradicionais e fazer, a cada dia, escolhas difi- ceis, contrarias ao pecado e favoraveis ao modo de vida pautado pela retidao. Finalmente, todos concordam que a Biblia promete éxito nesse processo de luta contra o pecado pessoal por meio do poder do Espirito Santo. De que forma, entéo, obter sucesso na santificacdo nesta vida? Que grau de éxito ¢ possivel obter? Sera que é normal, 10 = 5 perspectivas sobre a santificagéo ou até necessdria, uma experiéncia de crise apéds a conver- s40? Se for, qual é o tipo de experiéncia envolvida, e como verifica-la? Como se vera, os autores divergem nas respostas a essas questées. Ao avaliar as diferencas evidentes, o Ieitor deve observar atentamente as respectivas definicées das expressées biblicas chaves (principalmente pecado, velho homem/novo homem, perfeicdo e batismo com o Espirito"), bem como a expressdo wesleyana santificac¢do plena. Ao localizar o emprego desses conceitos nos argumentos e contra-argumentos, o estudante que se ocupa da santificagéo deve reconhecer — como fize- ram os autores — a necessidade de preservar tanto a sobera- nia divina quanto a responsabilidade humana. O ideal é que esse debate sobre santificagdéo promova nao apenas estimulo ao prazer da discussdo teolégica, mas incentivo para encami- nhar-se com mais reflexdo pela atual, ainda que antiga estrada da santidade, sem a qual “ninguém vera o Senhor" (Hb 12.14). *Batismo com o Espirito traduz a expresséo grega que também pode ser traduzida por batismo no Espirito ou batismo pelo Espirito [N. do C.]. 1 A perspectiva WESLEYANA MELVIN E. DIETER 2 A perspectiva “ORMADA ANTHONY A. HOEKEMA A perspectiva Pry STANLEY M. HORTON 4 A perspectiva de Keswick J. ROBERTSON McQuiL KIN fe a A perspectiva AGOSTINIANO-DISPENSACIONALISTA JOHN E WALVOORD A perspectiva WESLEYANA MELVIN F. DIETER Todo-poderoso Deus, para quem todos os cora¢ées sao aber- tos, todos os desejos conhecidos e de quem nenhum segredo se esconde: purifica os pensamentos de nosso cora¢4o pela inspira- cdo de teu Santo Espirito, para que te amemos perfeitamente e exal- temos com dignidade o teu Santo Nome. Por meio de Cristo, Nosso Senhor. Amém. (Livro de oracao comum, 1695) 0 ESTILO WESLEYANO A oracao pela santidade e pelo perfeito amor de Deus tem sido uma constante da igreja de Cristo ao longo da historia. John Wesley, 0 pai da familia metodista, incluia regularmente em seus momentos de devocdo e de ministério publico esta conhecida coletanea da igreja anglicana: o Livro de oracdo co- mum. Durante mais de 200 anos, seus seguidores foram reco- nhecidos pela preocupacdo com a fé ética. A doutrina wesleyana da santificagdo plena, também chamada de perfeicdo crista, expressa essa preocupacdo de forma mais definida. O interesse continuo e renovado pelos estudos sobre Wes- ley tem ajudado a divulgar no meio cristéo em geral algumas de suas caracteristicas marcantes como pessoa e como tedlo- go. Sua contribuicdo diferencial foi a conviccéo de que o ver- dadeiro cristianismo biblico encontra a mais alta expressdo e 0 teste decisivo de autenticidade na experiéncia pratica e ética do individuo cristéo e da igreja e, apenas de forma secunda- ria, nas definigées e proposicdes doutrinarias. A perseveran- ¢a nessa conviccaéo ao longo de seu ministério quase sempre 14 = S perspectivas sobre a santificaco tem levado os estudiosos da histdéria crista a relega-lo ao pa- pel de praticante sistematico, em vez de tedlogo instruido. O sucesso excepcional de Wesley em levar homens e mulheres a Cristo e os discipular para servir a Deus em suas aulas e reu- nides de estudo e outros pequenos grupos moldou-lhe forte- mente a imagem, quer entre o povo, quer entre estudiosos. E isso é justificavel.' Fica cada vez mais evidente, entretanto, que, por tras de todo o ardor evangelistico e do ministério de discipulado de Wesley, existe um conhecimento teolégico bem desenvolvido. A maior parte desse conhecimento estabeleceu-se justamen- te com base nas doutrinas centrais da Reforma e da tradi¢ao crista primitiva, como se evidencia nos Artigos: e no livro de oracao da doutrina anglicana. Entretanto, um ponto marcan- te distinguia sua interpretagdo da vontade de Deus para o homem da religido da época, a saber, a conviccdo de que o cristianismo biblico deve demonstrar, em ultima instancia, sua realidade em “uma fé que age por meio do amor divino” nas provacées da vida cotidiana, Esse entusiasmo por ver a ver- dade de Deus manifestada na experiéncia e no testemunho de cristaéos fiéis foi fortalecido pela convicgao de que cada pessoa podia responder positiva ou negativamente a oferta divina de salvacgao. Essa liberdade existe por causa da graca, e nao pela natureza. O entendimento de que a experiéncia espi- ritual representava interagdo entre a graga soberana de Deus ea liberdade da resposta humana fez de Wesley um persis- tente observador da experiéncia espiritual de seus seguido- res. Ele acreditava que, para a devida compreensdo da verdade, era fundamental 0 conhecimento de como a verdade divina, por si mesma, se traduz na experiéncia do povo de Deus pelo Espirito Santo, por meio da Palavra e dos caminhos da graca. Conseqtientemente, nado apenas a experiéncia de cristaos que ele conhecia, mas também a totalidade da experiéncia da igre- ja no passado Ihe ocupavam a atenc¢do.? Wesley interessava-se particularmente pela vida e pelo tes- temunho dos primeiros pais da Igreja, pois acreditava que a experiéncia destes com a gra¢a demonstrava melhor como os homens do passado receberam completamente, com compro- +39 Artigos de religido ~ conjunto de doutrinas da igreja anglicana, 1571 IN. do TI. Aperspectivawesleyana = 15 misso e amor, a vontade de Deus para a vida deles.? As novas tradugées em lingua inglesa dos pais da Igreja surgidas na épo- ca em que Wesley estudava na Universidade de Oxford consti- tufam uma das principais fontes para a compreensaéo da perfeicdo crista e da natureza da salvacdo. Essas influéncias, as vezes sutis, outras declaradas, distinguiram seus posiciona- mentos da principal corrente da tradicao da Reforma. Tais pen- samentos, juntamente com suas idéias acerca da relacdo entre santidade e amor, idéias estas que absorveu aos poucos de es- critores como Thomas a Kempis, William Law e Jeremy Taylor, passaram a ser 0 coracao e a alma do ministério e do ensino que Wesley adotou. O conceito da “fé que opera pelo amor divi- no” como o principio hermenéutico elementar para a plena compreensdo do plano de salvagaéo divino moldou-lhe forte- mente o ensino acerca da santificacdo. A “lei régia do amor” define as expectativas divinas quanto a vida e ao testemunho dos que receberam a salvac4o. Quando incorporamos as con- seqiiéncias desses destaques na teologia da salvagao, pode- mos entender por que a teologia de Wesley divergiu, em alguns pontos criticos, da tradic¢éo reconhecida em sua época e ainda hoje permanece como opcao aos ensinos predominantes dos reformados, da igreja catélica ou da igreja ortodoxa. Sua teolo- gia fundamenta-se principalmente na posi¢aéo reformada, mas dela se desvia ao considerar seriamente certos aspectos-chave tanto da posi¢ao catélica quanto ortodoxa.* Ainda que tenha usado suas observa¢ées e reflexdes acer- ca da vida dos cristéos do passado para moldar seu entendi- mento da vontade de Deus, Wesley considerava a Palavra de Deus absoluta e com total autoridade. Recusava-se a levar a sério qualquer ensino que nao estivesse fundamentado na genuina luz da revelacéo. Nenhum lider cristao foi mais fiel em submeter qualquer observa¢ao, experiéncia ou conclusdo racional ao julgamento final das Escrituras. “Se por principios gerais”, disse certa vez numa conversa, “vocé quer dizer algo que nao seja biblico, isso nao significa nada para mim. Eu nado admito nenhuma outra regra, seja de fé, seja de conduta, além das Sagradas Escrituras”.> Ao mesmo tempo, Wesley insistia em que a verdade divina nos foi dada para ser transformada em vida, e isso era possivel se ela fosse recebida e reconheci- da. Portanto, para entender plenamente a salvacdo, é preciso levar em conta o conhecimento de Deus dado aos que bus- 16 » 5 perspectivas sobre a santificagéo cam sinceramente a vontade dele e experimentam sua graca — qualquer teste digno de crédito do verdadeiro cristianismo deve contemplar essas provas. A experiéncia, ele acreditava, pode confirmar, mas nao criar, uma doutrina biblica. Apenas e tdo somente a Biblia pode fazer isso.® A paixdo pela santidade cristé ao longo da vida de Wesley foi intensificada pela conviccéo de que a Palavra de Deus en- sina, como preceito e promessa, que os cristéos nao devem ficar “satisfeitos com nenhum tipo de religiao que nao impli- que a destruicao de todas as obras do mal, ou seja, de todo o pecado”.’ Ele jamais admitiu a idéia de que os cristéos com- pletamente santificados pudessem tornar-se pessoas sem pecado, no sentido de nado poderem cair novamente em peca- do por desobediéncia. Ensinava, isso sim, que, sendo uma cria- tura dotada de livre-arbitrio, 0 homem é capaz de reagir com obediéncia ou desobediéncia a graca de Deus. Nesta vida, o homem jamais fica livre da possibilidade de pecar deliberada- mente. Pode, entretanto, libertar-se da compulsdo de cometer transgressdes voluntarias vivendo em obediéncia constante a vontade de Deus. Quaisquer que sejam as dificuldades que surjam quando se define a teologia, ou o contetido, ou os meios para atingir um relacionamento intimo de amor com Deus, elas néo podem significar nada menos do que a libertacéo do dominio do pecado nesta vida. Isso nao quer dizer, porém, libertagéo de todos os efeitos do pecado na loucura desse mundo em que vivemmos, mesmo em relacgéo ao mais perfeito de nossos relacionamentos debaixo da graca. A libertacdo to- tal dos efeitos do pecado, bem como de sua presenga, ainda deve aguardar a gléria vindoura.® Wesley acreditava que a promessa da vitéria sobre 0 peca- do na vida presente s6 era possivel por meio da vida de Cris- to introduzida no crente pelo Espirito Santo. Mesmo os que desfrutam grande intimidade com Deus ainda tém em si mui- tas imperfeicdes como parte e parcela do estado decaido da criagdéo e precisam depender diariamente dos méritos expia- torios do sangue de Cristo e orar com sinceridade: “Perdoa as nossas dividas, assim como perdoamos aos nossos devedo- res”, pois, ele observa, “nem 0 amor, nem a uncdéo do Deus Santo nos tornam infaliveis; contudo [...] nado fazemos outra coisa senéo errar em muitos aspectos”.’ No conhecido folhe- to sobre a perfeicado crista, Wesley afirma que “ndo existe per- Aperspectivawesleyana = 17 feig¢do em nivel maximo, como se denomina; nao ha ninguém que nao necessite de crescimento continuo. Dessa forma, por mais que alguém ja tenha crescido, ou por mais alto nivel de perfeicdo que tenha atingido, esse individuo ainda necessita crescer na graca e progredir todos os dias no conhecimento e no amor de Deus, seu Salvador”.!? No pensamento wesleyano, o compromisso integral de alguém no relacionamento de amor com Deus e com o préximo nao é um estado superior fixo. Em vez disso, € um novo estagio, uma nova arena de resposta ética 4 vontade divina, propria da regeneracdo que decorre do novo nascimento em Cristo. Os principios sola scriptura e sola gratia adotados pelos re- formadores também sAo estrelas fixas na constelacado de prin- cipios teolégicos wesleyanos. Deles Wesley absorveu também a énfase na fé individual. Afastou-se, porém, da tradi¢ao refor- mada com respeito a libertagdo do pecado que os crentes po- deriam experimentar nesta vida."' “As doutrinas da justificagao e da santificagéo fundiram-se numa sintese peculiar a Wesley, um amalgama da devocao protestante e da catdlica.” “De qual- quer forma, ele transcendeu os principios dos reformadores, corrigiu uma limitacdo notdria."'? A sintese wesleyana combi- nou a perspectiva reformada da graca soberana de Deus com a idéia da fé salvifica como principio ativo de santidade no cora- cdo e na vida do individuo. Ele uniu a doutrina reformada da total condicdo de pecado do individuo e da completa depen- déncia da graca com a doutrina arminiana da liberdade huma- na, que considera 0 homem e a mulher sujeitos ativos, com obrigac6es morais.'3 Portanto, a grande atencdo que Wesley dispensou 4 justifi- cacdo e 4 santificacdo é natural e surgiu das preocupacées praticas e teolégicas que o envolveram enquanto buscava en- tender a perspectiva biblica da salvacaéo. Sua pregacao e seu modo de pensar se pautaram por essas e algumas outras dou- trinas relacionadas que se refletem na pratica crista. Ele deu mais atenc4o, entretanto, 4 doutrina da santificacéo, tema que permeia toda a malha da pregacdo e da teologia wesleyanas. A SANTIFICACAO SEGUNDO WESLEY Wesley declarou que o propésito predominante e supremo do plano divino de salvacéo é renovar o coracéo do homem a 8 = 5S perspectivas sobrea santificacao imagem e semelhanca de Deus. Trata-se de um tema teleold- gico,™ pois ele acreditava que o grandioso curso da histéria da salvacdo biblica fluia em direcao a esse final e tinha, de forma restrita, mas clara, o cumprimento e a perfeicgaéo nesta vida. Wesley defendia que Deus prometera a salvacdo de todo pecado intencional e via essa promessa em passagens como, por exemplo, Deuteronémio 30.6; Salmos 130.8; Ezequiel 36.25,29; Mateus 5.48; 6.13; 22.37; Jodo 3.8; 17.20,21,23; Ro- manos 8.3,4; 2Corintios 7.1; Efésios 3.14-19; 5.25,27; e 1Tes- salonicenses 5.23. Ele acreditava que passagens como Lucas 1.69-75, Tito 2.11-14 e 1Jodo 4.17 indicavam que esse tipo de santificagéo ocorria antes da morte. Pela gracga, Deus haveria de nos restaurar a santidade perdida na Queda por nossos primeiros pais,'> Num sermao que representa bem as convicgées que Wes- ley teve durante sua vida inteira acerca dessa doutrina, ele declarou: Sabei vés que qualquer religiao que n&o sirva a este propésito, qualquer religiao que pare um pouco antes disto, da renovacao de nossa alma a imagem de Deus, conforme a semelhanca dele, quea criou, é apenas uma farsa infeliz, mera zombaria de Deus, para a destrui¢ado da alma [...] Por natureza, vos sois totalmente corrom- pidos. Pela graca, sereis totalmente renovados.!* A gracga reside na boa vontade de Deus para com todos, visto que ele nao deseja que ninguém pereca, mas que todos cheguem ao conhecimento salvifico de Deus. Somente os méritos da vida e da morte de Cristo nos trouxeram salvacdo, e apenas a graca da-nos a liberdade para aceitar a oferta de perdao, purificacdo e novo relacionamento de amor com Deus. O dom de aceitar é acessivel a toda pessoa, quem quer que seja. A perspectiva subjetiva da santificacdo esta firmemente associada a perspectiva objetiva predominante. Dois concei- tos aparentemente contradit6rios estao associados; “liberda- de e dependéncia se unem”.!” Deus manifestou pela primeira vez essa boa vontade para com o ser humano por meio da graca preveniente quando, no Eden, chamou Addo e Eva de volta a si, depois de eles se have- rem corrompido em todos os aspectos de sua natureza. Des- de entao, ao longo da historia, Deus continuou chamando todos os descendentes do primeiro casal — todos, sem exce- Aperspectiva wesleyana = 19 cdo, maculados pelo pecado original e oprimidos pela rebe- liao individual — de volta a si. O propésito insistente de Deus é restaurar no homem a imagem moral divina de amor e pu- reza do relacionamento com ele, perdida em virtude da que- da de nosso antepassado Adao. A “religidéo verdadeira”, sermao pregado em 1758 com base no texto de 1Jodo 3.8, é a restaura- cao do ser humano “por aquele que esmaga a cabeca da serpen- te” para “todos os que pela antiga serpente” foram destituidos nao apenas do favor divino, mas também “da semelhanca da imagem de Deus”, nao meramente a libertacdo do pecado, mas © enchimento da “plenitude de Deus”. Nada que disso careca é religido verdadeira, ele afirmou. Essa verdade perpassa a Biblia, Wesley alegava, conclamando os leitores a ndo se “sa- tisfazer com nenhum tipo de religido que nao implique a des- truic¢éo de todas as obras do mal, ou seja, de todo o pecado”. Trata-se da “fé que opera pelo amor’.!® O agente desse chamado 4 justificacao e a santificacdo é 0 Espirito Santo, que nos da a fé mediante a qual os elementos subjetivo e objetivo da salvacao divina em Jesus Cristo se tor- nam nossos. A obra benevolente do Espirito permite que o coracéo pecaminoso responda em obediéncia ao chamado divino para a salvacdo. Nesse processo, somos levados, pas- so a passo, ao momento de arrependimento e fé, quando nas- cemos de Deus por meio do Espirito para a nova vida em Cristo Jesus. Essa nova vida em Cristo traz-nos nao apenas a liberta- cao da culpa objetiva do pecado, pela justificagdo, mas tam- bém nos regenera pela santificac4o, criando, por intermédio do Espirito, a vida subjetiva de Deus e de Cristo em nés.'* A obra de regeneracao do coracdo realizada pelo Espirito mar- ca o ponto de partida da santificacado. Isso significa que nos foi dado o poder sobre 0 pecado, um direito de nascimento de todo 0 filho de Deus que busca conformar-se 4 imagem do Pai. Na regeneracdo inicia-se em nds a formagao da vida de Cristo; o chamado a santidade e ao amor divino passa a ser a forga mo- triz da nova vida sob o controle e a inspiracdo do Espirito que nos levou a ser adotados como filhos de Deus. Toda pessoa nas- cida de Deus tem, a partir do momento da regeneracdo, a pro- messa de vitéria sobre o pecado e o mal, dispondo do poder do Espirito Santo para concretizar essa vitoria na vida cotidiana.”° No entanto, Wesley, em conformidade com as tradicées re- formadas da época e em virtude da propria experiéncia espi- 20 = Sperspectivas sobre a santificagao ritual e compreensao das Escrituras, reconheceu que os cris- taos, principalmente os mais sérios no desejo de agradar a Deus e abandonar o pecado, sentiam a presenca de um ele- mento continuo de rebeldia, uma enfermidade crénica, que enfraquece o anseio pela santidade e pelo amor, e neutraliza a intencéo de amar a Deus e ao préximo sem reserva. “De fato, esta grande verdade, a de que existem dois principios contra- rios no crente — natureza e graca, carne e espirito — esta presente em todas as epistolas do apéstolo Paulo e em toda a Sagrada Escritura” ensinava.”? Ainda que outras tradicgdes teo- légicas da época acreditassem que essa Juta contra a rebeliao interior inata é normal, e até necessaria na busca cristé da vida santa, Wesley acreditava que o evangelho todo, em pro- messas e mandamentos, indicava algo diferente. Acreditava que existe libertacgao do dominio do pecado para todo o cris- téo, mesmo nessas miseraveis lutas fntimas, e que a graca de Deus sempre conduz o crente a uma vida de paz, alegria e amor maiores. Haveria um remédio para o mal da doenca cré- nica do pecado, isto é, a santificagdo plena — obra pessoal e definitiva da graca santificadora de Deus, por meio da qual a guerra interior pode cessar e 0 coracaéo pode ser completa- mente libertado da rebelido para amar a Deus e aos outros de todo o coracdo. Esse relacionamento de amor perfeito poderia consumar-se nao pela exceléncia de algum empreendimento moral, mas pela mesma fé nos méritos do sacrificio de Cristo pelo pecado que inicialmente trouxe a justificacdo e a nova vida em Cristo. Era “a morte total para o pecado e a renovacao completa a imagem de Deus”.”* A teologia do movimento de reavivamento metodista em geral se expressa com mais clareza nos hinos que nos ser- mées e folhetos. Um hino de Charles Wesley expressa a fé metodista quanto a essa questao: Da escéria em mim que ainda persiste Que eu ache escudo em Ti; também Do mal inato, ou mal que existe, Resguardaa alma refém. Lava-me a nédoa originaria, Me diz, nao pode ser assim, Almas ou homens! Mataram-no, O Cordeiro — e o sangue foi por mim! Aperspectiva wesleyana = 21 O ponto decisivo dessa experiéncia de purificacdo nao pre- cisa ser cronologicamente distinto da justificagdo e do novo nascimento, mas é logicamente distinto deles no continuum da salvacéo. Contudo, a exortagao biblica para os crentes bus- carem a perfei¢ao no amor, assim como os conflitos comuns do cora¢éo dividido indicam que os crentes normalmente se apropriam da pureza do amor numa crise de fé distinta da conversao, em algum momento posterior a justificagdo. O novo relacionamento de perfeito amor a Deus e ao proximo, decor- rente da fé, nado é nenhum tipo de amor diferente do que se vive na justificagdo; ao contrario, é o cumprimento deste. No aspecto negativo, a santificacdo plena equivale a uma assep- sia do coracaéo, que traz cura para as feridas e dores crénicas remanescentes do pecado adamico. No aspecto positivo, é a libertacgdo, a conversdo do individuo inteiro para Deus, a fim de buscar e conhecer sua vontade, que passa a ser 0 jutbilo da alma. No sermao “Sobre a Perfeicdo”, Wesley enumera diver- sas caracteristicas da santificacdo: 1) Amar a Deus de todo 0 cora¢ao e o préximo como a si mes- mo; 2) ter a mente de Cristo; 3) produzir o fruto do Espirito (de acordo com Galatas 5); 4) restauracaéo da imagem de Deus na alma, recuperagao da imagem moral de Deus, que consiste em “retidao e santidade genuinas’; 5) ter retidao interior e exterior, “santidade de vida que brota da santidade de cora¢ao”; 6) santificacdo divina no corpo, na alma e no espirito; 7) perfeita consagracao individual a Deus; 8) entrega continua, por intermédio de Jesus, dos pensamen- tos, palavras e acdes do individuo como sacrificio de louvor e acées de gracgaa Deus; 9) salvacdo de todo o pecado.* Esses conceitos lapidares, de origem biblica, constituem o cerne da idéia de santificagéo plena conforme entende a teo- logia wesleyana. A restauracéo da imagem de Deus, em amor, no coracao, embora seja um ponto critico na busca da santidade, nao re- presenta o passo final da salvacao divina, da graga santifica- dora, nem o estabelecimento do estado de graca permanente. Wesley nado admitia nenhuma interrupcao na busca cristé da santidade: “nao ha nivel mdximo de santidade, nao ha térmi- no”.*5 Pelo contrario, cada progresso na graga renova o zelo de perceber melhor os imensuraveis recursos da graca e do 72 = 5S perspectivas sobrea santificagao amor de Deus para os que nele confiam e a ele obedecem. Interromper a crise de fé pela qual somos restaurados por meio do Espirito ao amor perdido na Queda é ignorar nao sé os privilégios, mas também as expectativas da obra consuma- da de Cristo e do ponto final do plano de salvacdo. Conside- rar esse ponto de libertagdo inicial como um estado de graca ou uma vitéria final é desconsiderar as promessas e expecta- tivas que a salvacao nos apresenta pela obra de Cristo. Wesley acreditava que ha niveis de fé e de garantia da fé justificado- Ta, assim como existem infinitos niveis na experiéncia indivi- dual com Deus. A idéia da progressdo gradual na santificacdo se estende para além dos limites desta vida, embora a relacdéo fundamental que nutre esse desenvolvimento se estabeleca no momento da crise que gera a santificacdo plena.” Wesley entendia a santificacdo plena, ou perfeicdo no amor, como um continuum de graca e efeito que leva a pessoa, do estado de culpa e desespero do pecado, ao conhecimento de Deus e, pela fé na graga divina em Jesus Cristo, ao momento critico que gera a justificagdo e o novo nascimento.”’ A vida de santificacao flui da vida regenerada criada pelo novo nas- cimento e prossegue a medida que o Espirito Santo convoca 0 crente a obedecer 4 vontade de Deus, que é a expressdo da santidade e do amor divinos. Nessa etapa do progresso cris- tao na obediéncia a vontade de Deus e na conformacao 4 mente de Cristo, o que resta da rebelido e do estado decaido do ho- mem produz conflito e quase sempre causa abatimento. A natureza humana ainda esta corrompida pela doenca crénica que transforma a resposta livre e imediata ao amor de Deus numa fonte de contenda para a vontade interior do homem. As forcas volitivas tém de ser purificadas dos efeitos da Que- da, que permanecem mesmo apés a justificacéo, antes de o individuo estar completamente livre para desfrutar e expres- sar 0 puro amor de Deus nos relacionamentos. A énfase na importancia do que Deus realiza “em nés” por meio de Cristo, assim como no que faz “por nos" mediante Jesus, constitui a maior contribuicdéo de Wesley para a igreja. Wesley acreditava que a Biblia ensina clara e persistente- mente que Deus juntou o viver santo e a salvacdo pela fé num todo indivisivel.?* “Se cremos na Biblia, quem negara essa ver- dade? Quem duvidara dela?” perguntou. “Ela perpassa a Bi- blia do comeco ao fim numa cadeia continua.’ A proclamacao Aperspectiva wesleyana * 23 da “grandiosa salvacéo” de Deus, argumentava, faz parte da tradicado e da pratica da igreja primitiva®® e foi vivida, na his- toria posterior da igreja, pelos cristaéos zelosos sempre que houve o renascimento da pregacdo biblica e do discipulado obediente. Foi negligenciada, em grande parte, pelos refor- madores protestantes em virtude da repugnancia que lhes causavam as doutrinas que se aproximavam da salvacdo pe- las obras, as quais, entendiam eles, eram a causa do fracasso da doutrina crista da igreja catolica medieval. Deus, entao, confiara aos metodistas a responsabilidade especial de pro- clamar novamente essa verdade como direito de nascimento de todo o cristao. Ao fazer isso, eles levaram o principio re- formado da salvacdo somente pela fé 4 sua conclusdo légica e legitima.?! Wesley convenceu-se, mesmo antes do contato com os moravios, de que o relacionamento que implica viver perante Deus na perfeicao do amor era o propdsito supremo do cris- tianismo. A exemplo de Lutero, suas tentativas iniciais de co- nhecer a verdade por seus préprios meios resultaram em frustracéo e desespero. As disciplinas e as obras de caridade do “Clube dos Santos” nao foram suficientes.?? $6 depois de sua experiéncia de fé pessoal em Cristo, que ficou conhecida como a “experiéncia de Aldersgate”, ele entendeu que o relacio- namento com Deus se estabelece pelo mérito de Cristo, nao pelo mérito pessoal da pratica de boas-obras.3* Com a nova compreensao da fé e da graca, Wesley percebeu que um cha- mado claro a perfeicdo crista pela fé € conseqtiéncia légica do chamado enfatico dos reformadores a justificacao pela fé. A expressdo “fé que opera pelo amor” comecou a definir a idéia de santificagaéo que Wesley achava ser mais biblica e mais pro- xima da tradigao da igreja primitiva do que a proclamada pelo catolicismo e pelo protestantismo de sua época. O conceito de fé como meio de expressao do amor passou a ser a herme- néutica da graca e da salvacdo. Isso o situou, de acordo com alguns estudiosos, no terreno da devogao catélica. Mas sua recusa em abandonar o principio reformado da justificagéo pela fé, na opiniao de outros, colocou-o justamente em com- panhia de Calvino e Lutero.*4 Para Wesley, a graca soberana de Deus por meio da fé sal- vadora passa a ser o principio ativo de santidade no coragao do crente. A partir de sua reflexdo sobre esse amalgama de fé, 24 = Sperspectivas sobre a santificacéo vida, razdo e pratica da igreja, julgadas e autorizadas pela Palavra de Deus, o entendimento de Wesley acerca da santifica- cao foi ampliado e posto no centro de seu sistema teoldgico. Depois disso, ele manteve a conviccdo na doutrina, a despei- to da resisténcia oferecida pelo deismo insosso predominante na propria igreja anglicana e do antinomianismo desenfreado de muitas igrejas rurais nao-oficiais. Wesley e seus seguido- res apresentavam aos ouvintes a promessa de um coragao perfeito em amor, de uma restauracdo individual 4 imagem moral de Deus e de uma responsabilidade e um poder para manifestar esse amor no relacionamento com Deus e com o préximo. Por meio de Cristo e do Espirito Santo, que habita no crente, a “inclinagéo para 0 pecado” do coragao convicto e contrito pode ser purificada, e a “inclinagéo para a obediéncia em amor” pode tornar-se a forca motriz da vida. A conviccgéo de que se pode obter, ainda nesta vida, uma relacéo com Deus e com 0 préximo caracterizada em cada momento pelo amor divino constitui a linha diviséria de com- promisso dos que procuram ser de fato wesleyanos. Essa dou- trina é tao importante para a plena compreens4o wesleyana do plano da salvacaéo que distanciar-se de Wesley nesse aspecto seria desviar-se completamente do caminho que ele seguiu.?> 0 AMBIENTE TEOLOGICO Agora estamos prontos para esbogar com mais detalhes, ainda que com alcance necessariamente limitado, os temas biblicos e teolégicos particulares que mais diretamente forne- ceram a esséncia do entendimento wesleyano sobre a justifi- cagao e a santificacéo resumidos anteriormente. Pecado original e graca preveniente A compreensao acerca da natureza da condicéo do homem é ponto central em qualquer teologia. A doutrina do pecado original de um sistema teoldgico é, sem dtivida, um conceito igualmente decisivo na definicgao de santificacaéo desse siste- ma, e ambas, por sua vez, dependem de como esse sistema entende a doutrina da graca. Como se observou, os wesleya- nos declaram a corrup¢ao total pela desobediéncia do primei- ro casal, em completo acordo com a tradic¢ao reformada, Aperspectivawesleyana = 25 principalmente a de Calvino. Também declaram que o homem decaido s6 pode ser restituido ao favor divino pelos méritos de Cristo e nada mais. Nas Minutas da conferéncia de 1975, Wesley responde a questdo, situando-se muito proximo da fronteira com o calvinismo ao: “1) atribuir todo o bem a livre graca de Deus; 2) negar todo livre-arbitrio e poder naturais antecedentes a gra¢a; e 3) excluir todos os méritos do homem, quer por aquilo que ele tem, quer por aquilo que ele faz pela graca de Deus”.*° Qualquer entendimento da doutrina wes- leyana da salva¢do deve levar em conta a concordancia plena do wesleyano com estes trés ensinos criticos evangélicos: 0 homem se encontra, por natureza, totalmente corrompido; a corrupcao é conseqiiéncia do pecado original; ele s6 pode ser justificado pela graca de Deus em Cristo. A Queda e suas con- seqiiéncias sao fundamentais na doutrina wesleyana da jus- tificagéo e da santificagao.*” O livro de Wesley, Doctrine of Original Sin {Doutrina do pecado original], publicado em 1757, demonstra 0 quanto os conceitos sobre pecado estio embasados nessa doutrina. Es- crevendo em resposta ao unitarismo de John Taylor, Wesley fala, em seu momento de maior eloqiiéncia sobre o tema, da depravac¢ao total provocada pela Queda. Em flagrante con- traste com a visdo idealistica de Taylor a respeito da condi¢gao humana, sustenta que é justamente essa doutrina da corrup- cdo humana que faz a diferenga entre o cristianismo e a falsa religido. “Estaria o homem repleto, por natureza, de toda a forma do mal? Seria vazio de qualquer bem? Acha-se de todo decaido? [...] Se até aqui vocé concorda, entao é cristao. Ne- gue isso e nao passara de um pagao.”*? A corrup¢ao é a fonte de todo o pecado e toda a perversdo presentes em todos os filhos de Adao e Eva: Quao longe se estendem os pecados de nossos antepassados, de quem todos os homens herdam a existéncia; —essa mente car- nal avessa a Deus, o corac¢ao soberbo, egoista e amante do mundo! Pode-se estabelecer algum limite para isso? Porventura nao se di- fundem por todos os nossos pensamentos e se misturam com to- das as nossas emocées € disposicao mental? Nao é isso o fermento que leveda, mais ou menos, a massa inteira dos sentimentos? Sera que nao podemos, num exame intimo e fiel de nds mesmos, perce- ber essas raizes de amargura brotando constantemente e contami- nando nossas palavras todas, maculando nossas acées?” 26 = 5 perspectivas sobrea santificagao O verdadeiro prejuizo que Ado e Eva tiveram na rebelido contra Deus foi a perda da imago Dei que desfrutavam. Para Wesley, essa imagem se constitui de trés aspectos: 1) a ima- gem natural, que lhes conferia a imortalidade, o livre-arbitrio e os sentimentos; 2) a imagem politica, que lhes atribuiu au- toridade para governar o reino natural; e, o mais importante: 3) a imagem moral, que Ihes impregnava de justica e santida- de verdadeira, que os fazia semelhantes ao Criador em amor, pureza e integridade. Este terceiro aspecto também transmi- tiu-Ihes a capacidade intelectual. A Queda afetou os trés as- pectos, e a conseqiiéncia foi a perda da imago Dei. Todos os aspectos da natureza humana foram contaminados pelo pe- cado. O amor e o conhecimento de Deus foram substituidos por alienacdo e falta de desejo de conhecé-lo, A liberdade de escolha rebelou-se contra a vontade divina em desobediéncia deliberada. O intelecto tornou-se obscuro e insensivel.*! Em resumo, Wesley definiu o pecado original como a cor- rup¢ao total da natureza humana como um todo.“ No serméo “The Deceitfulness of Man’s Heart” [A falsidade do coracaéo humano], escrito em 1790, egoismo, orgulho, amor ao mun- do, independéncia de Deus, ateismo e idolatria sao descri- tos como a origem da maldade humana.*? Tal perspectiva correlaciona nitidamente a concepcao de Wesley a respeito do pecado original e as conseqtiéncias para a raga humana a perspectiva de Agostinho: os dois tedlogos interpretam o ensino de Paulo sobre o tema de forma semelhante, e consi- deram Addo o primeiro predecessor e representante da hu- manidade.** Diferentemente de Agostinho, porém, Wesley entende a Queda como decorréncia da falta de amor, e nao da concupiscéncia. Quando Wesley discorreu sobre a perda da imagem de Deus na Queda, entretanto, falou em termos absolutos apenas quan- to 4 imagem moral, que considerava preeminente e exclusiva- mente relacionada com a salvacdo. Depois da Queda, o homem reteve vestigios das imagens politica e natural; as pessoas sao automotivadas, diferentemente da cria¢do material passiva, e ainda mantém certo grau de senhorio sobre a ordem criada.*® Com base na compreensao do relato biblico da Queda, Wesley entendeu que a resposta divina era um plano de salvacaéo que promete a restauracao gratuita, por meio da fé, do relaciona- mento de perfeito amor a Deus que o primeiro casal desfruta- Aperspectivawesleyana = 27 va.6 A promessa se estende a todos os que crerem no sacrificio suficiente do segundo Adio. A solugao definitiva para as im- perfeigdes da ordem criada e a perda dos aspectos natural e politico da imagem divina que Addo desfrutava deve aguar- dar a consumacao de todas as coisas. Por conseguinte, Wesley acreditava que, por sermos imperfeitos num mundo imperfei- to, a perfeicéo “no amor” é coerente com “milhares de erros”. Mas, mesmo limitados por nossa imperfeicaéo e a do mundo, ainda podemos desfrutar um relacionamento em que, me- diante o poder do Espirito Santo, somos capazes de cumprir o maior e mais importante mandamento: amar a Deus de todo o nosso coracgdéo e ao préximo como a nés mesmos. Qualquer expectativa inferior a essa nao alcanca a plenitude da “grande salvacgao”.*” Esse otimismo, que aflora das ruinas de téo drastico revés —a perda da imagem divina —, é definido por Wesley e todos os tedlogos evangélicos da igreja como “otimismo da graca”. Nesse aspecto, a teologia de Wesley diverge de grande parte do pensamento da Reforma no que diz respeito a como e quan- to a graca de Deus supera e reverte as perdas advindas da Queda. O otimismo da graga, que leva 4 crenca na promessa (e, conseqtentemente, na possibilidade) de libertacaéo com- pleta dos efeitos da perda do relacionamento espiritual do jardim do Eden, bem como 4 restauracao plena do perfeito amor no relacionamento cristéo com Deus e 0 proximo — esse otimismo da gracga repousa em grande parte na compreensao de Wesley da graca preveniente e da liberdade de resposta do homem. Deus oferece a nés todos porcées variadas de graca; se as reconhecermos e recebermos, “poderemos viver”, mas, se preferirmos 0 contrario, “morreremos’.** Os metodistas afir- mam que, apds a Queda, as pessoas foram contaminadas em todos os aspectos pelo pecado, pelo orgulho e pelo espirito de rebeldia. Por forca e vontade préprias néo conseguem es- colher nada mais a nao ser o pecado. Wesley afirma que no homem nao ha nem conhecimento, nem consciéncia naturais de Deus. Quando Paulo trata des- sas duas fontes de conhecimento de Deus, em virtude das quais todos sdo considerados responsaveis e todo aquele que permanecer no pecado é condenado, refere-se a acdo da gra- ¢a divina preveniente, que opera para dirigir todas as pesso- as a Deus. Depois da Queda, o homem perdeu a capacidade 28 = Sperspectivas sobre a santificagao natural de conhecer a Deus ou merecer a salvacdo. Wesley resumiu assim seu ponto de vista: Considerando que a alma de todos os homens esta por natureza morta no pecado, nao se desculpa ninguém, uma vez que ninguém se acha em estado de simples natureza. Ninguém é completamente destituido da graca de Deus, a nao ser que tenha extinguido 0 Espiri- to,. Nenhum homem vivo esta inteiramente destituido do que popu- larmente se chama consciéncia natural. Mas essa nao é natural. Com mais propriedade, devia denominar-se graca preveniente. Todo 0 ser humano tem maior ou menor por¢do dessa, que nao espera 0 pedido do homem [...] Dessa forma, ninguém peca porque néo tema graca, mas por nao usar a graca que ja tem.*® A “luz que ilumina todo 0 homem que vem ao mundo” ime- diatamente comeca a torna-lo consciente da necessidade e da possibilidade de restauracéo em meio a sua ruina. As inces- santes e urgentes tentativas divinas de despertar o homem e leva-lo a consciéncia da necessidade de confiar na graca de Deus s&o a forca dindmica que percorre o continuum da gra- ca, que leva o homem de graca em grac¢a no continuum da salvacao. O propdsito fundamental da graca preveniente, que precede a graca salvadora, é estabelecer o amor no coracdéo de cada filho de Adao e Eva a fim de que eles sirvam a Deus em “justig¢a e verdadeira santidade” por toda a vida. A graca pre- veniente é o inicio do processo pelo qual Deus comega a ilu- minar o homem na escuridaéo da Queda; ela leva os que a recebem com fé para a graca salvadora, a graca santificadora ea graca de uma vida de amor. Quando posto em correspon- déncia dindmica com as demais afirmacgées de Wesley sobre a queda completa do homem em qualquer aspecto natural, isso significa que a salvacdo chega até nds somente pela graca que emana da obra expiatoria de Jesus Cristo, jamais por alguma capacidade ou realiza¢ao natural. O continuum da lei e do amor O segundo conjunto de doutrinas complementares essen- ciais ao entendimento wesleyano da santificagao é lei e amor. Os estudos do Antigo Testamento (AT) e do Novo Testamento (NT) levaram Wesley 4 conclusdo de que as pessoas que, pela Aperspectiva wesleyana * 29 graga, cumprem a “lei régia do amor”, ensinada com a maior simplicidade e clareza pelo proprio Cristo no Sermao do Monte € posteriormente por todos os escritores neotestamentarios, também estéo cumprindo o propdésito moral dos Dez Manda- mentos. Dessa forma, Wesley relaciona o cumprimento das obri- gacoes da lei moral ao processo e propdsito da santificacao, em vez de relaciona-lo 4s concep¢ées mais objetivas da orto- doxia reformada, que considera o ato de justificagaéo do crente o cumprimento e a satisfacdo da exigéncia moral da Lei. A énfa- se reformada esta na libertacéo das obrigacées morais da Lei em virtude de termos sido “providos da justica de Cristo”. Wesley também usava essa terminologia,*° mas com notoria diferenga de aplicacdo. A justica de Cristo nos cobriu com o perdao e a favor divinos; Deus nisso conserva uma atitude objetiva com respeito a importancia da justificagéo. Mas o cumprimento da obra de Cristo no que se refere a satisfacao da Lei repousa nao tanto no que ele fez na cruz “por nds’, mas no que sua obra na cruz faz “em nés”, uma vez que a vida de Cristo passa a ser a nossa vida no novo nascimento e na santificacdo.5! Como ob- serva Lindstrém, “isso explica por que a santificagdo, no senti- do de cumprimento da Lei, ocupa lugar téo importante na teologia de Wesley’”.*? Wesley sempre considerou a Lei boa e santa. Para ele, naéo ha a forte tensdo entre Lei e Evangelho que permeia a teologia de Lutero.3 A compreensao de Wesley sobre a importancia do Serm&o do Monte tornou-se o ponto central para entender a relacdo entre o perfeito amor e os mandamentos de Deus como a lei régia do amor. Wesley afirmou que 0 Decalogo se renova no Sermo do Monte em espiritualidade e pureza santificado- ras e define a vida de santidade pratica crista, que ¢ o propo- sito dos mandamentos e da fé.*4 Concluiu que a promessa persistente que sempre fez parte da apresentacdo da Lei no AT equivale a dar ao homem graga para amar a Deus e cum- prir os mandamentos. A promessa do Evangelho, posterior a Lei, nao é de forma alguma contraria a anterior, antes cumpre os propositos essenciais da lei moral. A lei moral, dizia, “é uma imagem incorruptivel do Alti mo e Santo Deus, que habita a eternidade [...] £ a face desco- berta de Deus; Deus manifesto [...] para dar a vida, e nado destrui-la — a fim de que 0 vejam e vivam”.°* A Lei é boa e, portanto, nela esta a revelacdo da santidade, da justica e da 30 = 5 perspectivas sobrea santificagao bondade de Deus. Mesmo que a Lei desmascare nossa justica propria e seja o rigoroso tutor que conduz a Cristo, por tras da severidade evidente esta o amor de Deus, que nos dirige e nos atrai para uma vida de amor, o fim da Lei. Nesse sentido, a Lei se transforma num evangelho. Mas o seu cumprimento e a béncdo que provém da obediéncia sao reservados apenas aos que compartilham a vida de Cristo, participantes da natureza divina. Mandamento e promessa unem-se, e a lei régia do amor passa a ser 0 ideal e o deleite somente dos que estado sob a graca. Wesley rejeitou qualquer insinuacao de que a grande insis- téncia na importancia da Lei representasse legalismo, e alega- va que a Biblia em nenhum momento condena a compreensao do que, para ele, significava cumprir a Lei de Deus. Foi além e declarou que rejeitava também qualquer falsa liberdade que nao fosse “a liberdade para amar e servir a Deus” e nao temia nenhum tipo de servidao, a nao ser a “escravidéo do pecado”. Além disso, a afirmacgdo de Paulo de que Deus enviou “seu préprio Filho, a semelhanga do homem pecador [...] a fim de que as justas exigéncias da Lei fossem plenamente satisfeitas em nés” [Rm 8.3,4] nos ensina que o NT considera a “justica da Lei” como “justica legal”.5”? Mas os cristaéos foram absolvi- dos da “maldigao da lei moral” e de seu poder condenatorio.** Eles sao téo-somente (e sempre) aceitos “em Cristo”.*° Dessa forma, o cumprimento da Lei esta relacionado ao ato de santi- ficagao, e nao ao ato de justificagao. A vida cristé foi planeja- da pela graca para ser um movimento progressivo, do novo nascimento a santificacaéo plena e a perfeicéo no amor. O re- sultado final da perfeicdo crista nao é espiritualidade interior, mas acées de amor. A fé salvadora se cumpre na vida que manifesta santidade e altruismo no amor de Cristo; caso con- trario, é morta. Por salvacdo, Wesley entendia ndo apenas, de acordo com a nocao popular, a libertacdo do infer- no, OU O acesso ao céu; masa libertacdo do pecado no presente, a restituicdo da alma ao estado inicial de satide, a pureza original; a restituicdo da natureza divina; a renovacdo da alma em busca da imagem de Deus, em retidao e verdadeira santidade, em justica, misericordia e verdade. A fé € o meio pelo qual a Lei se comprova, e o amor é 0 cumprimento dos mandamentos. O amor, e nao fé, vem a ser 0 objetivo final do plano de salvacdo. O amor é “a finalidade Aperspectivawesleyana = 3} de todos os mandamentos de Deus”, declarou Wesley. £ 0 “pro- pdsito, o Unico objetivo de todas as dispensagées de Deus, desde o inicio do mundo até a consumacio de todas as coi- sas”.*! A fé em Cristo néo deve substituir, mas sim gerar a santidade. A fé é simplesmente a “serva do amor [. A fé biblica, para Wesley, esta téo intimamente ligada ao amor e a obediéncia [...] que ndo pode existir sem eles”. Uma vez que o amor nao pode existir sem a acdo de um ser moral, a tendéncia da teologia wesleyana é evidentemente éti- ca; a esséncia da justificacao é o amor em acao. O verdadeiro cristianismo é “ter a mente de Cristo”, 0 que é demonstrado pelo amor a Deus e ao préximo.® A verdadeira libertagdo do cristéo nao é a isen¢gdo da culpa, tampouco a salvacdo da an- gustia do inferno, mas a liberdade para amar com o amor que © préprio Deus Ihe derramou no coracéo mediante a habita- ¢ao do Espirito Santo. Em Plain Account [Consideragées sin- ceras], Wesley resumiu liberdade como “nada mais, nada menos que isto [...] 0 amor controlando o coracao e a vida, permeando pensamentos, palavras e acées [...]. A perfeicdo crista é pureza nas intengoes, é dedicar a vida toda a Deus. E entregar a Deus todo o coracdo".® “O Cristo salvador nao é uma proposicaéo a ser aceita, mas uma pessoa a ser amada e obedecida”, observa Wynkoop acerca dessa questdo na dou- trina de Wesley. A manifestacgdo da fé é obediéncia e amor. A natureza e a obra do Espirito Santo O terceiro elemento essencial que contribui de forma rele- vante para a compreensdo wesleyana da santificacado é a obra do Espirito santificador. Se a esséncia do ser divino é o amor santo, logo, 0 supremo desejo de Deus é transmitir essa san- tidade as criaturas com quem ele deseja compartilhar a pré- pria imagem. O Espirito Santo é denominado santo nao apenas porque é Deus, mas porque, como revelam as Escrituras, trans- mite a propria natureza divina aos filhos de Deus. Concede a vida de amor por meio da vida de Jesus Cristo, que neles ha- bita na presenca e no poder do Espirito, Wesley concebia a santidade com relacdo a Deus tanto como verbo quanto como adjetivo.” O Espirito é o Espirito de Cristo. Wesley considera- va essa promessa do Espirito, que finalmente restituira o ver- dadeiro e pleno amor de Deus ao coracdo de todos os que 32. Sperspectivas sobre a santificagao. crerem em Jesus Cristo, um dos grandiosos temas de salva- cdo tanto da Antiga quanto da Nova Alianga. A “litania das promessas biblicas de pureza de coracdo e amor perfeito”®™ que ele recitou durante toda a vida comumente se iniciava com a promessa de Deus a Moisés em Deuterondmio 30, se- gundo a qual ele ia “circuncidar 0 coragdo do povo” de modo que este o amaria de todo o coracao e obedeceria a seus esta- tutos. Transformava-se nas arrojadas promessas de Jeremias 31 e Ezequiel 36, nas quais Deus declara a intencao de resti- tuir seu Espirito ao povo numa Nova Alian¢a que, por sua vez, Ihes permitiria andar no caminho dele e obedecer, pois Ihes seria dado um novo coracgao — o desejo de amar em vez de desobedecer. Wesley ouvia o tema da centralidade do Espirito santifica- dor ressoar na promessa de Jesus de que os que tém fome e sede de justica serao saciados. O tema foi repetido por Jesus no discurso aos discipulos pouco antes de sua morte, con- forme registra o apdstolo Jodo. Os hinos de Charles Wesley sobre santificacéo reforcam a conviccdo wesleyana de que, pelo poder da habitacdo do Espirito, 0 novo povo de Deus é capaz de viver em justica e verdadeira santidade por toda a vida. Inerente ao mandamento biblico de ser perfeito esta a promessa de cumprimento. A Lei, como se assinalou, tam- bém é um evangelho. Deus prové graciosamente tudo quanto exige do homem. Wesley salientava que na dispensacdo crista foi concedida uma medida maior do Espirito Santo que na dispensacao judaica, pois as possibilidades de salvacdo na dispensacao cristaé séo muito maiores do que aquela poderia prover. $6 apds a glorificagaéo de Cristo, a graca santificadora do Espirito Santo foi concedida plenamente aos verdadeiros crentes.* Wesley encontrou apoio para a doutrina da perfei- ¢do tanto na experiéncia crista quanto nas Escrituras. Por meio do Espirito, os crentes podem ter a conviccao do relaciona- mento com Deus em amor, uma vez que receberam o teste- munho do Espirito para o novo nascimento em Cristo. Embora Wesley sempre defendesse a pregacdo zelosa da bus- ca da perfeicao cristaé nas sociedades e nas igrejas de que parti- cipou, também defendia um enfoque pastoral tanto em sua apresentacao quanto em sua aplicacaéo. Os individuos sinceros e interessados deveriam ser “motivados ” pela esperanca, pela alegria e pela vontade, e nao “impelidos” pelo medo que os es- Aperspectiva wesleyana = 33 cravizava. Tampouco deveriam se deixar dominar pela ansie- dade, nem mesmo em virtude do pecado remanescente. A espe ranca em Cristo sempre é maior do que a desesperanga, e deve guid-los as promessas e ao amor de Cristo, que lhes dara a liber- tagdo e a purificacaéo que desejam.” Eles também nao devem depreciar a graca que ja receberam por meio do Espirito Santo, que neles passou a habitar quando se tornaram filhos de Deus. Wesley advertia seus seguidores a “falar das béncaos da condi- cdo de justificados com a maior veeméncia possivel sempre que testemunharem sobre a santificagdo plena’.”! 0 CONTEXTO BIBLICO A doutrina da santificacdo plena, ou perfeicdo crista, que é © coracaéo da “teologia wesleyana do amor’, tem sido freqiien- temente atacada como simples ideal perfeccionista — atraen- te, mas impraticavel num mundo de imperfeicao e pecado. Os metodistas, contudo, concentraram-se justamente no ideal que consideram o pensamento predominante e claramente exposto em toda a Escritura como a esséncia do evangelho. Negar a expectativa de realizacdo desse ideal, quando apre- sentado corretamente com integridade e equilibrio biblicos, seria deixar de comunicar a totalidade da riqueza da graca de Deus, agora acessivel a seu povo para a vida e o servico. Nao me € possivel apresentar por completo, aqui, os argumentos pelos quais Wesley e seus seguidores procuraram demons- trar essas informacées biblicas. Entretanto, as breves consi- deragées a seguir desenvolvem alguns dos temas biblicos ventilados no resumo teoldgico anterior e introduzem outros topicos que vao direto ao nticleo do que os wesleyanos consi- deram mandamentos e promessas biblicas relativos 4 nature- Za da santidade crista. E essencial lembrar que os metodistas ndo chegaram a esse entendimento biblico da santificagdo mediante algum siste- ma de deducao logica a partir de determinados textos ou pro- posicgées cabais. Suas conviccdes sobre a possibilidade da perfei¢do em amor nesta vida e a experiéncia de fé da purifi- cacao do coragao apos a justificacéo provém da tentativa de- les de enxergar as Escrituras de forma global. Os wesleyanos acreditavam que, por tras dos temas teolégicos e biblicos es- bogados anteriormente — o significado da criacéo, a queda 34 = 5 perspectivas sobre a santificagao do homem, o entendimento da Lei e da graca, e o ministério e a obra do Espirito Santo — esta o mais importante dos temas biblicos, isto 6, o chamado 4 santificacao, ou a prépria santi- dade, com seu objetivo supremo de progredir no relaciona- mento com Deus e com o proximo. A vida de amor santo, portanto, deve ser a meta e a esperanca dos nascidos de Deus. A sintese que Cristo apresentou quando definiu o cumpri- mento da Lei como amar a Deus de todo o coracao, alma e entendimento, e ao préximo como a nés mesmos (Mt 22.37- 39) é a verdade biblica fundamental que estabelece os princi- pios hermenéuticos para a compreensao do propdésito de Deus em toda a obra da redeng¢ao por Jesus Cristo, seu Filho. Desse mandamento dependem a Lei e os profetas. Manifestar o san- to amor de Deus, que provém de um coracdo nao dividido, é o objetivo da vida cristéa. O que passa disso é comentario. O significado basico da palavra santificar é “separar” ou “consagrar”. A palavra deriva do termo hebraico gadash, que quer dizer “separar” ou “dividir”. Significa retirar pessoas ou coisas do ambiente profano e separa-los para Deus. Desse modo, pessoas e coisas se tornam “santas”. Assim, a nagdo de Israel inteira era santificada pelo Senhor (ver Ex 19.10). Pedro afirma que a igreja se constitui da “geracdo eleita [...], nacao santa, povo exclusivo de Deus” (1Pe 2.9). Neste sentido, todo 0 cristéo verdadeiro é santo e consagrado (ver At 20.32; 26.18; Rm 15.16; 1Co 6.11; Ef 5.26; Hb 2.11; 10.10,14; 13.12). No NT, contudo, o termo traz uma forte énfase em outro elemento: a ética. Aquele que é santificado demonstra a santi- dade e o amor, ou o carater, do Deus a quem foi consagrado. Essa idéia nado esta ausente no AT, mas, sem diivida, nao se destaca. Com base nesse contexto, Pedro aplica a Igreja a ad- moestacao de Deus a Israel: “Pois eu sou o Sennor, 0 Deus de vocés; consagrem-se e sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.44). O apéstolo exorta os cristaos: “Mas, assim como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocés também em tudo o que fizerem, pois esta escrito: ‘Sejam santos, porque eu ou san- to’” (1Pe 1.15,16). Dirigindo-se a todos, Pedro nao esta tratan- do de um conceito abstrato de santificagao. Ele adverte os crentes de que a obediéncia e a vida cautelosa devem caracteri- zar a conduta deles, ao contrario da perversidade anterior. O contexto revela que o amor é 0 teste de santidade. Os wesleya- nos interpretam de forma semelhante o mandamento de Jesus Aperspectivawesleyana = 35 no Serméo do Monte: “Portanto, sejam perfeitos como perfei- to é o Pai celestial de vocés” (Mt 5.48). Deus insiste em que a santidade crista é mais do que legalidade objetiva; é também uma realidade subjetiva. “Assim, pelos seus frutos vocés os reconhecerao” (Mt 7.20). Essas palavras de Cristo e dos apés- tolos néo podem ser tomadas apenas como ideais que se trans- formam num novo tipo de legalismo, que por sua vez nos atrai para fazer o melhor, mas nos nega qualquer medida real de integridade pratica e a plenitude do relacionamento com Deus em amor, Deus deseja ter (na verdade, precisa ter) um povo santo com quem comungar — tema que atravessa as Escrituras. Considere-se, por exemplo, a oracdo de Paulo pelos cristaos de Tessalénica: “Que o proprio Deus da paz os santifique in- teiramente. Que todo o espirito, a alma e 0 corpo de vocés sejam preservados irrepreensiveis” (1Ts 5.23), e a declaracdo de que “Cristo amou a igreja e entregou-se por ela para santi- fica-la [...] e para apresenta-la a si mesmo como igreja glorio- sa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa ¢ inculpavel” (Ef 5.25-27). Uma traducdo mais literal do Ultimo texto revela com mais clareza suas verdadeiras conclusde “Cristo amou a assembléia e entregou-se por ela, para santifi- ca-la, tendo ja [ou primeiro] a purificado pelo lavar da agua mediante a Palavra”. A preparacdo da igreja como noiva é a idéia ou o propésito fundamental. “Sem mancha nem ruga” é outra forma de dizer “santa e sem culpa”. As duas expressées revelam a realidade da santificagdo do cristéo e da igreja e transmitem claramente conotacgdes morais, como Paulo ex- pressa. Hebreus 13.12 apresenta o mesmo tema: “Assim, Je- sus também sofreu fora das portas da cidade, para santificar o povo por meio do seu préprio sangue”. O propésito central da cruz foi a santificacdo do povo de Deus tanto coletiva quan- to individualmente. O proposito da santificagdéo é moral e ético, como foi indi- cado no estudo da oracdo sacerdotal de Cristo por seus disci- pulos em Jodo 17, e nao se trata apenas de uma pretensao dos cristéos de se acharem em posicdo especial diante de Deus. O Pai santificou o Filho a fim de que este santifique os disci- pulos e os lJeve a uma tal unidade com o Pai, em amor, que 0 testemunho deles seja capaz de convencer o mundo. O mun- do s6 pode conhecer a realidade dessa unido mediante evi- 36 ™ Sperspectivas sobre a santificacao déncia concreta do bom estado moral que flui do amor divino que eles experimentam. A orac4o foi feita em favor dos disci- pulos e de todos os que viriam e virdo a crer em Cristo por meio das palavras e obras deles, as “obras maiores”, que eles mesmos poderiam realizar por meio do poder do Espirito (Jo 14.12). Esta evidente no contexto que apenas a questdo da posicaéo em Cristo ou a experiéncia sobrenatural com ele ja- mais poderia causar o testemunho no mundo pelo qual Jesus orou. Mildred Wynkoop observa que Jodo 17 apresenta notavel paralelismo com Efésios 4: 1) Jesus tinha em mente o corpo espiritualmente unificado dos crentes, 2) Isso traria gléria para ele. 3) Ele morreu para santifica- los. Todos os outros elementos da redengao estado incluidos, mas de forma secundaria a esse. 4) A santificacdo se da em palavra e obra. “Palavra”, obviamente, nao se referia as Escrituras primaria- mente, mas se encontrava em comunhdo viva com o Verbo Vivo, que éa propria verdade. 5) A comissao veio acompanhada de uma adverténcia moral: a unidade de espirito indicada nas duas passa- gens é completa pureza moral.”? Todas essas passagens fazem ressoar a mesma nota do intento divino: a salvacéo concentra-se na santificagdo prati- ca dos crentes, individualmente e como povo de Deus. Os adeptos dessa concepcdo reconhecem que nao existe no NT nenhuma exorta¢do explicita semelhante a essa no que tange a buscar a santificagao. Existem, sim, admoestacées para que “seja a atitude de vocés a mesma de Cristo Jesus” (Fp 2.5). Deve-se encontrar a maturidade da vida crista entre os que comecaram a “despir-se do velho homem” e a “revestir-se do novo homem’ (Ef 4.22,24). Os cristéos sao constrangidos a purificar-se “de tudo 0 que contamina 0 corpo e 0 espirito” (2Co 7.1). “Todo pensamento” deve ser conduzido prisioneiro “para torna-lo obediente a Cristo” (2Co 10.5). E nosso dever também livrar-nos “de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos envolve” (Hb 12.1). Paulo afirma que, na igreja de Corinto, alguns crentes eram carnais e outros espirituais: “Ir- maos, nao lhes pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a criangas em Cristo” (1Co 3.1). No capitulo an- terior, ele fala também de alguns como perfeitos — o que im- plica que outros nao eram perfeitos. Nesse texto (e em muitos Aperspectiva wesleyana = 37 outros semelhantes) os cristéos so advertidos e admoesta- dos acerca dos que visivelmente ainda nado conheceram a es- piritualidade, a perfeicdo ou a liberdade de que devem e poderiam apossar-se pela graca disponivel a eles como filhos de Deus. O chamado a essa vida de libertacdo da velha natureza re- belde e o chamado concomitante a liberdade para servir a Deus e aos outros de todo o coracdo sao centrais na obra e na pregacdo apostélica. Paulo escreve: E ele designou alguns para apéstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra do ministério, para que 0 corpo de Cristo seja edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos a maturi- dade, atingindo a medida da plenitude de Cristo. (Ef 4.11-13) As Ultimas frases designam um ideal (ou objetivo) maravi- Ihoso da vida crista, e a tarefa principal do lider é trabalhar constantemente para levar todos os crentes a cumprir esse ideal. Paulo também afirma que a tarefa do ministro de Cristo é “que apresentemas todo homem perfeito em Cristo” (Cl 1.28). O apostolo fala de si mesmo como alguém que “noite e dia” insistia em “suprir o que falta a sua fé” (1Ts 3.10). Jodo alude as préprias expectativas quanto aos crentes quando declara que “o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo peca- do” (1Jo 1.7). Em lJoao 3.8 lemos: “Para isso o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo”. Essa afirma- ¢ao é fundamental para a compreensao biblica do plano de Deus e do propésito da salvacdo, principalmente com respei- to ds conotacdes morais, éticas e existenciais dos versiculos que cercam esse texto, Esses e muitos outros textos ilustram e expandem estas palavras de Jesus: “Digo-Ihes a verdade: Todo aquele que vive pecando é escravo do pecado [...] Por- tanto, se 0 Filho os libertar, vocés de fato serao livres” (Jo 8.34- 36). O chamado 4 santidade e ao amor esperados da vida crista é veemente e inquestionavel. O ministério do evangelho deve levar os crentes a plenitude das promessas biblicas. A doutrina biblica sobre a criagéo do homem 4 “imagem” e “semelhanc¢a” de Deus (Gn 1.26,27) é outro tema que reforca e legitima o interesse wesleyano pela libertacao do pecado e pelo poder correspondente de transformar esse homem em since- 38 = 5 perspectivas sobrea santificacao ro amante de Deus. O conceito de imagem n4o deve limitar-se e tampouco deturpar-se a identificacao com conceitos filosé- ficos de espiritualidade, racionalidade e eternidade. Pelo con- trario, deve manifestar-se num relacionamento de amor marcado pela comunicacao (1Jo 1.3,4), responsabilidade (Gn 2.15-17) e administracao zelosa (Gn 1.26,27). Todos esses dons devem-se ao amor de Deus, e 0 homem jamais pode estar totalmente liberto se nao desfrutar a liberdade de servir a Deus e ao préximo numa relacao de amor divino procedente de um coracéo sincero. Essa liberdade e esse amor sdo o propésito da salvacéo. Como ja foi demonstrado, em Ultima anilise, a Queda concentrou-se néo na concupiscéncia, mas na perda do amor, da imagem divina. Foi produto da rebeldia de agen- tes livres, dotados de vontade, que manifestaram o egoismo nas agées. O antidoto, de acordo com Paulo, é recebermos em Cristo uma nova natureza, “a qual esta sendo renovada em conhecimento, 4 imagem do seu Criador” (Cl 3.10). Na “uniao com Cristo” uma nova natureza humana é criada. Os wesleya- nos sustentam que permitir um padrao inferior a restituicao da alma do homem a imagem de Deus é diminuir a plenitude da expiacdo de Cristo. Essa vida do crente, “em Cristo”, é central na concepcao paulina da natureza da salvacdo. O préprio Cristo introduziu © assunto, principalmente pouco antes da morte, nas conver- sas particulares com os apostolos, como registra Joao: “Eu sou a videira; vocés sdéo os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dara muito fruto; pois sem mim vocés nao podem fazer coisa alguma’” (Jo 15.5). Paulo menciona 164 vezes que os Cristaéos estao “em Cristo”, “nele” ou “no Senhor” em todas as Cartas, exceto uma. O impacto de tdo grande tes- temunho biblico indica aos wesleyanos que o entendimento individual, subjetivo e existencial do pecado e da salvacdo é téo necessario quanto o entendimento objetivo, ou legal. Os temas aqui representados unem-se na afirmacdo de Paulo: “Portanto, se alguém esta em Cristo, é nova criacdo. As coisas antigas ja passaram; eis que surgiram coisas novas!” (2Co 5.17; v. tb. Rm 8.1; 1Co 15.22). A incorporagao com Cristo implica justificacéo, adocdo, re- generacdo e santificacdo. A justica, a santificacdo e a redencdo do crente encontram-se em Cristo (1Co 1.30). Os wesleyanos aceitam totalmente a verdade perene, anunciada pelos refor- Aperspectivawesleyana = 39 madores, de que todos os méritos que nos concedem a salva- cao jazem téo-somente na obra de Cristo. Podemos apropriar- nos dela apenas mediante a fé. Tudo é dom de Deus (Ef 2.8,9; cf. At 15.11; Rm 3.24; 5.15; 11.6; Tt 2.11; 3.7). A salvacao é pela graca. Contudo, ainda que a tradicao reformada quase sempre ressalte a justificagdo e a adocdo, muitas vezes negli- gencia a regeneracdo e a santificacao. A justiga plenamente imputada (salvacao objetiva) fica evidente, mas a justica comu- nicada (salvacao subjetiva) € negligenciada. Os wesleyanos sus- tentam que o conceito biblico de salvacéo encerra tanto uma quanto a outra, que ambas estado presentes no conceito paulino de estar “em Cristo” ~ a defini¢&o essencial de cristéo no NT. Por outro lado, Cristo também esta no cristéo (Gl 2.20). E “o mistério que esteve oculto durante épocas e geracdes, mas que agora foi manifestado a seus santos [...] a gloriosa riqueza deste mistério, que é Cristo em vocés” (Cl 1.26,27; v. tbh. Jo 14.20; 17.23; Ef 3.17; Ap 3.20), Plenitude e restauracdo fazem parte da uniao com Cristo. Nao se trata de uma uniao de iden- tidade, mas de um relacionamento de liberdade que se tor- nou possivel pelas qualidades de Jesus Cristo, por quem “vocés receberam a plenitude” (Cl 2.10). Paulo expressa essa liberdade quando diz: “Portanto, nao permitam que o pecado continue dominando os seus corpos mortais [...] Pois o pecado nao os dominara, porque vocés nao estado debaixo da Lei, mas debaixo da graga [...] Mas agora que vocés foram libertados do pecado e se tornaram escravos de Deus, o fruto que colhem leva 4 santidade, e o seu fim éa vida eterna” (Rm 6.12,14,22). O Reino de Deus esta no interior do cristéo (Lc 17.21), e a vida do Reino nos pertence (Sermao do Monte). A vida de Jesus revela-se no corpo mortal dos cris- taos (2Co 4.10), Os recursos para a vitoria néo repousam no crente, mas em Cristo. Os cristéos nao se valem da forca, mas da submissao. Deus, mediante a graca de Cristo e o poder do Espirito que habita em nés, derrama seu amor no cora¢ao dos seus filhos. A presenga de Cristo na vida cristé no Espirito e a liberta- cdo da natureza rebelde do velho Addo nao sao, porém, a li- bertac¢do final da presenca e da ameaga do pecado. A forcae a presenca do pecado nos ameagam e tentam por meio do cor- po e da mente decaidos, assim como em tudo o que nos ro- deia no mundo, que ainda necessita de redencao. Paulo esbo¢a 40 = 5 perspectivas sobre santificagao abertamente essa doutrina em Romanos 8, capitulo que é par- ticularmente fundamental para a compreens4o wesleyana da vida santa. Depois de declarar a libertacéo do dominio e da presenca interior do pecado na vida do crist&o cheio do Espi- rito (v, 1-17), ele confessa, entretanto, que ainda vive num mun- do corrompido, pecaminoso, mesmo sendo nés o povo de Deus e cidadéos da nova ordem mundial (v. 18-30). O corpo e a men- te estdo sujeitos a limitagdes (1Co 13.12; Mt 26.41). A redencado completa dessas areas aguarda a consumacao final de todas as coisas. Em virtude das aparentes contradicgées que essa verda- de apresenta, mesmo aos que ja foram redimidos, 0 apdstolo declara que somos sustentados pelo amor de Deus até que a nova ordem seja estabelecida universalmente (Rm 8,18-30). “Esperamos ansiosamente o Salvador [...] ele transformara os nossos corpos humilhados, tornando-os semelhantes ao seu corpo glorioso” (Fp 3.20,21). Deus nos salvard do poder e do dominio do pecado a fim de que o sirvamos de todo o cora- ¢ao. Ele pode libertar-nos da doenca e de outras realidades do tempo presente, em que servimos, tao logo nos confiemo a bondade e a sabedoria do senhorio de Deus sobre o tempo e tudo o que foi criado, Paulo também oferece a Tito uma pala- vra tranqiilizadora: “Aguardamos a bendita esperanca: a glo- riosa manifestacdo de nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, Ele se entregou por nds a fim de nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmente seu, dedicado a pratica de boas obras” (Tt 2.13,14). No rico contexto desses e de muitos outros modelos bibli- cos acerca do propdésito fundamental das verdades da salva- ¢40, os wesleyanos interpretam e entendem o contetido da vida que esté em Jesus Cristo. Juntamente com Wesley, afir- mam que qualquer doutrina sobre santificagéo que naa con- temple essas promessas e esse potencial nao corresponde a plenitude do evangelho. Sempre houve tensées no entendi- mento de como a santificacao deve iniciar e manter-se e de como pode manifestar-se em meio as vicissitudes da vida. As vezes surgem divergéncias entre os proprios wesleyanos, outras vezes entre os que entendem a santificacaéo de forma diferente deles. As objecdes dos que sustentam opinides di- ferentes seréo analisadas brevemente nas réplicas apresenta- das neste livro. Um levantamento sucinto de algumas tensées surgidas entre os proprios wesleyanos com relacado ao “Grand Aperspectivawesleyana = 4l Depositum”, cujas caracteristicas historico-classicas apresen- tei, 6 mais apropriado a este ensaio. DESENVOLVIMENTO SUBSEQUENTE DA DOUTRINA O primeiro e mais importante campo de provas da aplica- cao madura do entendimento wesleyano da perfeicao crista, ou santificacdo plena, para a vida da igreja foi o movimento wesleyano nos Estados Unidos. Mais de vinte anos antes da morte de Wesley, em 1791, os leigos de suas sociedades na Inglaterra haviam criado centros semelhantes de reavivamen- to na cidade de Nova York e na Filadélfia. Nas cartas a esses primeiros evangelistas, Wesley recomendava incentivar os novos crentes em Cristo a buscar a santificagao plena imedia- tamente apds a justificacaéo e 0 novo nascimento no Espirito. Francis Asbury, que veio a ser o primeiro lider da Igreja Meto- dista Episcopal, apés sua organizacéo em 1784, também de- fendia a pregacao inflamada da pratica como algo que todo o crente pode esperar receber imediatamente pela fé. Os folhe- tos e sermées de Wesley, principalmente o Plain Account of Christian Perfection [Consideracées simples sobre a perfeicado crista], passaram a ser os comentarios fundamentais que aju- davam o circuito de evangelistas metodistas itinerantes a per- correr cada recesso e vdo da nova nac4o americana, chamando as pessoas a Cristo e a santificagao.” No final do chamado renascimento pés-revolucionario, também denominado Segundo Grande Avivamento, o interes- se renovado pela experiéncia de perfeicao cristé surgiu tanto na ala metodista quanto na ala reformada desse movimento. A doutrina era vista como a resposta biblica a instabilidade e ao testemunho frivolo que caracterizavam muitos convertidos do reavivamento. Na tradicdo calvinista reavivalista, Charles G. Finney e seu colega do Oberlin College, Asa Mahan, comeca- ram a pregar a mensagem da perfeicdo cristaé e de uma vida cristé mais elevada. Eles aderiram ardorosamente a doutrina em resposta a necessidade que percebiam nos convertidos de um relacionamento mais puro e mais compromissado com Deus. Na estrutura da Nova Escola do calvinismo, a doutrina da santificagéo plena estava intimamente relacionada com o que se pregava no metodismo.” Essas variagdes e os contextos doutrinarios diferentes contribuiram para o posterior cresci- 4) = Sperspectvas sobreasantifiagio mento do movimento de santidade de Keswick e¢ da sempre vigorosa polémica, com altos e baixos, entre a tradicao wes- leyana holiness e os movimentos de orientagao mais calvinista. Ao mesmo tempo, os ministros Phoebe e Walter Palmer, da cipula leiga metodista, tornaram-se agentes catalisadores da renovacao da doutrina wesleyana sobre a perfeicdo crista den- tro da propria igreja, doutrina que muitos achavam estar sen- do negligenciada em meio ao crescimento exponencial que pusera rapidamente os metodistas no topo das denomina- ¢ées mundiais por volta de 1840. O movimento por uma vida melhor da Nova Escola do calvinismo americano e 0 movi- mento holiness do metodismo logo encontraram um campo comum e, ajudados pelo puritanismo, o pietismo e o milena- rismo, permearam a base do reavivamento americano do sécu- lo XIX. Os movimentos relacionavam-se entre si e alimentavam a preocupa¢do com a santidade crista em quase todo o pro- testantismo americano — wesleyano, reformado e anabatista. Nesse contexto dindmico, os ensinamentos classicos do wes- leyanismo sobre a perfeicao crista, esbocados anteriormente neste livro, foram proclamados, testados, expandidos e, como créem alguns, até alterados, pelo menos no tom e na énfase. Um breve resumo desses elementos e do conflito que por ve- zes Os rodeou no metodismo e no movimento holiness ameri- cano @ necessdrio para entender como o ensino wesleyano sobre santidade foi abragado nas novas igrejas holiness sur- gidas no final do século XIX e inicio do século XX nos Estados Unidos e na Inglaterra.” A pregacdo da experiéncia de santificagao recebeu cores fortes por ter sido uma doutrina desenvolvida nos Estados Unidos num contexto de reavivamento. A pregacao renovada ressaltava, como essenciais a vida cristaé, pontos decisivos imediatos e definidos na experiéncia individual. A pregacao holiness reunia os elementos do ensino de Wesley sobre a san- tificacdéo em torno da segunda crise de fé, subseqiiente a jus- tificagéo, chamada comumente de santificacdéo plena. Esse foco na mensagem de Wesley pelo prisma da exigéncia direta dos reavivalistas de decisdo imediata gerou critica e conflito quando o reavivalismo holiness desabrochou dentro e além do meto- dismo. Os oponentes argumentavam que o entendimento wesleyano da salvacéo, como sendo um continuum em que determinados momentos de decisées extremas e infusées da Aperspectivawesleyana = 43 graca justificadora e santificadora deveriam ocorrer no pro- cesso de uma vida inteira, estava sendo comprometido. Aque- les que propunham a nova énfase no momento critico da santificagéo plena — a purificacdo de todo o pecado pelo Es- pirito e a libertagéo da alma para o amor — temiam que o destaque exagerado no processo e a desvalorizacdo da expe- riéncia critica, pelos oponentes, tendesse a destruir a espe- ranga de o cristao ser plenamente santificado ainda nesta vida. Eles afirmavam que essas criticas os afastavam da teologia de Wesley exatamente no ponto que, desde 0 inicio, a tornou uma perspectiva singular sobre santificagdo. Na luta por represen- tar a perspectiva de Wesley, que persistiu dentro do metodis- mo na maior parte do século XIX, os wesleyanos reavivalistas prevaleceram de forma geral. De acordo com seu ensino, a Palavra de Deus convoca todos os cristéos a receber a santifi- cacgado plena como obra da grac¢a subseqtiente a regeneracao. Todavia, as tensdes dentro das estruturas prevalecentes da igreja do final do século XIX, principalmente as pertencentes ao metodismo, eram tais que, em geral, essas estruturas nao conseguiam conter a vitalidade (e as vezes a zelo excessivo) do avivamento holiness. A divisio e o surgimento de novas igrejas foram a conseqtiéncia mais comum.” Depois de muitos adeptos do movimento holiness meto- dista se separarem ou serem desligados por pressées do cle- ro dos principais segmentos da igreja, no norte e no sul, eles se uniram e juntaram os muitos convertidos que consegui- ram fora da corrente principal do metodismo num grupo de- nominado “igrejas holiness’. O novo grupo demonstrava posigées dispares numa variedade de assuntos, mas a prega- gao da centralidade da santificagaéo plena como segunda obra da graca e a possibilidade de viver diariamente em obediéncia a Deus e em amor ao préximo agrupou-os numa identidade comum. A doutrina wesleyana da santificagéo encontrou sua maior expressdo na tradigaéo metodista posterior 4 virada do século XIX, na Igreja do Nazareno, no Exército de Salvacao, na Igreja Holiness dos Peregrinos, na Igreja Metodista Wesleyana (as duas ultimas incorporadas a igreja Wesleyana), na Meto- dista Livre, na Igreja de Deus (Anderson, Indiana) e em mui- tos grupos religiosos relacionados.”” No decorrer do desenvolvimento da doutrina no metodis- mo do século XIX e em sua subsequtente transformacao em 44 = Sperspectivas sobre a santificagio norma das igrejas holiness, certos destaques ameacaram, al- gumas vezes, o equilibrio do ensino wesleyano classico. A perspectiva de Phoebe Palmer sobre a doutrina wesleyana da santificagéo plena veio a ser um dos primeiros pontos de ten- sao no desenvolvimento da doutrina nos Estados Unidos. Seus ensinamentos sobre a santidade crista tornaram-se elemento permanente na teologia do movimento holiness metodista em virtude de seu antigo predominio no movimento de reaviva- mento. As exortacées simples e biblicas de Phoebe a santida- de reuniram-se no que se chama comumente de “terminologia do altar” e “caminho mais curto”. Ela acreditava fortemente na autoridade absoluta da Biblia e, como é comum na tradi¢ao reavivalista, aplicava-a diretamente na pregacdo e na vida. Cristo, dizia, é o altar do cristao. Na interpretacéo de Phoebe de Exodo 29.37, qualquer um que tocasse o altar se tornaria santo. Logo, qualquer crente que com fé desejasse apresen- tar-se sem nenhuma reserva como “sacrificio vivo” (Rm 12.1) sobre 0 altar providenciado pela obra de Cristo seria inteira- mente santificado e purificado de todo o pecado. Palmer ensinava que as promessas claras das Escrituras sAo a voz de Deus, pois o Espirito as comunica a nés. A acdo, com base numa promessa divina na fé, constitui a seguranca de que essa promessa sera cumprida em nos. Dessa pers- pectiva, parecia haver uma fusdo entre o ato e a seguranca da fé num unico elemento. Os discipulos mais versados na teologia procuraram alertd-la quanto a essa tendéncia. Ela, porém, acreditava que o testemunho interior do Espirito, mui- to ressaltado por Wesley, acompanharia o testemunho da fi- delidade de Deus rapida, se nado imediatamente, aos que se entregassem de forma total a Cristo para a salvacao plena. A Biblia também ensinou-lhe que sem santidade ninguém vera a Deus e que a santificacdo € a vontade de Deus para nés. Além disso, “agora” sempre é 0 tempo de Deus para a aceita- gdo de sua oferta graciosa de salvagdo. Contudo, deixar de levar a efeito essas palavras de promessa transforma-se em incredulidade e esta, em pecado e desobediéncia. Palmer tam- bém insistia em que, quando as pessoas vivem a béncao, é seu dever proclama-la e procurar zelosamente levar outros 4 mesma experiéncia,’”* O tempo no nos permitird considerar todas as complexas questées aqui levantadas, mas é possivel perceber que algo mudou da perspectiva teologica. Ainda que cada pressuposi- Aperspectivawesleyana = 45 cao e cada afirmacao de Palmer se comparem com afirmacgées idénticas do proprio Wesley, ela, no minimo, mudou o foco para entender a tensao entre as polaridades wesleyanas de crise e crescimento no que elas se relacionam com alcangar a perfeicaéo em amor. Fica 6bvio em sua mensagem que o “mo- mento” do apelo reavivalista, a urgéncia da resposta esperada (a fim de que o ouvinte néo demonstre incredulidade e caia em condenacao por adiamento) e a purificacéo plena no mo- mento da consagracdo total distanciaram o ponto de equili- brio que Wesley mantinha. Para a sra. Palmer, a experiéncia da perfeicao cristé como inicio da vida de crescimento em santi- dade, e ndo a culminacgao da graca madura, tornou-se o ponto central da vida crista. Seu destaque mudou o continuum da salvacao em que Wesley tinha previsto a pratica. A “terminologia do altar” empregada como formula para ex- perimentar a santificagdo plena, como de fato ocorreu algu- mas vezes, era quase sempre usada abusivamente, por se supor que apresentava uma espécie de atuacéo automatica das Escri- turas. Quando apresentada corretamente segundo a compre- ensdo wesleyana mais ampla, como Phoebe e muitos seguidores fizeram, tornava-se o meio eficaz pelo qual muitas pessoas pu- deram concretizar a vida de amor. Essa terminologia é usada com destaque (na verdade, quase universalmente) no ensino e na pregacao atuais sobre santidade e vida elevada. A énfase que esse tipo de ensino dava ao momento da consagracao plena e a crise da completa adequacao moral do relacionamento focalizava a santificagéo apenas nesse unico momento de compromisso total e sincero, divorciando-se do processo de santificagéo gradual que comec¢a na regene- racao, bem como do crescimento continuo na gracga que acompanha o instante da morte para o eu e da perfeicéo em amor. Dessa forma, 0 momento da morte para o eu e do nas- cimento para o amor passa imediatamente a ser um fim em si mesmo — uma meta, e néo um elemento essencial para criar uma nova relacdo dinamica de liberdade e amor no co- racdo do crente, guiado pelo Espirito Santo de graca em gra- Ga na vontade de Deus.” Conquanto a teologia wesleyana holiness e seus defenso- res jamais tenham negligenciado totalmente o elemento bibli- co e wesleyano do crescimento na gra¢a antes e apds 0 evento da santificacdo plena, a interpretacéo de muitos que testemu- 46 = 5 perspectivas sobre a santificagao nharam ter recebido essa segunda béncdo concentra-se mais na importancia da experiéncia do momento critico do que na natureza do relacionamento em progresso. Santificacao total, para Wesley, era o momento da perfei¢ao em amor que o cren- te experimentava, mas apenas em sentido qualitativo. Do pon- to de vista quantitativo, a atragdo que o amor divino exerce é tao imensuravel que o estilo de vida do crente santificado sem- pre é o de um peregrino, nao o de um colonizador. Nao ha lugar de descanso na busca incessante do crescimento espi- ritual individual e do testemunho de amor — no relaciona- mento com Deus e com o préximo. Outro enfoque muito difundido, tanto na pregacdo quanto em alguns escritos teo- logicos, dava a entender que o pecado era como uma subs- tancia concreta que podia ser arrancada do cora¢do. O proprio Wesley contribuiu para essa idéia empregando expressdes como “circuncisdéo do coragéo” para designar essa experién- cia, e “raiz de amargura” na alma para referir-se aos desejos e sentimentos da antiga natureza. No conjunto da teologia, con- tudo, seu conceito de santificagéo plena como purificacao sis- tematica do individuo, da experiéncia como geradora de satide e plenitude, amenizou 0 conceito de santificagéo como erra- dicacgaéo do pecado, como se este fosse uma entidade unica que pudesse ser extirpada.® O ambiente de reavivamento americano, principalmente com o progresso do movimento, parecia acelerar a facilidade com que a erradicacao podia passar de simples analogia, util para definir o grau da prometida libertagao do pecado, e trans- formar-se no conceito do ensino holiness de que o pecado é uma substancia material que pode ser extirpada do coracéo pela graca concedida no momento da santificacéo. O empre- go da terminologia da erradicagao difundiu-se. Comecou a estreitar 0 foco da teologia popular do movimento e das igre- jas da holiness, moldados, como foram, pela pregacéo dos seus evangelistas que, por sua vez, apresentaram o ensino da santificagaéo quase exclusivamente em avivamentos especiais ou encontros de campo mantidos para a promocao da doutri- na. Juntamente com a forte énfase sobre a natureza critica do momento da santificagéo plena, a teoria da erradicacao esti- mulou ainda mais a criacdo de um conceito estatico-absolu- tista acerca da graca na tradicéo metodista. O destaque dado pelos wesleyanos holiness 4 erradicagdo da natureza pecami- Aperspectiva wesleyana = 47 nosa acentuou-se quando esse movimento enfrentou a opo- sicdo por parte do movimento da vida mais elevada de Keswick na questao sobre a plenitude do Espirito Santo na vida santi- ficada: a plenitude do Espirito libertava o crente apenas do dominio do pecado ou também o livrava da presenga do pe- cado no coracao?*! Nas ultimas décadas, muitas reflexdes biblicas, teologicas e histéricas sobre a doutrina wesleyana da santidade crista, a maior parte dos proprios intelectuais desse movimento, tém orientado a teologia e a prega¢ao da santificacéo mais em di- recdo a idéia do continuum processo-crise-processo pds-jus- tificagéo definido por Wesley. A pregacéo dos wesleyanos holiness tem reenfatizado também os temas da purificacdo e da cura de todo o pecado intencional e tem moderado o uso da terminologia erradicacionista a fim de chegar-se a uma com- preensdo descritiva, néo prescritiva. O entendimento contem- poraneo também comecou a expressar a santificagdo do crente em Cristo como um relacionamento perfeito e dinamico em vez de um estado fixo de experiéncia. A experiéncia é conside- rada de forma mais global. O contetido e o significado da se- gunda crise foram ampliados, enquanto sua importancia como elemento essencial para entrar na perfeic¢éo permanece.® A énfase definitiva da pregacdéo wesleyana holiness no sé- culo XIX e no inicio do XX, que se transformou no foco do debate doutrinario contemporaneo, recaia sobre o uso da ex- pressdo pentecostal “batismo com o Espirito” para designar a dinamica da santificagaéo plena. A obra do Espirito é essencial em qualquer explicagdo evangélica da doutrina da santifica- ¢do. E particularmente central na compreensdo wesleyana por causa da proeminéncia histérica da experiéncia crista. Embora Wesley sempre tenha reconhecido o Espirito Santo como o agente ativo da santificagdo do crente, os textos que constituem a base biblica dessa verdade foram em grande parte extraidos das promessas e profecias do AT, uma vez que se cumpriram nas palavras, a¢ées e sacrificio de Cristo no NT. Os evangelhos e as epistolas fornecem o principal con- texto neotestamentario do ensino cristéo sobre a santidade. O primeiro e mais destacado dos defensores classicos do wesleyanismo, John Fletcher, amigo e confidente de Wesley, interpretava e defendia a doutrina da perfeic&o crista de for- ma diferente. Elaborou seus argumentos para 0 ensino wes- 48 = 5 perspectivas sobre santificagao leyano principalmente com base nos textos de Lucas e de Jodo, segundo a visdo dispensacionalista trinitariana acerca da his- toria da salvacdo. Fletcher enxergava a nova era do Espirito Santo, inaugurada no dia de Pentecoste (seguindo a era do Pai e a do Filho), como o ambiente que agora prevalece no relacio- namento de graca de Deus com seu povo. A promessa do pro- feta Joel (de que esse tempo estava proximo) havia-se cumprido no Pentecoste e continuaria sendo cumprida depois dessa experiéncia, que dera origem ao novo povo de Deus. O Pen- tecoste representava a promessa da béngao completa do Espi- rito Santo para todo o crente. Ele ensinava que a partir do Pentecoste todo o crente receberia o Espirito Santo em parte quando nascesse de Deus, mas o potencial pleno da liberta- cao do pecado, inerente a promessa do Espirito, nao se reali- zaria até que, num momento subseqtiente de completa fé e obediéncia 4 vontade de Deus, o crente se enchesse de tal forma do Espirito que a santidade e o amor passariam a ser 0 padrao habitual de seu viver. Nesse momento ocorreria a san- tificacéo plena em que Deus, em virtude da santificagdo a nos concedida por Cristo na cruz, purificaria o crente de toda in- clinagao contraria ao amor divino e lhe encheria 0 coracdo de puro amor a Deus e ao proximo mediante 0 “batismo com o Espirito Santo”, como foi prometido por Jodo Batista.** Wesley e seu irmao Charles estavam plenamente cientes do novo curso que Fletcher seguia na explicacéo da doutrina metodista da perfeicao crista. John exortou-o certa ocasiao a acautelar-se no uso da expressdo “receber o Espirito” para designar a segunda obra da graca. Ele temia que 0 emprego desse tipo de linguagem pudesse dar a entender que o Espiri- to Santo ainda nao habitava os crentes que ja experimenta- ram 0 novo nascimento, mas ainda nao eram perfeitos em amor. Conseqiientemente, poderia parecer que ele negava a obra inicial do Espirito no batismo em Cristo. Por outro lado, ao que parece, os Wesleys, que editaram e publicaram a obra de Fletcher depois de sua morte prematura, consentiam em aplicar a hermenéutica pentecostal e dispensacionalista ao en- sino da perfeicao cristé. De forma explicita, em sermao e em carta, e de forma implicita, na edicdo de alguns artigos de Fletcher sobre 0 tema, Wesley reconheceu as conseqiiéncias da metodologia de Fletcher para criacdo da primeira teologia formal da doutrina de Wesley da perfeicdo crista“— ou pelo Aperspectivawesleyana = 49 menos néo demonstrou nenhuma preocupa¢do com essas conseqiléncias. Todavia, o emprego explicito de Flechter da terminologia pentecostal na definicéo da doutrina, esta apenas implicito em Wesley; nao era sua principal énfase, como ja menciona- mos anteriormente. As obras de Fletcher eram lidas por mui- tos no metodismo quando este se firmou como o movimento predominante do século XIX nos Estados Unidos. O movimento holiness metodista, reforcado pelo movimento do perfeccio- nismo de Charles Finney e Asa Mahan na Nova Escola do cal- vinismo, adotou os mesmos temas escatolégicos. Ambos os movimentos foram incentivados pelo milenarismo que per- meou e moldou de forma relevante a historia dos Estados Unidos. No final do século XIX, a crise da santificacdo plena, ou perfeig¢ao em amor, era comumente identificada com “o batismo com o Espirito Santo”. Era uma nota escatologica em expansdo no todo do reavivalismo norte-americano.® O uso posterior da expressdo “batismo com o Espirito” nos movimentos pentecostais e carismaticos e a publicacao de novos estudos importantes sobre o significado do aconteci- mento do Pentecoste e da teologia do Espirito Santo renova- ram as questées de Wesley e Fletcher sobre esse assunto.** A resposta atual do movimento wesleyano as perguntas relati- vas ao uso da expressdo “batismo com o Espirito” como o en- tendimento mais adequado do ato da santificacao plena varia. Por um lado, alguns defendem que o padrao predominante e o principio central para a interpretacdo da experiéncia de san- tificagdo encontra-se no Pentecoste. Continuam rejeitando a exegese de James Dunn da passagem de Atos dos Apostolos e de outros com compreensdo exegética semelhante. Conser- vam o forte apoio dos padrées exegéticos criados pelos de- fensores holiness do final do século XIX. Juntamente com Wesley, outros reconhecem que os textos de Atos sem dtvida falam do recebimento inicial do Espirito no novo nascimento e batismo. Levam muito a sério a valida- de das recentes quest6es exegéticas que estado sendo levanta- das. Argumentam, entretanto, que interpretagdes semelhantes as de Dunn das passagens sobre o Pentecoste restringem in- devidamente o pleno propoésito desses textos. Afirmam que a extensdo do significado inerente das passagens sobre “batis- mo no Espirito” tem alcance muito maior do que esses exege- 50 = 5 perspectivas sobrea santificagio tas propdem. Contudo, esse tipo de linguagem ainda é valido na exegese da tradi¢ao holiness. Eles acreditam que a exegese mais restrita dos textos sobre Pentecoste limita as expectati- vas das promessas do AT de que, quando o Espirito viesse em plenitude, faria com que todo o povo de Deus guardasse seus mandamentos e andasse diante dele em constante integrida- de moral. O uso desses textos e da terminologia referente a experiéncia de plenitude do Espirito, afirmam, é correto e exe- geticamente sustentavel para o plano de salvacao revelado na tipologia do AT e em seu cumprimento no NT. Ainda outros integrantes do movimento distanciaram-se do uso da hermenéutica “pentecostal” e do tema “batismo com o Espirito” e retornaram ao emprego das expressdes basicas de Wesley, como “morte para o pecado”, “circunciséo do coracao” e a restauracdo “da mente de Cristo Jesus”. Essa ultima corren- te tende a interpretagéo que retine a pneumatologia e alguns temas escatologico-dispensacionalistas da capacitacao do Es- pirito para o povo da era do advento do Pentecoste. Com base nas raizes historicas das diferen¢as de interpretacdo deste pon- to, € provavel que as duas maneiras de entender a santificacdo plena ainda permanecam vivas no wesleyanismo.*” Apesar da variedade de opinides e apresentacdes da dou- trina da santidade cristé no movimento wesleyano mais geral dentro das igrejas metodistas, holiness e pentecostais con- temporaneas, todas ainda encontram basicamente o entendi- mento da “salvacdo plena” nas perguntas e respostas sucintas que John Wesley esbogou em Plain Account [Consideracées sinceras]: P.: O que é perfeicdo crista? R.: Amar a Deus com o coracdo, entendimento, alma e for- ca... P.: Pode fluir algum erro de um coracdo puro? R.: Eu respondo: 1) muitos erros podem conviver no cora- cao puro; 2) alguns podem fluir dele acidentalmente; ou seja, o proprio amor pode inclinar-nos ao erro... P.: Como evitar que a perfeicdo se situe em nivel alto de- mais ou baixo demais? R.: Mantendo-a na Biblia, e situando-a na altura que a Biblia a situa. Nem mais nem menos [...] o amor, regendo o coragdo e a vida, percorrendo todos os sentimentos, Aperspectivawesleyana = 51 palavras e acées [...] Perfeicao [crista] [...] € pureza de intengdes, dedicar inteiramente a vida a Deus. E dar a Deus todo o coracaéo; é um tinico desejo e propésito a controlar todos os sentimentos. £ dedicar nao uma par- te, mas totalmente, a alma, 0 corpo e a esséncia a Deus.** BIBLIOGRAFIA Fiercuer, John. Checks to Antinomianism. Abr. ed. Kansas City: Beacon Hill, 1948. Geicer, Kenneth E., ed. The Word and The Doctrine: Studies in Contemporary Wesleyan-Arminian Theology. Kansas City; Beacon Hill, 1965. Linvsrrom, Harald. Wesley and Sanctification: A Study in the Doctrine of Salva- tion. Londres: Epworth, 1950. Reimpresso. Grand Rapids: Zondervan, Francis Asbury Press, 1984, Peck, Jesse. The Central Idea of Christianity. Boston: Degen, 1856. Peters, John Leland. 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Estou de acordo com sua afirmagao sobre a corrup¢ao total e a depravagdo completa da humanidade de- caida. Tenho a mesma opiniado com respeito ao fato de que Cristo opera tanto em nds quanto por nos e de que estar em Cristo produz justificagdo e regeneracdo. Sou a favor da in- sisténcia de Dieter no crescimento continuo na vida cristaé e aprecio particularmente a énfase na vida santa como propo- sito da salvacgao. Em relacdo a esse ultimo ponto, entretanto, gostaria de fa- zer uma correcao. Na pagina 39, Dieter diz: “Ainda que a tra- dicéo reformada quase sempre ressalte a justificacdo e a ado- cdo, muitas vezes negligencia a regeneracdo e a santificacao”. A tradicéo reformada inclui, obviamente, Jodo Calvino. Mas Calvino salienta a necessidade de regeneragao e santificacdo tanto quanto a de justificacéo. E fato que nas Institutas® ele trata com mais detalhes a santificacdo e a regeneracao (incluin- do a vida crista, a autonegacao, o carregar a cruz; V. livro 3, caps. 3—10) antes de dedicar-se a justificagdo (caps. 11—16). Dieter também diz que Wesley “relaciona o cumprimento das obrigacdes da lei moral ao processo e propésito da santificacado, em vez de relaciona-lo as concepcées mais objetivas da orto- doxia reformada, que considera 0 ato de justificacéo do cren- te o cumprimento e a satisfacdo da exigéncia moral da Lei” (p. 29). Mais uma vez, nesse caso, devo fazer objecdo. Certamen- Réplica reformada.a Dieter = 53 te Calvino ensinou que Cristo cumpriu a Lei por nés a fim de que nao necessitassemos cumpri-la para conquistar a salva- ¢ao. Mas ele insistiu também que os crentes devem guardar a lei de Deus como prova de gratiddo pela salvacao recebida. Alias, a essa funcao da lei ele chamou de “utilidade principal”. Calvino também concorda com Wesley em que 0 viver santo é o propésito da salvacao: “Uma vez que é caracteristica princi- pal da gloria [de Deus] nao termos comunhao nenhuma com a maldade e a impureza, as Escrituras ensinam que ela [a san- tidade] é a meta de nosso chamado, para a qual devemos sem- pre olhar se respondermos ao chamado de Deus”. Minha maior dificuldade refere-se 4 doutrina da “santificacdo plena’. Dieter apresenta essa doutrina em trés estagios. Primei- ro, © processo de santificac¢do inicia-se na regeneracéo (p. 19-20, 22). Segundo, algum tempo depois da regeneracao, a santifi- cacao plena pode acontecer “pela mesma fé [...] que inicialmente trouxe a justificacao" (p. 20). Terceiro, o crente deve continuar crescendo na gra¢a (p. 45). Em outras palavras, deve haver cres- cimento espiritual antes e depois da santificacaéo plena, sendo o padrao normal o “processo-crise-processo” (p. 47). Concluo que, para Dieter, “santificacdo plena” significa a ca- pacidade de viver sem pecado nesta vida. A prova que apdia esta concluséo € o modo como ele descreve esse estagio da vida crista: 1) Na santificacdo plena a “inclinacaéo para o peca- do” se perde (p. 24), e a batalha interior travada contra a “re- beldia interior inata” termina (p. 20); 2) santificacéo plena é definida como “renovacdo completa a imagem de Deus” (p. 53), “perfeicao crista” (p. 60), “perfeicéo em amor” (p. 33), “perfeita consagracao [...] a Deus” (p. 21), “perfeito amor a Deus e ao proximo” (p. 21); notar que o New Collegiate Dictionary de Webster define perfeito como “completamente sem falha nem defeito: impecavel”) e libertagdo de todo o pecado (p. 21). Deve- se observar que essa salvacdo caracteriza-se como “salvagaéo de todo o pecado intencional” (p. 18) e libertacdo da “compul- sao de cometer transgressées voluntarias” (p. 16). Na verdade, insinua-se que ha algumas limitagées a “per- feicdo". Wesley, afirma Dieter na pagina 16, “jamais admitiu a idéia de que os cristéos completamente santificados pudes- sem tornar-se pessoas sem pecado, no entanto, de nao pode- rem cair novamente em pecado por desobediéncia”. Todavia, a expressdo “novamente” implica a idéia de que, anteriormen- 54 = 5 perspectivas sobrea santificacao te a esses lapsos, elas néo caiam em pecado. “A libertacao to- tal dos efeitos do pecado, bem como de sua presen¢a, ainda deve aguardar [de acordo com Wesley] a gloria vindoura” (p. 16). Mas “efeitos do pecado” indica téo-somente que esses cren- tes ainda vivem “na loucura desse mundo” (p. 16, cf. p. 39- 40), @ a “presenca do pecado” remanescente é explicada como algo diferente da “presenca interior do pecado na vida do cris- tao cheio do Espirito” (p. 40). Que prova biblica Dieter apresenta para provar a possibili- dade de o cristéo viver nesta vida sem a inclinacdéo para 0 pecado? Ele cita Mateus 5.48 (p. 35): “Portanto, sejam perfei- tos como perfeito é o Pai celestial de vocés”. Jesus apresenta- nos 0 ideal de perfeicao. Mas suas palavras nao significam que podemos atingir esse ideal nesta vida. O pedido que ele nos ensinou a fazer diariamente —‘Perdoa as nossas dividas, assim como perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12) — exclui essa possibilidade. O mesmo pode-se dizer com refe- réncia ao pedido de Paulo — “que apresentemos todo homem perfeito em Cristo” (Cl 1.28, p. 37). Nessa passagem, perfeicao é um desejo, e nao algo realizdvel, ao menos até a volta de Cristo (cf. v. 22). Em nenhum lugar a Biblia ensina que a apre- sentacdo da igreja “sem mancha nem ruga ou coisa semelhan- te, mas santa e inculpavel” (Ef 5.27, p. 35) ou a conquista da “medida da plenitude de Cristo” (Ef 4.13, p. 37) pelos crentes ocorrerd antes da segunda vinda. A oracdo de Paulo pelos Tessalonicenses (1Ts 5.23, p. 35) menciona especificamente “a vinda do nosso Senhor Jesus Cristo” como 0 momento em que eles seriam totalmente irrepreensiveis. De acordo com Colossenses 3.10, a nova natureza de que nos devemos re- vestir esta “sendo renovada [...] 4 imagem do seu Criador’. Se esta sendo renovada, ainda nao esta acabada. N&o creio que a Biblia deixe margem para a possibilidade de o crente viver sem pecar, mesmo que sem “pecar delibera- damente” nesta vida. Por isso nao aceito o ensino wesleyano sobre a santificagdo plena (a doutrina exposta neste capitulo). Uma vez que ja apresentei a prova biblica contra essa doutri- na em outra parte deste livro, néo a repetirei aqui. Quanto a questao da possibilidade de viver sem pecado antes da glori- ficagdo final, o leitor deve consultar o capitulo que trata da perspectiva reformada acerca da santificacao (p. 84, 91, 93-5, 99-105). Sobre a libertacdo “de todo o pecado intencional” nesta Réplica reformada a Dieter = 55 vida, o leitor deve ler o capitulo em que respondo a McQuilkin (p. 206). Embora aprecie a insisténcia de Dieter no crescimento es- piritual continuo, devo rejeitar a possibilidade de o crente viver sem pecado nesta vida. Estamos em Cristo e precisamos nos encher cada vez mais do Espirito, porém ainda nao so- mos perfeitos, seja no amor, seja na consagracaéo. Somos ge- nuinamente novos, mas ainda nao completamente novos. Replica PENTECOSTAL a Dieter Stancey M. Horton Depois de uma reuniao da Evangelical Theological Society [Sociedade Teolégica Evangélica], agradeci a Gordon H. Clark por algumas questdes que aprecio em seus escritos. Quando ele descobriu que eu era pentecostal, disse imediatamente: “Isso é experiéncia, e a experiéncia so pode desvia-lo do caminho. Tudo o que almejo é a Palavral”. E provavel que ele teria res- pondido da mesma forma a John Wesley, em virtude da con- vicgdo deste (como afirma Melvin Dieter) “de que o verdadeiro cristianismo biblico encontra a mais alta expressdo e o teste decisivo de autenticidade na experiéncia pratica e ética do in- dividuo cristao e da igreja e, apenas de forma secundaria, nas definicgdes e proposicées doutrinarias” (p. 13). Os pentecostais, entretanto, consideram a Biblia fundamental. O primeiro pon- to da “Declaracéo de Verdades Fundamentais” das Assembléias de Deus é a “Inspiracdo das Escrituras”, que declara ser a Biblia “norma plena de autoridade e regra infalivel de fé e pratica’. A experiéncia deve ser testada pela Palavra, mas, se cremos verda- deiramente na Biblia, a experiéncia vira em seguida. Caso con- trario, a fé professada nado é real. A fase inicial do pentecostalismo, no inicio do século Xx, foi muito influenciada pela doutrina dos wesleyanos holiness no que diz respeito a “segunda béncdo” e surgiu do mesmo contexto do reavivamento americano. Alguns chegaram ao ex- tremo de dizer que essa “segunda obra definitiva” eliminou o pecado “pela raiz” a ponto de o crente nunca mais ser capaz Réplica pentecostala Dieter = 57 de pecar. O ensino de Durham da “obra completa no Calvario” manteve as Assembléias de Deus ao largo desse ensino. A mai- oria também reconheceu que na pratica nem a capacidade, nem a tendéncia para o pecado foram removidas, embora alegasse ter anteriormente passado por essa experiéncia. Os pentecostais continuaram bastante influenciados pela teologia wesleyana, principalmente no “entusiasmo por ver a verdade de Deus manifestada na experiéncia e no testemu- nho de cristdos fiéis”. Essa perspectiva fortaleceu-se também pela conviccdo “de que cada pessoa podia responder positiva ou negativamente a oferta divina de salvacdo” (p. 14). Concor- damos que, por ser criaturas com livre-arbitrio, temos capa- cidade “de reagir com obediéncia ou desobediéncia a graca de Deus” (p. 16). Também concordamos que podemos ser liber- tos “da compulsdo de cometer transgressées voluntarias vi- vendo em obediéncia constante 4 vontade de Deus” (p. 16). Valorizamos a énfase de Wesley no crescimento na graca, mas negamos, segundo a Biblia e a experiéncia, que haja uma ex- periéncia de “santificagéo plena” que seja “a morte total para 0 pecado e a renovacdo completa a imagem de Deus" (p. 20). Entendemos que o crente tem de continuar perseverando na fé e na obediéncia e ainda precisa esperar passar de “um nivel de gloria" a outro enquanto esta nesta vida. Em vez de uma unica experiéncia de dedicacdo, ou consagrac4o, sdo necessa- rias repetidas consagracdes — até mesmo diarias. No que diz respeito ao “continuum da lei e do amor" de Wesley, os pentecostais também discordam da ortodoxia re- formada. Para esta, o cumprimento ¢ a satisfacado da lei moral ocorrem no ato de justificagéo do crente. Em vez de seguir a letra da lei, os pentecostais dao a entender que o Espirito San- to nos ajuda a realizar as boas obras que Deus desejava quan- do nos deu a lei. A principal diferenca entre pentecostais e wesleyanos tal- vez seja a tendéncia destes (proposta por Fletcher, nao por Wesley) de identificar a santificagdo plena com o batismo com o Espirito Santo. Os pentecostais ensinam que o batismo com 0 Espirito no dia de Pentecoste foi uma experiéncia de revesti- mento de poder, néo um ato de santificacdo plena. £ interes- sante observar que alguns wesleyanos foram influenciados pela exegese de James D. G. Dunn das passagens de Atos. Chamei a atencdo para os pontos fracos da exegese de Dunn 58 = 5 perspectivas sobre santifcagéo em meu livro What the Bible Says About the Holy Spirit [O que a Biblia afirma sobre o Espirito Santo] (Springfield, Mo., Gospel, 1976). Recentemente, Howard Ervin, da Oral Roberts University, teceu uma critica mais ampla e detalhada de Dunn no livro Conversion-Initiation and the Baptism in the Holy Spirit [Con- versdo inicial e o batismo no Espirito Santo] (Peabody, Massa- chusetts, Hendrickson, 1984). Consideramos que o batismo com o Espirito Santo é uma experiéncia distinta, vivida no livro de Atos por aqueles que ja eram cristaos, e ainda passivel de ocor- rer aos crentes hoje em dia. Reconhecemos o Espirito Santo como nosso Ajudador, por cujo intermédio estamos aptos a viver uma vida vitoriosa. Também desejamos ser canal do amor de Deus e dedicar “a alma, 0 corpo e a esséncia a Deus”, como ensinou Wesley. E preciso salientar que os atuais lideres e estu- diosos das Assembléias de Deus séo capazes de debater de forma mais aberta e cordial com os pentecostais adeptos da corrente holiness. Réplica de KESWICK a Dieter J. Rosentson McQuinn Os cristdos de todas as correntes devem sentir-se gratos a Melvin Dieter por resumir a doutrina da santificacéo confor- me originariamente proposta por Wesley, dando-nos uma ex- posicdo biblica de temas centrais a essa corrente teoldgica e tracando a evolucdo historica posterior do ensino acerca da santidade, uma evolucao que condicionou fortemente as con- cep¢ées atuais do ensino wesleyano, tanto interna quanto ex- ternamente. Muitos hao de elogiar a forte énfase na santificacdo pratica, experiencial, que quase sempre tem sido esquecida nas exposigées teolégicas e muito mais na vida crista cotidia- na. Também damos o devido crédito a insisténcia na relacéo de amor com Deus, considerada o proposito maior da lei e da graca, da fé e da santidade, e de tudo, enfim, pertinente a salvacao. Fico perplexo, entretanto, com certas dubiedades proveni- entes, ao que parece, da falta de andlise biblica cuidadosa de alguns conceitos basicos: pecado, santidade, perfeicdo e santificagaéo. O pecado deve ser definido como transgressaéo deliberada da vontade revelada de Deus, ou como a auséncia do carater glorioso de Deus em pensamentos, palavras e atos? Essa definicado talvez seja o ponto crucial do debate sobre santificacdo, mas nem Wesley nem Dieter apresentam uma ana- lise biblica do termo. Wesley parece definir pecado como “trans- gress6es voluntarias” (p. 16). Qualquer outro insucesso ou omissao no atingir o nivel da semelhanga de Deus no carater 60 = 5 perspectivas sobre santificagéo moral é erro humano ou acidente (p. 14, 27, 50). Se a capacida- de de refrear o pecado significa apenas abster-se da rejeigdo deliberada da vontade revelada de Deus, certamente ela faz parte da fé salvifica e esta disponivel a todo verdadeiro filho de Deus. Mas, se 0 conceito de pecado inclui qualquer atitu- de ou disposicao que fique aquém de amar como Cristo amou, aquém de ser puro, alegre, corajoso e de ter dominio proprio como ele, quem pode alegar estar isento de pecado? Dessa forma, a definicéo de pecado é decisiva. Nao sé merece o reconhecimento de ponto essencial, que néo consegui en- contrar no artigo [de Dieter], como também é digna de extensa andlise teoldégica. Em segundo lugar, o que devemos entender por santida- de? Sera que a Biblia menciona uma santidade imputada, uma reputacdo que nao se baseia na condi¢ao do crente, mas na alianca de Cristo com o Pai? Dieter salienta o emprego biblico do vocdbulo santo para referir-se também a condi¢do que os crentes vivenciam. Mas, se as Escrituras utilizam esses ter- mos com pelo menos esses dois significados, nao seria ne- cessdrio [Dieter] demonstrar nas passagens principais qual o sentido pretendido pelo autor? Usar um texto que considera todos os israelitas (ou todos os cristaos ou a igreja local) se- parados legitimamente por Deus para sua propriedade exclu- siva, independentemente do comportamento deles, a fim de provar a doutrina da semelhan¢a com Deus por meio da ex- periéncia é violar principios hermenéuticos elementares. A terceira palavra crucial que exige definicdo biblica rigoro- sa é 0 dificil vocdbulo perfeito. Por ser empregado nas Escri- turas com uma variedade de significados, é particularmente importante, quando se propée a possibilidade — na verdade, a ordem — de “perfeicdo crista”, conferir se essa proposta é de fato biblica. Se por perfeicao cristé os wesleyanos querem dizer que é possivel ao crente, pelo poder do Espirito Santo (ou pela habitacdo de Cristo), obedecer firmemente a Deus nas escolhas conscientes da vida, ndo ha de que discordar, a ndo ser quanto ao problema pratico de que a maioria das pessoas entende por perfeicdo algo diferente e, dessa forma, pode confundir-se ou enganar-se. A idéia comum, tanto dentro como fora do circulo perfeccionista, € que perfeic¢do tem o sentido absoluto de infalivel semelhanca de Deus. Acredito que nem Wesley nem Dieter ensinam essa concepcao, mas, Réplica de Keswick a Dieter = 61 sem uma definic¢ado precisa de pecado e de perfeicdo, muitos continuarao ansiando pelo absoluto e poderado acabar decep- cionando-se com os outros e consigo mesmos. A ultima palavra-chave é um problema, nao por falha do autor, mas pela propria falta de clareza existente no metodismo e no movimento holiness em geral. Dieter analisa o problema de forma cautelosa e pratica. O que, entao, significa a experién- cia da santificagado plena? O autor afirma claramente que essa experiéncia, que permite ao crente amar a Deus com todo o ser e viver em obediéncia, ndo deve ser distinta “cronologica- mente da justificagéo e do novo nascimento” (p. 21). O pré- prio Wesley demonstra certa imprecisdo (v. p. 21-2, 34, 48-9), que pode ser explicada pela diferenca entre santificagdo ideal (tedrica, logica e teologica), que ocorre no momento da rege- neracgao, e a experiéncia real de todos os cristéos, que nado permanecem em “perfeito amor” e por isso necessitam de uma experiéncia critica posterior. Dieter revela que os avancos no ensino holiness norte-americano do século XIX nao sé expu- seram a necessidade teologica da segunda experiéncia, como também a identificaram cada vez mais com o “batismo com o Espirito”. O problema de crer na segunda experiéncia critica é mais bem verbalizado pelo proprio Dieter: “Os adeptos dessa concepcao reconhecem que nao existe no NT nenhuma exor- taco explicita semelhante a essa no que tange a buscar a santificagdo [na acepcao técnica do termo para os wesleyanos]” (p. 36). Pode-se acrescentar que a Biblia nado contém nenhuma exor- tacdo ou ensino referente a experiéncia critica posterior a re- generac4o e necessaria para a santificacdo. O ensinamento constante do NT a respeito da vida cristaé aquém do padrao biblico visa orientar o crente de volta ao ato inicial. Atos dos “Apostolos relata, sim, experiéncias com o Espirito Santo pos- teriores a regeneracdéo, mas em nenhum lugar esses aconteci- mentos sao explicados teologicamente nem associados a idéia da santificacdo pratica. A hist6ria nao interpretada biblicamen- te nado é matéria-prima com que se elabore alguma doutrina, muito menos uma doutrina téo importante. Seria mais util seguir John Wesley na concepcao original de que o encontro com Deus na segunda crise nado é teolégica nem idealmente necessaério, mas uma caréncia comum do crente. A confirma- cao do relacionamento contratual originario pode, sim, ser 62 = 5 perspectivas sobre santificacao uma experiéncia critica, necessdria para o crente vacilante ou rebelde. Dessa forma, se os termos imprecisos forem definidos de forma especifica, os ensinamentos classicos de Wesley e o pensamento de Keswick séo compativeis. Se pecado for qual- quer coisa aquém do carater glorioso de Deus, ninguém é perfeito. Contudo, todo crente capacitado pelo Espirito pode abster-se de violar deliberadamente a vontade revelada de Deus. Os crentes recebem essa capacitacéo no momento da conversdo, quando sdo santificados juridicamente, ou sepa- rados para a posse do Espirito de Deus. Se nao conservarem essa relagdo de obediéncia e amor, nao estaréo mais vivendo a santificacéo, no sentido de crescimento espiritual, e precisa- rao de um novo encontro com Deus, uma renovacao que pode ser definida como uma segunda experiéncia critica. Réplica AGOSTINIANO- DISPENSACIONALISTA a Dieter JouN F. Wawvoorp Melvin Dieter merece os mais elevados elogios pela apre- sentacdo completa, clara e precisa da teologia wesleyana. As opinides que ele manifesta serao repetidas por muitos outros que procuram, como John Wesley procurava, viver em con- formidade com a santidade de Deus. Wesley foi um homem de Deus e abriu um caminho que nfo influenciou somente milhares de vidas em sua geracéo, mas também o curso de igreja desde entéo. Hoje em dia, como no tempo de Wesley, ha grande necessidade de abreviar a discussdo teoldgica, ri- tual e formal que caracteriza a igreja, para obter uma com- preensao renovada da santidade de Deus e do propdsito divino de transformar pecadores em santos. Os cristéos sérios cer- tamente podem se beneficiar muito com os ensinamentos e o exemplo de Wesley, que apresenta com precisao a doutrina biblica acerca da santidade. Quem ha de questionar a énfase de Wesley nas Escrituras como sendo a tinica regra de fé e pratica; na necessidade de traduzir doutrina em vida; no desejo de Deus conceder santi- dade a vida de todo crente; e na maravilhosa graca de Deus como a cura para a depravacdo total? Muitos admiradores de Wesley estéo de acordo com essas grandes verdades. Se ha problemas na doutrina wesleyana, eles em geral advém da- queles que nado seguem corretamente as recomendagoes do criador dessa corrente. O fato de alguns da tradicdo wesleyana terem ido a extremos talvez justifique sugest6es para apri- 64 = 5 perspectivas sobrea santificagao morar algumas definicées de Wesley, 0 que poderia ter preve- nido essas interpretagd6es equivocadas. Da perspectiva de Wesley, a justificagdo e a santificacdo ocorrem ao mesmo tempo. Mas é preciso deixar claro que ha uma diferenca. A justificacgéo € um ato legal de Deus, nao pro- priamente uma experiéncia a ser vivida, mas uma questao de posicdo em Cristo. Deve-se salientar o ensinamento de Wesley de que a perfeicdo definitiva néo sera atingida enquanto o crente nao estiver na presenca de Deus no céu. Wesley esta certo quando pensa que, depois do ato inicial do novo nascimento e do recebimento da salvacéo em Cristo, normalmente ha um ato de vontade posterior em que o indivi- duo submete a vida 4 vontade de Deus. Em certo sentido, essa etapa é a concretizacao de Romanos 12.1,2, em que os crentes se oferecem como sacrificio vivo totalmente dedicado a Deus. Embora Wesley tenha deixado claro que esse ato inicial nao atinge a expectativa da santidade completa no tempo que se segue, alguns de seus admiradores inferiram que isso situa 0 crente no patamar da vida vitoriosa, um patamar que se evidencia transitério, nado permanente. Conquanto Wesley acreditasse que a natureza pecaminosa nao pode ser erradicada nesta vida, alguns de seus seguidores professavam que a experiéncia da dedicacao individual resultaria nessa transformacao da natu- reza humana. Também ha confuséo entre as doutrinas do batismo no Espirito, regeneragdo e enchimento do Espirito. A regenera- ¢ao e o batismo no Espirito ocorrem realmente no momento. em que a pessoa cré em Cristo, nasce de novo e é inserida em Cristo (batizada) (1Co 12.13). O enchimento do Espirito, en- tretanto, é uma experiéncia que pode se repetir. Embora ela tenha ocorrido ao mesmo tempo que o batismo no Espirito no dia de Pentecoste, posteriormente distinguiu-se dele e ocor- reu de novo. O batismo no Espirito ocorre de uma vez por todas na salvacéo; o enchimento do Espirito pode ocorrer muitas vezes e é um aspecto importante da vida espiritual. Esse esclarecimento pode evitar o mal uso que os pentecostais fazem dessa verdade wesleyana. Ainda que os crentes pos- sam ser purificados instantaneamente dos pecados cometi- dos, nao podem libertar-se da natureza pecaminosa, como o proprio Wesley deixou claro. Ele acreditava que a vida santa Réplica agostiniano-dispensacionalistaa Dieter = 65 se caracteriza pela dependéncia constante de Deus e do Espi- rito Santo e pela pratica do fruto do Espirito (Gl 5.22,23). Se os ensinos de Wesley tivessem sido seguidos de perto, com cau- tela, ter-se-ia evitado a maior parte dos fundamentos para as criticas a teologia wesleyana. ] A perspectiva WESLEYANA MELVIN E. DIETER 2 A perspectiva REFORMADA ANTHONY A. HOEKEMA A perspectiva PENTEGOSTAL STANLEY IM. HORTON 4 A perspectiva de Keswick J. ROBERTSON McQUILKIN 5 A perspectiva AGOSTINIANO-DISPENSACIONALISTA JOHN F. WALVOORD A perspectiva REFORMADA ANTHONY A. HOEKEMA “Sejam santos porque eu, 0 SENHoR, 0 Deus de vocés, sou santo” (Lv 19.2; citado em IPe 1.16). Uma das qualidades, ou atributos, mais notaveis de Deus é a santidade. Ele nao so- mente é santo, mas também deseja que nds, a quem ele criou a sua imagem, sejamos santos. Denominamos santificacdo a obra de Deus mediante a qual ele nos torna santos. DEFINICAO Podemos definir santificagéo como a a¢do graciosa do Es- pirito Santo — que implica nossa participacdo responsavel — , mediante a qual Deus liberta a nds, pecadores justificados, da contaminacéo do pecado, renova toda a nossa natureza conforme a sua imagem e nos permite viver de forma a agra- da-lo. Em primeiro lugar, observo que santificacdo diz respei- to a contaminacdo do pecado. Em geral, fazemos distin¢gdo entre a culpa e a contaminacdo associadas ao pecado. Por cul- pa queremos dizer o estado de merecimento da condenacaéo ou o estado de sujeicdo a pena por violacao da lei de Deus. Na justificacdo, que é o ato declaratério de Deus, a culpa pelo pecado é erradicada com base na obra expiatéria de Cristo. Por contaminagdo, entretanto, queremos dizer corrupgdo da nossa natureza, corrupcao que é conseqtiéncia do pecado e que, por sua vez, produz pecado. Em decorréncia da Queda, todos nascemos em estado de corrup¢do. Os pecados que co- metemos nao séo apenas produto da corrupcéo, mas tam- bém se somam a ela. Na santificagdo, a contaminagdo do pe- 70 = 5S perspectivas sobre a santificagao cado esta em processo de remocao (ainda que nao seja com- pletamente removida até a vida futura). Além disso, a santificagdo realiza uma renovacdo de nossa natureza, ou seja, faz-nos mudar de direcao, em vez de trans- formar nossa esséncia. Santificando-nos, Deus nao esta nos concedendo poderes e capacidades totalmente diferentes dos que ja tinhamos. Antes, ele nos permite usar de forma corre- ta, néo de forma pecaminosa, os dons que nos concedeu. A santificagaéo nos capacita a pensar, desejar e amar de forma que glorifique a Deus, isto é, a pensar no que Deus pensa de si mesmo e a fazer o que se harmoniza com sua vontade. Santificagaéo também significa a possibilidade de viver de modo agradavel a Deus. Geralmente se diz que pela santifica- cao Deus nos permite realizar “boas obras”. Essas boas obras nao devem ser consideradas meritérias e nao podem ser rea- lizadas de forma perfeita, ou seja, sem mancha nem defeito, Além disso, essas boas obras sdo necessarias. Em Efésios 2.10, boas obras s4o, de fato, definidas como produto da salvacao: “Porque somos criacgéo de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nos as praticarmos". Em outras palavras, ndo somos salvos pelas boas obras, mas para elas. Além disso, uma vez que a expres- sao boas obras pode ser interpretada de forma diluida (como dando a entender, digamos, que devemos realizar tais e tan- tas obras por dia), prefiro afirmar que a santificagao nos per- mite viver de forma agradavel a Deus. 0 CONCEITO BIBLICO DE SANTIDADE Visto que a palavra santificar significa “fazer (tornar) san- to” (derivado de duas palavras latinas, sanctus, “santo”, e fa- cere, “fazer”), temos de atentar para o que a Biblia ensina so- bre a santidade do ser humano. A principal palavra do AT para santo é gadosh (cujo verbo relacionado € qgadash). A idéia fundamental presente aqui é “separacdo das outras coisas”, ou seja, alguém ou algo posto num conjunto ou numa cate- goria separados de tudo que é comum ou profano. Nos livros mais antigos do AT, a santidade do povo de Deus em geral é definida em termos cerimoniais — eles falam de como os sa- cerdotes deviam separar-se para realizar seu servico especifi- co ou de como o povo de Israel deveria purificar-se mediante Aperspectiva reformada = 71 o cumprimento de certos rituais. Os livros mais recentes do AT, especialmente os Salmos e os Profetas, definem a santida- de do povo de Deus principalmente em termos éticos — o que implica fazer 0 que é justo, falar a verdade, agir correta- mente, amar a misericérdia e andar em humildade com Deus (SI 15.1,2; Mq 6.8). O sentido basico de gadosh, entretanto, é que o povo de Deus deve separar-se para servir a Deus e deve evitar tudo o que o desagrade. A principal palavra do NT para santidade é hagios e seus derivados. Embora seja usada em diversos sentidos, essa pa- lavra quase sempre designa a santificacaéo do crente como, por exemplo, em Efésios 5.25,26 (“Cristo amou a igreja e en- tregou-se por ela para santifica-la”). Nesse sentido, santidade tem dois significados no NT: (1) separagdo das praticas peca- minosas deste mundo e (2) consagracao ao servico de Deus. Ao contrario da opinido popular, santidade significa mais do que fazer coisas boas e deixar de fazer coisas erradas. Signifi- ca, antes, dedicar-se totalmente a Deus e manter-se afastado de tudo o que é pecaminoso.! A seguir, analisaremos o que a Biblia ensina sobre 0 modo como somos santificados. Observa-se, em primeiro lugar, que somos santificados em unido com Cristo. Paulo ensina que nos tornamos santos por meio da uniao com Cristo em sua morte e ressurreicao, Alguns oponentes de Paulo deturparam o ensino sobre a justificacaéo mediante a fé para fazé-lo significar: Va- mos continuar pecando para que a graca aumente (v. Rm 6.1). Paulo responde: “De maneira nenhuma! Nés, os que morre- mos para 0 pecado, como podemos continuar vivendo nele?” (v. 2). O apdstolo prossegue, explicando que morremos para © pecado na uniao com Cristo, que morreu por nds na cruz: “Portanto, fomos sepultados com ele na morte por meio do batismo [...] 0 nosso velho homem foi crucificado com ele" (v. 4,6). A santificacgdéo deve ser entendida como a morte para © pecado em Cristo e com Cristo, que também morreu para 0 pecado (v. 10). No mesmo capitulo, entretanto, Paulo também diz que so- mos um com Cristo na sua ressurreicao: Fomos sepultados com ele na morte [...] a fim de que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a gloria do Pai, também nés vivamos uma vida nova, Se dessa forma fomos uni- TL = S perspectivas sobre a santificagio dos a ele na semelhanga da sua morte, certamente o seremos tam- bém na semelhanca da sua ressurrei¢ao (Rm 6.4,5). Somos chamados agora para viver uma nova vida porque ressuscitamos com Cristo e compartilharmos com ele sua vida ressurreta, Colossenses 3.1 refere-se ao mesmo resultado: “Portanto, j4 que vocés ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que sao do alto, onde Cristo esta assentado a direita de Deus’ (v. tb. Ef 2.4-6). Passagens dessa natureza fazem- nos lembrar de que nao apenas devemos dizer que Cristo morreu e ressuscitou por nds, mas também devemos profes- sar que morremos e ressuscitamos com ele — morremos com ele para o pecado e ressuscitamos com ele para a nova vida. Estamos sendo santificados mediante o progresso e o ha- bito de uma unido mais completa e mais rica com Cristo. Pau- lo afirma que o plano de Deus para nés é que “antes, seguin- do a verdade em amor, crescamos em tudo naquele que é a cabeca, Cristo” (Ef 4.15). Ele prossegue, esclarecendo que a santificagdo implica nédo meramente individuos isolados, mas a comunidade do povo de Deus como um todo: “Dele [Cristo] todo o corpo [...] cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua funcdo” (v. 16). Con- forme crescemos em proximidade com Cristo, crescemos em proximidade com os que estado a nossa volta. Somos santifica- dos por meio da comunhdo com os que estao em Cristo. Nossa santificagéo na unido com Cristo é resumida com maestria em 1Corintios 1.30 ("E, porém, por iniciativa dele que vocés estado em Cristo Jesus, 0 qual se tornou sabedoria de Deus para nds, isto é, justiga, santidade e redengao”). A pala- vra “santidade” é hagiasmos, que em outras versées foi tra- duzida por “santificagdo” (ARA e ARC). Paulo nos pega de sur- presa aqui. Cristo, diz ele, nado sé nos traz santificacdo, mas ele é a nossa santificacgéo. Se somos um com Cristo, estamos sendo santificados. E a Unica forma de ser santificados é ser um com Cristo. Calvino expressou bem isso: “Enquanto Cris- to permanecer fora de nds, e nos estivermos separados dele, tudo o que ele sofreu e fez pela salvacdo da raga humana per- mancce ineficaz e sem valor para nds”. Também somos santificados por meio da verdade. Na “Ora- cao Sacerdotal’, Jesus intercede pelos discipulos: “Santifica- os na [em outras versées: pela] verdade; a tua palavra é a verda- Aperspectiva reformada = 73 de” (Jo 17,17). Cristo, que veio para dar testemunho da verda- de salvadora de Deus, ora para que o Pai guarde seus discipu- los na esfera da verdade redentora. Uma vez que Cristo nao ficaria mais tempo no mundo, essa verdade poderia ser en- contrada na Palavra de Deus. Portanto, ele acrescenta: “a tua palavra é a verdade”. Devemos crescer em santificagdo por meio da Biblia, que é a Palavra de Deus. Em 2Timéteo 3.16,17, a Biblia 6 apresentada explicitamente como um dos principais meios pelos quais Deus santifica seu povo ("Toda a Escritura é inspirada por Deus e util para o ensino, para a repreensdo, para a correcao e para a instrucao na justi¢a, para que o ho- mem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra”). Mais adiante neste capitulo, tratarei separadamen- te do papel da lei de Deus na santificacdo. A Biblia também ensina que somos santificados pela fé. Uma das verdades fundamentais proclamadas pela Reforma Pro- testante 6 que somos justificados pela fé. £ igualmente verda- de que somos santificados pela fé. Paulo, repetindo as pala- vras que Jesus Ihe disse no caminho de Damasco, afirma que Cristo o enviou aos gentios para “abrir-lhes os olhos e con- verté-los das trevas para a luz [...] a fim de que recebam [...] heranca entre os que sao santificados pela fé em mim” (At 26.18). De acordo com Herman Bavinck, “Fé é o extraordinario meio de santificacdo”.3 De que modo a fé é meio de santificagéo? Em primeiro lu- gar, pela fé mantemos nossa uniao com Cristo, que é o cora- cdo da santificacdo. Na regeneracao, que é obra realizada com- pletamente por Deus, somos unidos a Cristo e capacitados para crer nele, mas continuamos vivendo nessa uniéo com ele mediante o exercicio da fé. Aprendemos, por exemplo, em Efésios 3.17 que Cristo habita em nosso coracéo mediante a fé. Paulo expressa essa verdade de forma muito vivida em Galatas 2.20 (“Fui crucificado com Cristo. Assim, ja ndo sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”). Em segundo lugar, pela fé aceitamos o fato de que, em Cris- to, o pecado nao mais predomina sobre nds. Os crentes de- vem nao s6 reconhecer pelo intelecto, mas aceitar com plena confianga a verdade de que “o nosso velho homem foi crucifi- cado com ele [Cristo], para que o corpo do pecado seja des- truido, e nao mais sejamos escravos do pecado” (Rm 6.6) e 74 = Sperspectivas sobrea santificagao que o pecado nao mais nos domina porque nao estamos de- baixo da Lei, mas debaixo da graga (v. 14). Em terceiro lugar, pela fé recebemos o poder do Espirito Santo, que nos permite ter dominio sobre o pecado e viver para Deus. Pela fé devemos nos apropriar da animadora ver- dade de que, pelo Espirito, somos capazes de fazer morrer os maus atos da carne (Rm 8.13) e de que, se vivermos por ele, receberemos forca para fazer cessar os desejos da natureza pecaminosa e para produzir o fruto do Espirito (Gl 5.16,22,23). Fé, alias, @ 0 escudo com o qual podemos “apagar todas as setas inflamadas do Maligno” (Ef 6.16). Por fim, a fé nao é simplesmente um oOrgao de recepcao, mas também um poder que atua. A verdadeira fé, por sua propria natureza, produz frutos espirituais. “Porque em Cris- to Jesus nem circuncisao nem incircuncisao tém efeito algum, mas sim a fé que atua [literalmente, “energiza”, do gr. energed] pelo amor”, afirma Paulo (GI 5.6). A fé produz obras (1Ts 1.3); 0 propdsito do mandamento de Deus para nds é 0 amor, “que procede de um coracdo puro, de uma boa consciéncia e de uma fé sincera” (1Tm 1.5). Nas palavras muito citadas, Tiago declara: “Assim como o corpo sem espirito esta morto, tam- bém a fé sem obras esta morta” (Tg 2.26). O Catecismo de Hei- delberg, um dos mais conhecidos credos reformados, assim expressa essa verdade: “E impossivel aos que foram enxerta- dos em Cristo pela verdadeira fé nado produzir frutos de gra- tiddo” (Resposta 64). Devemos, portanto, falar nao apenas de justificacdo pela fé como ensino primordial da Reforma, mas também de santifi- cacao pela fé. O apdéstolo Jodo resume a importancia da fé: “E esta é a vitoria que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5.4). 0 PADRAO DA SANTIFICACAO O padrao da santificacaéo ¢ a semelhanca com Deus. Uma vez que Cristo é a perfeita imagem de Deus (2Co 4.4; Cl 1.15; Jo 14.8,9; Hb 1.3), podemos também afirmar que o padrao da santificagéo € a semelhanca com Cristo. Deus nos criou originariamente a sua imagem e semelhan- ¢a (Gn 1.26,27). Pela queda no pecado, entretanto, a imagem de Deus no homem corrompeu-se. No processo de redencao, especialmente na regeneracdo e santificacdo, essa imagem se renova.’ Aperspectivareformada » 75 Continuando a refletir sobre santificagaéo, agora nos con- centramos na terceira fase da historia da imagem de Deus, a saber, a sua renovacao. Santificacdo significa que estamos sen- do renovados segundo a imagem de Deus. Em outras pala- vras, estamos ficando mais parecidos com Deus, ou com Cristo, que é a perfeita imagem de Deus. Essa renovacao, entretanto, pode ser vista por dois 4ngulos: a obra de Deus em nés e 0 processo no qual estamos envolvidos ativamente. Primeiramente, as Escrituras ensinam que o proprio Deus, pela santificagdo, nos renova a sua semelhanga, tornando-nos mais parecidos com Cristo. Em Romanos 8.29, aprendemos que a conformidade com a imagem de Cristo é 0 objetivo para o qual Deus nos escolheu: “Pois aqueles que de antem4o co- nheceu, também os predestinou para serem conformes a ima- gem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogénito entre muitos irmdos”. Deus de antemao conheceu (no sentido de que nos amou de antemao) o povo escolhido antes que este viesse a existir. Aos escolhidos de antemao por Deus, ele or- denou previamente, ou predestinou, que fossem feitos como seu Filho. Dado que o Filho reflete perfeitamente o Pai, “con- formes 4 imagem de seu Filho” equivale a “conformes a sua propria imagem”. O proposito de Deus na eleicao, portanto, é fazer de nds um grupo incontavel de irmaos de Cristo com- pletamente semelhantes ao Filho e, por conseguinte, in- teiramente semelhantes ao Pai. Talvez a descri¢gdo mais clara desse aspecto da santificacdo seja a que se encontra em 2Corintios 3.18 (“E todos nés, que com a face descoberta contemplamos a gléria do Senhor, se- gundo a sua imagem estamos sendo transformados com glo- ria cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é 0 Espirito”). Nos, 0 povo de Deus hoje, diz Paulo, refletimos constantemen- te a gloria do Senhor, ou a gloria de Cristo, com a face desco- berta. Uma vez que cada um de nos é “uma carta de Cristo [.. escrita nao com tinta, mas com 0 Espirito do Deus vivo” (v. 3), as pessoas devem perceber um pouco da gloria de Cristo quan- do olham para nos. Ao refletir essa gloria, entretanto, também somos moldados segundo essa mesma imagem — isto é, a se- melhanca de Cristo — com gléria cada vez maior. Refletindo sempre a gloria de Cristo, somos transformados constantemen- te a sua imagem. Essa transformacao, além disso, é produzida em nos pelo Senhor, que também é o Espirito. 16 » 5 perspectivas sobre a santificagao Em segundo lugar, nés também temos alguma responsabi- lidade nessa questao, a saber, procurar ser mais semelhantes a Cristo, seguindo-lhe o exemplo. A renovacao a imagem de Deus, em outras palavras, nado é sé uma indicacdo; é uma ordem. O proprio Senhor Jesus nos ensinou que devemos seguir seu exemplo. Depois de lavar os pés dos discipulos — tarefa dos criados, que nenhum dos discipulos se oferecera para realizar —, Jesus disse-lhes: “Pois bem, se eu, sendo Senhor e Mestre de vocés, lavei-lhes os pés, vocés também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocés facam como Ihes fiz” Jo 13.14,15). Quando Jesus disse isso, nao estava instituindo um ritual eclesidstico de lava-pés, mas orientando os discipulos e, por conseguinte, todos os crentes, a seguir seu exemplo de servico humilde (Lc 22.25-27). Paulo da grande destaque a obra de Cristo como nosso sal- vador do pecado, mas ao mesmo tempo ensina que devemos seguir o exemplo de Cristo. Em Efésios 5.1, por exemplo, es- creve: “Portanto, sejam imitadores de Deus, como filhos ama- dos”. Ainda que Deus esteja de fato moldando-nos cada vez mais a sua imagem, nds, 0 seu povo, temos também de conti- nuar procurando imita-lo. Sem duvida, em muitos aspectos nao podemos ser iguais a Deus, Por exemplo, na onisciéncia, na onipresenca e na onipoténcia. Contudo, existem outros aspectos em que podemos e devemos ser como Deus. Um deles é apresentado no versiculo imediatamente anterior: “Se- jam bondosos e compassivos uns para com Os outros, perdo- ando-se mutuamente, assim como Deus os perdoou em Cris- to” (4.32), Devemos seguir o exemplo de Cristo e perdoar os outros. Outra forma de imitar a Deus é viver “em amor, como também Cristo nos amou” (5.2), Nao devemos simplesmente amar os outros, devemos ama-los como Cristo nos amou. Em 1Corintios 11.1, Paulo escreve: “Tornem-se meus imi- tadores, como eu o sou de Cristo”. O desejo de Paulo de apre- sentar-se como exemplo pode parecer surpreendente. Mas Paulo, na verdade, estava procurando moldar sua vida pela de Cristo, que é nosso exemplo maior. Outro meio que Paulo ensina para imitar o exemplo de Cris- to esta na conhecida passagem sobre a “mente de Cristo” (Fp 2.5-11). Paulo insta seus leitores: “Seja a atitude de vocés a mesma de Cristo Jesus” (v. 5), Prossegue, definindo a “mente de Cristo” como a atitude de servico humilde exemplificada por Jesus quando esteve no mundo. Aperspectiva reformada = 77 Pedro ensina de maneira semelhante: “Para isso vocés fo- ram chamados, pois também Cristo sofreu no lugar de vocés, deixando-lhes exemplo, para que sigam os seus passos”(1Pe 2.21). Fica claro, portanto, que seguir o exemplo de Cristo nao é secundario, mas um aspecto essencial da vida crista.5 Tam- bém esta evidente que a semelhanca com Deus e com Cristo é © padrao da santificacao. DEUS E SEU POVO NA SANTIFICACAO A santificacgéo @ obra de quem? Quando observamos o pa- drao da santificagéo, percebemos que é obra de Deus e res- ponsabilidade de seu povo. As Escrituras ensinam com clareza que Deus é o autor da santificacado. Essa obra, entretanto, é atribuida as trés pessoas da Trindade. Jesus ora ao Pai: “Santifica-os na verdade” (Jo 17.17), e com isso atribui a obra de santificagéo ao Pai. O autor de He- breus faz uma observacdo semelhante: “Nossos pais nos disci- plinavam por curto perfodo, segundo lhes parecia melhor; mas Deus nos disciplina para o nosso bem, para que participemos da sua santidade” (12.10). “Disciplina” (gr. pafdeud, lit. “ensinar a crianca”) da a entender sofrimento, adversidade, perseguicdo etc. Uma vez que 0 propdsito da disciplina é participarmos da santidade de Deus, concluimos que o processo menciona- do nessa passagem é o que chamamos de santificacdo e que Deus pode usar o sofrimento e a dor, por exemplo, como meios de santificacdo. Deus é identificado no versiculo anterior como o “Pai dos espiritos” e, no versiculo 10, como aquele que dis- ciplina. A santificacéo, entretanto, também é atribuida ao Filho, como ensina Efésios 5.25-27. Paulo, nesse trecho, ensina aos leitores que o marido deve amar a esposa assim como Cristo amou a igreja e entregou-se por ela para santi- fica-la, tendo-a purificado pelo lavar da Agua mediante a palavra, e para apresenta-la a si mesmo como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e inculpavel. Cristo, a segunda pessoa da Trindade, é identificado nessa passagem como o agente da santificacdo, que purifica a igreja “pelo lavar da 4gua mediante a palavra”. A maioria dos co- : Ba 5 perspectivas sobre. santificacéo mentaristas entende que a primeira parte da frase se refere ao sacramento do batismo. Desse modo da a entender que os sacramentos (batismo e ceia do Senhor) também so meios de santificagdo. A expressdo “mediante a palavra” deve relacio- nar-se com a expressao verbal “tendo-a purificado”. Cristo purifica sua igreja do pecado por meio da Palavra de Deus, as Escrituras. E animador saber que, de acordo com esse texto, 0 proposito final da santificagéo é a santidade perfeita da igre- ja, “sem mancha nem ruga ou coisa semelhante”. Embora a palavra santificacdo nado seja usada em Tito 2.14, o texto também apresenta Cristo como o autor da santifica- ¢do, pois “ele se entregou por nés a fim de nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmen- te seu, dedicado a pratica de boas obras”. Em 1Corintios 1.30, como se mencionou anteriormente, Cristo é apresentado como aquele que se tornou nossa santificacao. A santificagéo também é comumente atribuida ao Espirito Santo. Pedro diz que o povo de Deus foi “escolhido de acordo com o pré-conhecimento de Deus Pai, pela obra santificadora do Espirito, para a obediéncia a Jesus Cristo” (1Pe 1.2). Paulo afirma em Romanos 15.16 que foi enviado para proclamar o evangelho “para que os gentios se tornem uma oferta aceita- vel a Deus, santificados pelo Espirito Santo”. Também agrade- ce ao Deus que escolheu os tessalonicenses “para serem sal- vos mediante a obra santificadora do Espirito e a fé na verdade” (2Ts 2.13). E em Tito 3.5 lemos que Deus nos salvou “pelo lavar regenerador e renovador do Espirito Santo”. A obra da Trindade, entretanto, nado pode ser dividida. Por isso, ndo admira que também encontremos a santificacdo atri- buida ao Deus trino e uno, sem nenhuma designacdo de pes- soas (e.g. 1Ts 5.23: “que o proprio Deus da paz os santifique inteiramente”). O mais importante para nés é entender que a santificagéo nado é obra que fagamos por nods mesmos, por esforco e for¢ga pré- prios. Santificagéo nao é atividade humana, mas dom divino. A Biblia, porém, também define a santificagéo como o pro- cesso que envolve nossa participa¢éo responsavel. Aos mem- bros da igreja de Corinto, denominados na primeira epistola “santificados em Cristo Jesus” (1Co 1.2), Paulo diz: “Amados, visto que temos essas promessas, purifiquemo-nos de tudo o que contamina o corpo e o espirito, aperfeigoando a santida- Aperspectiva reformada = 79 de no temor de Deus” (2Co 7.1). As promessas séo as mencio- nadas nos versiculos anteriores, entre as quais esta princi- palmente a promessa da grande alianga: “Serei o seu Deus, e eles serdéo 0 meu povo" (6.16). Uma vez que somos o povo da alianca de Deus, conforme Paulo diz, temos séria responsabi- lidade. Devemos lutar contra o pecado, tanto do corpo quanto da mente. A palavra grega epitelountes, traduzida por “aper- feicoando”, contém a raiz da palavra que designa “fim” (telos) e significa “levar progressivamente a seu objetivo”. O que nor- malmente achamos que é obra de Deus é aqui designado com clareza como tarefa do crente, ou seja, levar a santidade até seu alvo. Portanto, irmaos, rogo-lhes pelas misericérdias de Deus que se oferecam em sacrificio vivo, santo e agradavel a Deus; este 0 culto racional de vocés. Nao se amoldem ao padrao deste mundo, mas transformem-se pela renova¢ao da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradavel e perfeita vontade de Deus (Rm 12.1,2). Nessa passagem, Paulo apela aos leitores para que mostrem gratidao pela misericordia de Deus oferecendo-se a ele como sacrificio vivo, ao contrario dos sacrificios mortos oferecidos no AT. Considerem seu corpo, diz Paulo, como pertencente total e irrevogavelmente a Deus, da mesma forma que os bois e bodes oferecidos pelos sacerdotes no AT. Parem de conformar- se externamente ao padrao dessa era ma, antes continuem transformando-se interiormente pela renovacdo do proceder nesta vida. Embora seja Deus quem efetua a transformacdo in- terior (cf. 2Co 3.18), devemos render o coragao, a mente e a vontade ao Espirito de Deus, que nos esta refazendo. O autor de Hebreus expressa isso assim: “Esforcem-se para viver em paz com todos e para serem santos [ou em santida- de, gr. hagiasmos, sem santidade ninguém vera o Senhor" (Hb 12.14). O versiculo considera a santificacao algo que devemos buscar continuamente. Logo, de acordo com a Biblia, nado se trata de um processo em que permanecemos passivos, mas de um processo em que nao podemos deixar de ser ativos. Esses dois aspectos da santificagéo séo mencionados jun- tos em: “Assim, meus amados, como sempre vocés obedece- ram [...] ponham em acao a salvacgdo de vocés com temor e tremor, pois é Deus quem efetua em vocés tanto o querer quan- 80 » Sperspectivas sobrea santificagao to o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (Fp 2.12,13). Como Paulo esta referindo-se aos “santos em Cristo Jesus” (1.1), a ordem “ponham em acdo a salvacdo de vocés” nao deve ser entendida como apelo evangelistico aos que nao sao sal- vos, mas como exorta¢ao a crentes. Paulo esta instando os leitores a que “ponham em acdo” o que Deus, em sua graca, “efetuou”. A palavra katergazesthe, traduzida por “ponham em acdo” é muito encontrada nos papiros (pequenos manus- critos gregos datados entre 200 a.C. a 200 d.C., que exemplifi- cam o emprego de palavras do NT) para descrever o cultivo da terra pelos agricultores.* Podemos, portanto, parafrasear as palavras de Paulo: Continuem a cultivar a salvagdo que Deus lhes concedeu. Os crentes devem procurar continuamente aplicar a salvacéo que receberam a cada area da vida e eviden- cia-la em todas as atividades. O versiculo 12, em outras pala- vras, deve ser entendido como a definicao da responsabilida- de do crente de prosseguir na santificacao. O fundamento da exortacdéo, conforme se vé no versiculo 13, nao é que o exercicio da salvagdo depende completamente de nés. Surpreendentemente, é 0 contrario, afirma Paulo, “pois é Deus quem efetua em vocés tanto o querer quanto o reali- zar”. Deus realiza em nds 0 processo inteiro de santificagdo — tanto a vontade de que ela ocorra quanto a sua realizacao. Quanto mais intensamente trabalhamos pela santificacado, mais certeza temos de que Deus esta trabalhando em nos. Como, entao, definir a relagdo entre a obra de Deus e a nossa tarefa? Deveriamos dizer, como o fazem alguns,’ que a santificagdéo é uma obra de Deus em que 0s crentes coope- ram? Todavia, essa forma de apresentar a doutrina implica erroneamente que cada um, Deus e nds, realiza uma parte da obra da santificagéo. De acordo com John Murray, A obra de Deus em nés nao se interrompe porque também atu- amos, nem nossa tarefa se interrompe porque Deus atua. Tampou- co se trata de uma relacdo estritamente de cooperacao, como se Deus fizesse a sua parte e nds, a nossa |...] Deus opera em nos e nos também operamos. Mas a relacdo é: porque Deus trabalha, nos tra- balhamos.® Resumindo, podemos dizer que santificacdéo é uma obra sobrenatural de Deus na qual o crente é ativo. Quanto mais ativos formos na santificagdéo, mais certos podemos estar de Aperspectivareformada = 81 que a forca poderosa que nos capacita a ser ativos é o poder de Deus. SANTIFICACAO PROGRESSIVA E DEFINITIVA Os tedlogos reformados em geral afirmam que a santifica- cdo continua por toda a vida do crente, diferentemente da justificagéo, que é um ato definitivo de Deus e ocorre uma unica vez. Ainda que o NT em geral defina a santificacao como um processo ao longo da vida, as Escrituras também a defi- nem como um ato divino definitivo, isto é, que ocorre num unico momento, néo num periodo de tempo.’® John Murray, na verdade, assinala: “Um fato que quase sempre passa des- percebido é que no NT os termos mais caracteristicos relati- vos a santificagdéo sdo usados nao com referéncia a um pro- cesso, mas a um ato definitivo".!! Entre as passagens que falam da santificagéo no sentido definitivo esta a de 1Corintios 1.2, Nesse texto, Paulo refere-se aos crentes de Corinto como “aos santificados em Cristo Je- sus’; 0 verbo grego esta no tempo perfeito, que designa uma acao completada e com efeito continuo. Os tedlogos protestan- tes em geral entendem a justificacao como 0 ato declarativo de Deus mediante o qual ele anuncia que o pecador que cré é jus- to em Cristo — um ato, portanto, nem progressivo, nem conti- nuo, mas realizado de uma vez por todas. Em 1Corintios 6.11, entretanto, santificacao e justificagao se justapdem como ato definitivo de Deus: “Assim foram alguns de vocés. Mas vocés foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espirito de nosso Deus”. No texto grego, esses trés verbos estéo no tempo aoristo, que geralmen- te designa acdes instantaneas (as vezes denominadas acées stbitas). Assim como esses crentes foram justificados de uma vez por todas em determinado momento, da mesma forma, Paulo afirma, também existe um sentido em que foram santifi- cados de uma vez por todas. Além disso, Atos 20.32 e 26.18 referem-se aos crentes como “os que sao santificados”. Em ambos os casos, 0 verbo esta no tempo perfeito. O aspecto definitivo da santificacdo é expresso mais clara e detalhadamente em Romanos 6. Quando no versiculo 2 Paulo diz: “NOs, os que morremos para o pecado”, ele expressa em linguagem clara a verdade de que quem esta em Cristo fez 82 = 5 perspectivas sobrea santificagao um “rompimento definitivo e irreversivel com 0 dominio em que o pecado reina’”.'? Mais adiante, Paulo ressalta esse rompi- mento decisivo e definitivo com o pecado dizendo-nos que, por estarmos em Cristo, o velho homem foi crucificado com ele (v. 6, 0 tempo aoristo novamente da a entender acdo defi- nitiva); o pecado nao mais predominara sobre nos, pois esta- mos sob a grag¢a (v. 14) e agora obedecemos sinceramente ao padrao de ensino cristaéo ao qual estamos sujeitos (v. 17). A caracteristica essencial desse capitulo é mostrar que o crente foi posto numa nova relacdo, a qual jamais podera ser desfei- ta. Murray resume essa posicao: “Isso significa que ha o rom- pimento definitivo e decisivo do poder da escravidao do pe- cado para todos aqueles que se deixaram submeter ao controle da provisao da graca’.'? Paulo nao s6 ensina que os crentes morreram para 0 peca- do, mas também afirma que foram ressuscitados decisiva e definitivamente com Cristo, Empregando tempos verbais que designam acao instantanea, Paulo afirma: “Todavia, Deus [...] deu-nos vida com Cristo, quando ainda estavamos mortos em transgressées [...]. Deus nos ressuscitou com Cristo” (Ef 2. 4-6). Embora por natureza estivéssemos mortos no pecado, Deus em sua misericordia fez-nos um com Cristo ressurreto e assim ressuscitou-nos com ele. Essa “ressurreicdo” é defini- da nesse texto néo como um longo processo, mas como algo que aconteceu num momento determinado. Além disso, a exor- tacéo aos colossenses nao é para que sejam progressivamen- te ressuscitados com Cristo, mas: “Portanto, ja que vocés res- suscitaram [tempo aoristo] com Cristo, procurem as coisas que sao do alto, onde Cristo esta assentado a direita de Deus” (Cl 3.1). Com base nesses textos, concluimos que santificagdo significa ndo apenas o rompimento definitivo do poder es- cravizante do pecado, mas também a unido definitiva e irre- versivel com Cristo na ressurrei¢géo, por meio da qual o cren- te é capaz de ter uma vida nova (Rm 6.4) e por meio da qual se fez nova criacao (2Co 5.17). Em virtude da santificacao defini- tiva nds, que estamos em Cristo, devemos considerar-nos “mortos para 0 pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6.11). O NT, portanto, ensina claramente a santificacaéo definiti- va. Devemos perguntar, entéo: quando o crente morreu para 0 pecado e ressuscitou com Cristo? Nao é possivel dar uma Aperspectiva reformada = 83 resposta simples a essa pergunta. Ha um lado objetivo e um lado subjetivo na questao. Em sentido objetivo, o crente mor- reu quando Cristo morreu na cruz, e foi ressuscitado com Cristo quando este ressurgiu da morte no sepulcro de José [de Arimatéia]. Uma vez que os crentes em Jesus foram esco- lhidos antes da fundacéo do mundo, estavam em Cristo, pelo menos num sentido, quando ele morreu e ressuscitou. Cristo jamais deve ser considerado separado de seu povo, tampou- co seu povo, dele separado. Quando Cristo morreu, efetuou o rompimento definitivo com o pecado, o que resultou em nos- so beneficio. Quando Cristo ressuscitou, criou a nova vida a qual temos acesso pela fé. N&o podemos, entretanto, desconsiderar 0 aspecto subjeti- vo da unidade com Cristo na morte e ressurreicdo. Paulo afir- ma que Deus nos vivificou com Cristo quando estaévamos mor- tos em transgressées (Ef 2.5) e que morremos para o pecado quando fomos batizados com Cristo Jesus (Rm 6.2,3). Em nos- sa experiéncia, ressuscitamos com Cristo quando nos torna- mos um com o Senhor ressurreto (Cl 3.1). Paulo Ilembra aos colossenses que em algum momento da vida (supostamente, o momento da conversao) eles se despiram voluntariamente do velho homem e se revestiram do novo (3.9,10). Para ser fiel por completo ao ensino biblico, portanto, temos de salientar am- bos os aspectos desse tépico, a saber: 0 passado histérico e o presente que vivemos. Num sentido, morremos para 0 pecado e ressurgimos para a nova vida quando Cristo’ morreu e res- suscitou; noutro, entretanto, morremos para o pecado e res- sugimos para a nova vida quando alcancamos, pela fé, a uni- dade com Cristo em sua morte e ressurreicao.'* O ensino biblico sobre a santificacéo definitiva da a enten- der que os crentes devem considerar a si mesmos e uns aos outros como quem morreu para o pecado e agora é nova cria- cdo em Cristo. Na verdade, a vida nova que os crentes encon- tram em Cristo nao equivale a perfeic¢aéo sem pecado. Uma vez que estdo nesta vida, devem lutar contra o pecado, mas, as vezes, eles caem. Portanto, os crentes devem considerar-se criacaéo genuinamente nova, conquanto ainda nao criagaéo com- pletamente nova. A doutrina da santificagado definitiva ajuda- nos a entender que os que estéo em Cristo romperam de forma definitiva e irreversivel com o pecado. Murray expressa essa verdade com bastante eloqtiéncia: 84 = 5 perspectivas sobrea santificagao Como nao se pode admitir de modo algum anulacao nem repeti- cdo da ressurrei¢do [de Cristo], também no se pode admitir nenhu- ma negacao da doutrina de que todo crente é um novo homem, de que o velho homem foi crucificado, de que o corpo do pecado foi destruido e de que, como novo homem em Cristo Jesus, o crente serve a Deus em novidade que nada mais é do que a novidade do Espirito Santo, de quem se tornou habitacao, e seu corpo, templo.'> E necessario acrescentar que a santificacdo definitiva men- cionada nessa citacdéo nao se refere a uma experiéncia separa- da nem subseqiiente a justificagdo, uma espécie de “segunda bénco". No sentido de experiéncia, a santificacdo definitiva é simultanea a justificagdéo, um aspecto da unido com Cristo. Como mencionamos, em certo sentido a Biblia ensina que a santificacéo é um processo que ocorre ao longo da vida. As- sim, é progressiva. Em vez de anular o que Paulo afirma sobre a santificacdo definitiva, esse ensino a complementa. O aspecto progressivo da santificagao fica evidente, antes de tudo, nas afirmacdes biblicas que declaram que o pecado ainda esta presente no crente. Podemos considerar passa- gens do AT como 1Reis 8.46; Salmos 19.12; 143.2; Provérbi- os 20.9; e Isaias 64.6. O NT também é muito claro nesse as- sunto. Ao tratar da necessidade de sermos justificados pela fé, Paulo fala com nitidez da universalidade da natureza pe- caminosa humana: “Nao ha distingaéo, pois todos pecaram e estdo destituidos da gléria de Deus” (Rm 3.22,23). A “gloria de Deus” nesse texto talvez deva ser mais bem entendida como “glorificar a Deus”. Uma vez que a expressdo verbal “estéo destituidos” esta no presente em grego, podemos tra- duzir a segunda metade do versiculo 23 por “estao sendo destituidos de glorificar a Deus”. Numa declaracéo secunda- ria, mas ainda assim reveladora, Tiago, escrevendo aos cren- tes, diz: “Todos tropegamos de muitas maneiras” (Tg 3.2). Provavelmente, a afirmacao mais clara do NT sobre essa ques- tao seja a de lJoao 1.8. Dirigindo-se aos que julgam ter co- munhao com Deus, Joao escreve: “Se afirmarmos que esta- mos sem pecado [literalmente ‘se dizemos que nao temos pecado’], enganamos a nds mesmos, e a verdade ndo esta em nos”. A conclusao é inevitavel: porque 0 pecado conti- nua presente naqueles que estéo em Cristo, a santificagao deve ser um processo continuo. Aperspectiva reformada = 85 As Escrituras apresentam um aspecto positivo e um ne- gativo da santificacéo progressiva, que por sua vez implica a mortificagéo das praticas pecaminosas e o crescimento do novo homem. Em Romanos 6, como ja se mostrou, Paulo apresenta o aspecto definitivo da santificacéo. Em Romanos 8.13, entretanto, salienta que a santificacéo também deve ser progressiva: “Pois se vocés viverem de acordo com a carne, morrerao; mas, se pelo Espirito fizerem morrer [literalmente ‘continuarem fazendo morrer’] os atos do corpo, viverdo”. Os crentes, a quem anteriormente o apdéstolo define como mortos para o pecado, sao exortados a continuar mortifi- cando as acdes pecaminosas para as quais ainda estao in- clinados. Os leitores de Paulo romperam definitivamente com 0 pecado como o dominio pecaminoso em que viviam, se moviam e existiam; contudo, ainda deviam continuar lu- tando contra o pecado durante toda a vida. Ja que o crente s6 pode realizar isso pelo poder do Espirito, essa luta con- tra o pecado deve ser entendida como um aspecto da santi- ficagdo. Paulo diz aos colossenses que eles morreram e ressusci- taram com Cristo (Cl 3.3), ou seja, comecaram definitiva e irreversivelmente nova vida de comunhéo com Cristo. Con- tudo, no versiculo 5, ele os exorta: “Assim, fagam morrer tudo © que pertence a natureza terrena de vocés: imoralidade se- xual, impureza, paixdo, desejos maus e a ganancia, que é idolatria". Mesmo que ja tenham morrido para o pecado, de- vem ainda fazer 0 pecado morrer. Como ocorre freqtiente- mente, Paulo combina aqui uma declaragéo com uma ordem. Mortificar essas praticas pecaminosas — 0 que so é possivel mediante o poder do Espirito — implica uma acdo vigorosa e por toda a vida do crente. Em 2Corintios 7.1, citado anteriormente, aprendemos que os crentes ainda tém de lutar e purificar-se da contaminacao do corpo e do espirito. Exortacdo semelhante é apresentada em lJoao 3.3. Depois de afirmar que, quando Cristo se mani- festar, nds seremos semelhantes a ele, Jodo prossegue: “Todo aquele que nele tem esta esperanc¢a purifica-se [literalmente: ‘continua purificando-se’] a si mesmo, assim como ele é puro”. Os cristéos néo devem “cruzar os bracgos” e esperar 0 momen- to em que serado completamente semelhantes a Cristo, devem estar constante e energicamente engajados na luta para ven- 86 = 5 perspectivas sobre santificagao cer o mal com o bem. A purificacéo continua resulta em san- tificagdo continua. A natureza progressiva da santificacaéo também se revela em passagens que tratam do aspecto positivo: o crescimento do novo homem. Em Colossenses 3.9,10, Paulo, como ja se disse, lembra a seus leitores que eles devem despir-se do ve- Tho homem e revestir-se do novo; este, por sua vez, é defini- do como alguém que “esta sendo renovado em conhecimen- to, 4 imagem do seu Criador’” (v. 10). Uma vez que segundo esse versiculo 0 novo homem deve ser renovado, obviamente ele nao existe em estado de perfeicao, sem pecado. O partici- pio anakainoumenon, traduzido por “esta sendo renovado”, esta no tempo presente, indicando que essa renovacaéo é um processo para a vida toda. E interessante observar que essa passagem apresenta as duas facetas da santificacéo: de uma vez por todas, os crentes despiram-se do velho homem e re- vestiram-se do novo (santificacao definitiva), mas 0 novo ho- mem do qual se revestiram deve ser continuamente renova- do (santificacdo progressiva). A definigéo mais surpreendente da natureza progressiva da santificacéo esta em 2Corintios 3.18: “E todos nés, que com a face descoberta contemplamos a gléria do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com gloria cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espirito”. A medida que os crentes refletem a gléria do Senhor, estao sendo conti- nua e progressivamente transformados a imagem de Cristo pelo proprio Senhor, que também é 0 Espirito (v. 17). A pala- vra metamorphoumetha, traduzida por “estamos sendo trans- formados”, nao designa apenas mudan¢a na forma exterior, mas na esséncia interior. Tanto 0 tempo presente desse verbo como a expressdo “com gloria cada vez maior” (v. 18) indicam que essa transformacao nao é instanténea, mas progressiva. Enquanto algumas passagens ha pouco citadas salientam a autoria divina da santificacao, outros textos ressaltam a par- ticipacdéo dos crentes no processo, Em Romanos 12.2 os cren- tes séo exortados a nado se amoldar ao padrao deste mundo, mas, ao contrario, a transformar-se cada vez mais pela reno- vacao da mente. Na parte final de 2Corintios 7.1, somos insta- dos a persistir no aperfeigoamento da santidade no temor de Deus. Em Efésios 4.15, a santificacdo é definida como cresci- mento progressivo em Cristo: “Antes, seguindo a verdade em Aperspectiva reformada = 87 amor, crescamos em tudo naquele que é a cabeca, Cristo”. Pe- dro também usa a metafora do crescimento para referir-se a vida crista: “Crescam [ou continuem crescendo], porém, na graca e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 3.18). A santificagdo, portanto, deve ser entendida como progres- siva e definitiva a um sé tempo. No aspecto definitivo, signi- fica a obra do Espirito que nos faz morrer para o pecado, para sermos ressuscitados com Cristo e transformados em nova criagdo. No aspecto progressivo, deve ser entendida como a obra do Espirito que nos renova e transforma continuamente a semelhanca de Cristo e nos capacita a continuar crescendo na graca e a aperfeicoar a santidade. Pode-se dizer que a san- tificacdo definitiva é 0 inicio do processo, e que a santificacgdo progressiva é o amadurecimento continuo do novo homem, amadurecimento produzido pela santificacaéo definitiva. En- quanto a santificacéo, em sua totalidade, é obra de Deus do principio ao fim, no aspecto progressivo ela requer a partici- pacao ativa do crente. SERIA O CRENTE UM “VELHO HOMEM” E UM “NOVO HOMEM” AO MESMO TEMPO? Voltamo-nos agora a outra questéo presente na santifica- cao, isto é, a relacéo entre o velho homem e 0 novo homem (ou velha criac¢éo e nova criacgdo). Essas expressdes ocorrem apenas nos escritos de Paulo. A expresséo velho homem en- contra-se em Romanos 6.6; Colossenses 3.9; e Efésios 4.22.1° Novo (homem) acha-se em Colossenses 3.10 (onde se usa neos para “novo”) e Efésios 4.24 (onde se emprega kainos para de- signar “novo”).!? Nesses textos, Paulo compara o velho homem ligado a vida de pecado com o novo homem de que fomos revestidos ago- ra que estamos em Cristo. Os tedlogos reformados divergem acerca da relacao que existe entre esses dois entes. A maioria dos tedlogos, especialmente os que ensinaram e escreveram ha mais tempo, afirmam que o velho e o novo homem sao aspectos distintos do crente. Antes da conversao, o crente tem o velho homem; no momento da conversao, entretanto, reveste-se do novo homem, mas sem perder completamente a presenca do velho. O cristéo, de acordo com essa perspecti- 88 = 5S perspectivas sobrea santificacao va, € visto em parte como novo homem e em parte como ve- Iho homem — um pouco como “o médico e o monstro”. Algu- mas vezes, o velho homem esta no comando, mas outras é 0 novo quem controla as rédeas. O conflito da vida, segundo essa corrente, se trava entre esses dois aspectos do crente. A titulo de exemplo, consideremos como um dos mais exi- mios oponentes dessa corrente define a luta contra o pecado nos crentes: [Na vida crista] a luta [...] trava-se entre o homem interior do cora¢ao, criado para ser como Deus em verdadeira justica e santi- dade, e 0 velho homem que, mesmo expulso desse centro, ainda deseja manter-se vivo e luta com mais ferocidade a cada territério perdido [...] Eum conflito entre duas pessoas no mesmo individuo [...] Ecomo se o mal e o bem estivessem misturados em cada deci- s&o e acdo do crente |...) em cada pensamento e cada agao, uma parte do velho homem e uma parte do novo homem esta presente.'!* John Murray, contudo, que durante muitos anos lecionou teologia sistematica no Seminario de Westminster, faz fortes objecGes a essa concepcdo de novo e velho homem: Ocontraste entre o velho e o novo homem tem sido interpretado em geral como oposic¢ao entre o que é novo no crente e o que é antigo [...] Por essa razao, a antitese que existe no crente entre santi- dade e pecado [...] € aquela entre o novo e o velho homem que habi- tam nele. O crente é a um sé tempo velho homem e novo homem: quando faz o bem, esta agindo da perspectiva do novo homem que &; quando peca, esté agindo como velho homem que ainda é tam- bém. Essa interpreta¢ao nao encontra apoio no ensino de Paulo.!? Creio que Murray esta certo nesse ponto. Vejamos alguns textos biblicos que ensinam que aquele que esta em Cristo nao é mais velho nem novo homem, mas nova criacdo. Comecemos com Romanos 6.6: “Pois sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado seja destruido, e nao mais sejamos escravos do peca- do”. O que Paulo quer dizer com a expresso “velho homem"? Murray faz crer que essa expressao indica “a unidade do in- dividuo dominado pela carne ¢ pelo pecado”.2° Em outras palavras, Paulo fala da totalidade: o individuo totalmente “es- cravizado pelo pecado” — o que somos por natureza. Esse Aperspectiva reformada = 89 individuo, “escravo do pecado”, diz Paulo, foi crucificado com Cristo. Quando Cristo morreu na cruz, desferiu um golpe mortal no velho homem que fomos outrora, Tomando por base o que significa “crucificado”, Romanos 6.6 afirma com clareza inequivoca que nds que estamos em Cristo, que so- mos um com ele em sua morte, néo somos mais o velho ho- mem de outrora. Outras passagens das epistolas de Paulo confirmam essa concepcao de velho homem. Colossenses 3.9,10, por exem- plo, estudado anteriormente com relacao a santidade defini- tiva, ensina-nos sobre o velho e o novo homem: “Ndo mintam uns aos outros, visto que vocés ja se despiram do velho ho- mem com suas praticas e se revestiram do novo, o qual esta sendo renovado em conhecimento, a imagem do seu Cria- dor”. Paulo, nesse texto, nao diz aos crentes de Colossos que eles devem agora (ou diariamente) despir-se do velho homem e revestir-se do novo, mas sim que eles jd se revestiram! So- freram essa transformagdo quando, no momento da conver- sao, se apropriaram mediante a fé do que Cristo fizera por eles quando morreu e ressuscitou. Os participios gregos apekdysamenoi e endysamenoi, tra- duzidos por “despir-se” e “revestir-se”, estéo no tempo aoris- to, que designa ac¢do instantanea. Paulo se refere a uma atitu- de que esses crentes tomaram no passado. Néo mintam uns aos outros, diz o apdéstolo, nao cobicem, nao estejam avidos pelo pecado nem murmurem, porque vocés ja se despiram do velho homem e porque se revestiram do novo,”! Vocés de- vem parar de cometer esses atos pecaminosos, pois essa con- duta é obviamente incompativel com o revestimento do novo homem. O exemplo de que Paulo se vale fortalece essa idéia: ninguém se veste com duas roupas ao mesmo tempo — é preciso tirar uma para vestir a outra. Paulo, nesse texto, retra- ta os crentes como pessoas que agora estado vestidas com o novo homem, e nao mais com o velho. Efésios 4,20-24 tem semelhancga préxima, mas apresenta algumas dificuldades: Todavia, nao foi isso que vocés aprenderam de Cristo. De fato, vocés ouviram falar dele, e nele foram ensinados de acordo coma verdade que esta em Jesus. Quanto a antiga maneira de viver, vocés foram ensinados a despir-se do velho homem, que se corrompe 90 = S perspectivas sobre a santificacéo por desejos enganosos, a serem renovados no modo de pensar ea revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a Deus em justica e em santidade provenientes da verdade. O original grego desses versiculos contém trés infinitivos principais (apothesthai, ananeousthai e endysasthai), que sig- nificam “despir-se”, “renovar” e “revestir-se” respectivamente e que, em muitas vers6es, sio traduzidos por imperativos, como se Paulo estivesse dizendo aos crentes de Efeso 0 que agora deveriam fazer (cf. “vos despojeis”, “vos renoveis” e “vos revistais” — ARA). Segundo essa traducao, 0 texto se conver- teria numa ordem, o que na verdade seria incoerente com a posicéo defendida até aqui (de que os crentes ja se despiram do velho homem e se revestiram do novo). Embora a traducéo Almeida Revista e Atualizada (ARA) nao esteja gramaticalmente incorreta, existe outra possibilidade. Esses infinitivos podem ser entendidos também como o cha- mado “infinitivo explanatério”, ou seja, estaéo apenas dando o contetido do ensino explanado nos versiculos 20 e 21. Nessa analise, Paulo esta pressupondo que os leitores fizeram aqui- lo que foram ensinados a praticar. Essa compreensao do texto faz com que seu ensino seja semelhante 4 passagem de Co- lossenses analisada anteriormente, considerada epistola irma da de Efésios. A tradugdo da Nova Versdo Internacional (NVI) deve ser, portanto, preferivel 4 da ARA. Interpretado dessa forma, Efésios 4.22-24 afirma que os crentes de Efeso nao de- vem continuar vivendo como os gentios nao-convertidos (v. 17-19), uma vez que, como foram ensinados, tinham se des- pido do velho homem e se revestido do novo. O novo homem de quem se revestiram foi na verdade criado 4 semelhancga de Deus em justica e santidade.” Dos textos biblicos analisados anteriormente, portanto, fica claro que, de acordo com o NT e em coeréncia com o seu en- sino do aspecto definitivo da santificagdo, os crentes nao sdo mais o velho homem de outrora. O crente nao é, como muitas vezes tem-se ensinado, velho homem e novo homem, mas é de fato nova criacéo em Cristo. Paulo salienta esse aspecto importante nas emocionantes palavras de 2Corintios 5.17 (‘Portanto, se alguém esta em Cristo, é nova criacgao. As coisas antigas ja passaram; eis que surgiram coisas novas”). Néo devemos subestimar a importancia desse ensino e dessa di- Aperspectiva reformada = 91 retriz sobre a santificacdo. John Murray ocupa-se do assunto com propriedade: Ovelho homem é 0 homem nao-regenerado; 0 novo é 0 homem regenerado, criado em Cristo para as boas obras. Chamar o crente de novo homem e velho homem é t4o impossivel quanto chama-lo de regenerado e ndo-regenerado. Em nenhum dos casos é correto dizer que o crente é o velho homem e também o novo homem. Esse tipo de terminologia nao tem fundamento e nao passa de uma for- ma de distorcer a doutrina que Paulo téo zelosamente estabeleceu quando afirmou que “o nosso velho homem foi crucificado".?* Embora sejam nova criacéo, os crentes nao atingiram ain- da a perfeigao sem pecado, ainda tém de lutar contra o peca- do. Em Colossenses 3.10, 0 novo homem de que os crentes se revestiram é definido como alguém que esta sendo reno- vado. Essa renovacdo, como vimos, é um processo para toda a vida. Em Efésios 4.23, Paulo lembra os leitores de que, con- quanto se tentam despojado do velho homem e revestido do novo, estéo sendo renovados no modo de pensar. O infi- nitivo ananeousthai, traduzido por “serem renovados” esta no tempo presente, o que da a entender um processo conti- nuo. Os crentes que se tornaram novas criagées em Cristo sdo exortados a ainda fazer morrer os atos do corpo (Rm 8.13), a eliminar qualquer atitude pecaminosa (Cl 3.5), a li- vrar-se de pecados como cobi¢a, ganancia, raiva, malicia e linguagem impura (v. 5,8) e a purificar-se de tudo 0 que con- tamina 0 corpo e o espirito (2Co 7.1).%4 Portanto, o novo homem que o NT define nao é equivalen- te a um homem perfeito, sem pecado. E genuinamente novo, embora nado completamente novo. A novidade desse homem nado é estatica, mas dinamica, e necessita de renovacao, cres- cimento e transformacdo continuos. O crente profundamen- te consciente de suas falhas ndo precisa dizer: “Porque eu ainda sou um pecador, ndo posso me considerar uma nova pessoa”. Em vez disso, deve dizer: “Sou uma nova pessoa, mas ainda devo crescer muito”. O NT fala muitas vezes da vida cristaé como uma batalha constante contra o pecado. Os crentes sdo advertidos a vestir a armadura de Deus para serem vitoriosos na luta contra as forgas malignas (Ef 6.11-13); a travar o bom combate (1Tm 6.12; cf. 2Tm 4.7), a nao satisfazer os desejos da carne (GI 5.16);ea 92 = Sperspectivas sobre a santificagio resistir ao pecado a ponto de derramar o proprio sangue (Hb 12.4), Em 1Corintios 9,.26,27, Paulo fala de sua propria luta ferrenha contra 0 pecado comparando-se a um boxeador: “Nao luto como quem esmurra 0 ar. Mas esmurro 0 meu corpo e faco dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo nao venha a ser reprovado”.*> Além disso, ainda que a luta contra o pecado seja bem real, os crentes nao sdo mais dele escravos. A crucificacéo do ve- lho homem com Cristo, ensina Paulo, implica a libertagdo da escravidaéo do pecado (Rm 6.6); porque ndo estamos debaixo da lei, mas debaixo da graca, o pecado nao deve mais domi- nar-nos (v. 14). “O pecado que ainda é inerente ao crente e 0 pecado que ele comete néo tém mais dominio sobre ele”.”° Em resumo, podemos dizer que o crente nao é mais o velho homem, mas o novo homem que esta sendo progres- sivamente renovado. Ainda tem de combater o pecado e as vezes tombara diante dele, mas nao é mais seu escravo. Pelo poder do Espirito, o crente agora é capaz de resistir, ja que, para cada tentacdo, Deus providenciaraé uma forma de esca- pe (1Co 10.13). Uma deducdo importante desse ensino é que os crentes devem ter uma imagem positiva de si mesmos. A base dessa auto-imagem ndo é o orgulho pecaminoso de nossos feitos ou de nossas virtudes, mas é enxergar-nos pela éptica da obra redentora de Deus em nossa vida. Cristianismo nao significa apenas crer em algo a respeito de Cristo, significa também crer em algo a respeito de nds mesmos, a saber, que somos de fato nova criagdo em Cristo.?” A QUESTAO DO PERFECCIONISMO Alguns grupos cristéos afirmam que é possivel ao crente viver sem pecado nesta vida. John Wesley ensinava que existe uma segunda obra da graca posterior a justificagdéo chamada santificacdo plena, ou a possibilidade de viver em tal estado de amor perfeito a Deus que o individuo se considera sem pecado.”* De acordo com Wesley, essa possibilidade esta ao alcance de todo cristo, e os crentes devem procurar realiza- la. Muitos grupos e igrejas ligados a tradicéo wesleyana pre- gam, semelhantemente, a santificagdo plena como uma “se- gunda béncdo” que ocorre apés a justificagao. Aperspectivareformada = 93 Essa corrente ensina que a santificacdo plena é 1) experién- cia distinta, separada e posterior a justificagaéo e 2) experiéncia instanténea, que implica extirpar o pecado inato, ou a raiz dele, e destruir a “natureza carnal]’.? Pecado é definido como “transgressdo voluntaria da lei conhecida”.*° Finalmente, a perfeicéo que eles dizem ser possivel ao crente obter é sem- pre qualificada: nao é adadmica, angelical, nem da ressurrei- ¢ao, e néo é a mesma de Cristo. Na verdade um autor define a experiéncia atingivel como “perfeicaéo imperfeita”.2! Sao necessarias algumas consideragées contrarias a esses ensinamentos. Em primeiro lugar, os perfeccionistas (como sao chamados os que defendem essa posicao) tiram a forga da definicao de pecado limitando-a apenas ao pecado delibe- rado. Como é facil nao reconhecer o pecado como pecado! Sera que a concepcao perfeccionista se harmoniza com a ora- ¢ao e confissao de Davi em Salmos 19.12 (“Quem pode discer- nir os préprios erros? Absolve-me dos que desconhe¢o!”)? Em segundo lugar, o perfeccionismo rebaixa o padrao de perfeicado, Se essa perfeicéo nao é igual a de Addo antes da Queda, nem a dos crentes ressurretos, por que chamé-la per- feicdo? Faz sentido falar em “perfeicao imperfeita’? Em terceiro lugar, esse ensino transforma a santificacdo numa “segunda obra da graca”, separada da justificagado. Mas 0 NT as coloca juntas. Em 1Corintios 1.30, Paulo diz que Cris- to foi feito “justica, santidade e reden¢do”. Em outras pala- vras, néo podemos ter num momento Cristo como nossa jus- tificagdo e, noutro, Cristo como nossa santificacao (v. tb. 1Co 6.11). Embora a santificacgdo definitiva ocorra em determina- do momento, nao é experiéncia separada da justificagdo nem posterior a ela; ambas sao simultaneas.* A santificacao pro- gressiva, como se viu, continua durante toda a vida. Nao devemos, portanto, buscar uma “segunda béncao” especi- fica, que ocorrera em determinado dia, mas devemos procu- rar o crescimento e a renovacdo constantes (Rm 12.2; Cl 3.10; Ef 4.23; 2Pe 3.18). Em quarto lugar, as Escrituras ndo ensinam que é possivel aos crentes ficar sem pecado nesta vida. Como se mencionou anteriormente, a Biblia ensina que ninguém pode dizer-se sem pecado: “Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamos a nds mesmos, e a verdade n&o esta em nds” (1Jo 1.8). As Escrituras também ensinam a confissdo constante de peca- 94 = Sperspectivas sobrea santificacao dos e a orac4o pedindo perdao, como ensina o versiculo se- guinte: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda in- justica”. O mesmo ocorre na quinta peti¢ao da oracao do Se- nhor: “Perdoa as nossas dividas, assim como perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12). Visto que Jesus nos ensina a orar pelo pao diario, naturalmente ele deseja que lhe pecamos per- dao também diariamente. A Biblia também ensina que os crentes devem continuar lutando contra o pecado enquanto estiverem vivos. Anterior- mente neste capitulo, resumimos as provas das Escrituras so- bre esse ensino; trataremos mais detalhadamente de Galatas 5.16,17: Por isso digo: Vivam pelo Espirito, e de modo nenhum satisfa- rao os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrario ao Espirito; e o Espirito, o que é contrario a carne. Eles estao em confli- to um com 0 outro, de modo que vocés nao fazem o que desejam.** O que Paulo quer dizer com carne? Ainda que a palavra carne, do modo como é usada no NT, apresente diversos senti- dos, nos versiculos em questao ela significa a tendéncia interi- or do ser humano de desobedecer a Deus em todas as areas da vida. Néo devemos restringir o significado dessa palavra para que se refira apenas ao que comumente chamamos pecados carnais, ou pecados do corpo; devemos entender carne como algo que designa pecados cometidos pela pessoa inteira. Na lista de “obras da carne” (v. 19-21), apenas cinco das quinze arroladas designam o que em geral chamamos pecados do corpo; as restantes so “pecados do espirito” (dio, discérdia, inveja e outros). Aprendemos em Romanos 8.9 que os crentes nao estao sob o dominio da carne, mas do Espirito, isto é, os crentes nao sao mais escravizados pela carne, mas sao governados pelo Espirito. Todavia, Galatas 5.16,17 entende que os crentes ainda tém de lutar contra os impulsos pecaminosos que pro- cedem da carne, pois a vontade da carne é contraria a do Es- pirito. As Escrituras, portanto, prometem que, se continuar- mos seguindo préximos do Espirito, néo satisfaremos nem cumpriremos os desejos da carne (v. 16). Mas esta claro que os crentes devem continuar lutando contra as tendéncias interio- res até o ultimo suspiro. Aperspectiva reformada = 95 Na verdade, Galatas 5.24 ensina que os crentes crucifica- ram a carne. Devem, entretanto, continuar lutando contra os desejos da carne (v. 16,17). Da mesma forma, os crentes estaéo mortos para o pecado (Rm 6.2,11), mas ainda tém de mortifi- car os atos do corpo (Rm 8.13); eles foram crucificados para o mundo (GI 6.14), porém, nado devem amoldar-se ao padrao deste mundo (Rm 12.2); estéo sem o fermento do pecado, mas ainda precisam livrar-se do fermento velho (1Co 5.7), Passa- gens como essas ilustram a tensdo que Paulo viu em si mesmo e@ em seus companheiros crentes. A presenga dessa tensdo exclui a alegacdo de que os crentes podem atingir a perfeicdo sem pecado nesta vida.*+ Concluimos que a Biblia ndo retrata o crente como alguém que teve todos os impulsos pecaminosos erradicados, que nao precisa mais combater os desejos pecaminosos, ou que seja capaz de viver completamente sem pecado. Conquanto nao concordemos com o ensino dos perfeccionistas, deve- mos admirar e procurar imitar a paixdo deles pela vida santa. A SANTIFICACAO E A LEI Muitos cristéos afirmam que, quando alguém se torna cren- te, nao tem mais nada que ver com a lei. “Livre da lei — 0, condicéo abencoada!” parece definir a atitude relativa ds fun- ¢ées da lei. Em certo sentido, na verdade, o crente esta livre da lei. Romanos 6.14 diz claramente: “Pois o pecado nao os domina- ra, porque vocés nao estéo debaixo da Lei, mas debaixo da graca”. “Nao estéo debaixo da Lei” nesse texto significa que nado estéo mais sob condenacdo se deixarem de observar a lei. Paulo salienta em Galatas 3.10 que todo aquele que deixar de fazer tudo o que esta escrito no livro da Lei de Deus esta sob maldicéo — a maldicdo da punicao eterna. Mas o apdstolo pros- segue, dizendo que “Cristo nos redimiu da maldicdo da Lei quando se tornou maldicéo em nosso lugar, pois esta escrito: ‘Maldito todo aquele que for pendurado num madeiro’. Isso para que em Cristo Jesus a béncao de Abrado chegasse tam- bém aos gentios, para que recebéssemos a promessa do Espi- rito mediante a fé” (v. 13,14). Cristo sofreu tao completamente a “maldicdo da lei” por nés que se tornou maldicao por nds — ao sofrer as conseqiiéncias da maldicado ao longo da vida, es- 96 = 5 perspectivas sobrea santificagao pecialmente na cruz. A béngao de Abrado (ou seja, a béngao da justificagao pela fé; cf. v. 8) passou a ser a nossa béncao. No sentido em que os crentes nao devem mais cumprir a lei como forma de obter a salvacao, de fato eles foram dela libertados. Em outro sentido, entretanto, os crentes nao estdo livres da lei. Devem estar profundamente preocupados em guardar a lei de Deus como forma de expressar-lhe gratidao pela dadi- va da salvacéo. Calvino identificou essa utilidade da lei na terceira e principal funcado na vida dos crentes: Aterceira e principal utilidade (da lei], mais intimamente liga- da a caracteristica propria da lei, encontra-se entre os crentes em cujo coracao o Espirito Santo ja vive e reina [...]. Este € 0 melhor instrumento para que aprendam mais completamente, a cada dia, a natureza da vontade de Deus a qual aspiram [...]. Novamente, por Necessitarmos nao apenas de ensino, mas também de exortacao, 0 servo de Deus também se beneficia desta vantagem da lei.>> A Biblia certamente ensina essa “terceira e principal” utili- dade da lei. Por exemplo, bem no inicio da lei sinaitica, Deus diz: “Eu sou o Senor, 0 teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidao" (Ex 20.2), com isso lembrando seu povo do gracioso ato de libertacdo do Egito, ao qual eles deviam a exis- téncia como na¢ao. Deus estava dizendo: “Observai estes man- damentos em gratidao pela misericérdia que vos tenho de- monstrado”. A lei tinha de ser observada por gratidaéo a Deus, 0 que explica 0 prazer que os santos do AT tinham na lei de Deus. Dessa forma, depois de falar da bem-aventuranca daquele que nao anda segundo o conselho dos impios, o autor do primei- ro salmo prossegue, por exemplo, dizendo: “Ao contrario, sua satisfacao esta na lei do SenHor, e nessa lei medita dia e noite” (v. 2). Nesse texto, lei significa os preceitos de Deus, dados no Decalogo e em outras partes da revelacao escrita, preceitos que forneciam as diretrizes para a vida do crente. A mesma satisfacdo se manifesta em Salmos 19.7,8: A lei do Senror é perfeita, e revigora a alma. Os testemunhos do Sentior séo dignos de confianga, e tornam sabios os inexperientes. Os preceitos do Senuor sao justos, e dao alegria ao coracao. Os mandamentos do Stnuior so limpidos, ¢ trazem luz aos olhos, Aperspectiva reformada = 97 O salmo 119 inteiro, o maior da Biblia, é um poema de lou- vor a beleza e a graga da lei de Deus e a alegria que o salmista tem em cumpri-la: “Dirige-me pelo caminho dos teus manda- mentos, pois nele encontro satisfacao” (v. 35). O NT, que amplia o ensino do AT, da mesma forma exorta os crentes a guardar a lei de Deus em gratidao pelas béncdos recebidas. No Sermao do Monte, Jesus diz: Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos [en- contrados na Lei e nos profetas], ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem 0 mesmo, serd chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos sera chamado grande no Reino dos céus (Mt 5.19). Em outra ocasiao, Jesus disse a seus discipulos: “Se vocés obedecerem aos meus mandamentos, permaneceréo no meu amor, assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permane¢o” (Jo 15.10). A ordem de Jesus, entretanto, nao é diferente da exigéncia dos Dez Mandamen- tos, pois ele prossegue, dizendo: “O meu mandamento é este: Amem-se uns aos outros como eu os amei” (v. 12). Noutra ocasiao, Jesus ensinou que o contetido todo dos Uultimos seis mandamentos do Decalogo é: “E 0 segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu proximo como a si mesmo” (Mt 22.39). No NT esta claro que os crentes ainda tém de observar os Dez Manda- mentos. Todavia, tem o exemplo de Cristo como um tipo de “ajuda visual” (cf. “como eu os amei”, Jo 13.34). Paulo, muitas vezes citado como alguém que apresenta a lei e a graca em acentuado contraste, também considera que a lei (como na terceira utilidade que Calvino apresenta) vincula os cristaos. Em Romanos 8.3,4, 0 apdstolo indica que o pro- posito da encarnacao de Cristo era permitir que o povo de Deus cumprisse a lei: Porque, aquilo que a Lei fora incapaz de fazer por estar enfra- quecida pela carne, Deus o fez, enviando seu proprio Filho, a seme- Ihanga do homem pecador, como oferta pelo pecado. Eassim con- denou o pecado na carne, a fim de que as justas exigéncias da Lei fossem plenamente satisfeitas em nds, que nao vivemos segundo a carne, mas segundo 0 Espirito. Alguns cristéos acreditam que haja um acentuado contraste entre guardar a lei e viver pelo Espirito. De acordo com essa 98 = 5perspectivas sobre a santificagéo passagem, entretanto, as duas expressdes designam a mes- ma coisa: crentes guiados pelo Espirito sdo precisamente os que dao o melhor de si para guardar a lei de Deus. A idéia de que o crente nao tem mais relacdo com a lei esta bem distante da concep¢ao paulina. O apdéstolo define o amor ao préximo como uma divida continua que temos uns para com os outros, o que indica que o amor é o cumprimento da lei: Nao devam nada a ninguém, a nao ser o amor de uns pelos outros, pois aquele que ama seu pr6ximo tem cumprido a Lei. Pois estes mandamentos: “nao adulteraras”, “nao mataras’”, “nao furta- ras”, “ndo cobicards”, assim como qualquer outro mandamento, todos se resumem neste preceito: “Ame o seu proximo como a si mesmo". O amor nao pratica o mal contra o proximo. Portanto, o amor é 0 cumprimento da Lei. (Rm 13.8-10) Nesse texto, Paulo instrui os crentes a continuar cumprin- do a lei e, além disso, conclui que, ao contrario da opiniado de alguns, nao existe conflito entre a observancia da lei e o amor. Em 1Corintios 9.20,21, Paulo discute seu método missio- nario, bem como a relacdo deste com a lei: “Tornei-me judeu para os judeus, a fim de ganhar os judeus [...] Para os que estado sem lei [os gentios], tornei-me como sem lei (embora nao esteja livre da lei de Deus, e sim sob a lei de Cristo)”. Paulo considera-se claramente sujeito a lei de Cristo — sem- pre “sob a lei de Cristo”. Declaragées semelhantes sdéo encontradas nas epistolas universais. Tiago ensina que guardar a lei, em vez de nos manter em escravidao, nos traz liberdade: “Mas o homem que observa atentamente a lei perfeita, que traz a liberdade, e persevera na pratica dessa lei [...] sera feliz naquilo que fizer” (Tg 1.25). Joio associa a lei com o conhecimento de Deus e com a vida na plenitude do amor: “Sabemos que o conhece- mos, se obedecemos aos seus mandamentos. Aquele que diz: ‘Eu o conheco’, mas nao obedece aos seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade nao esta nele. Mas, se alguém obedece a sua palavra, nele verdadeiramente o amor de Deus esta aper- feigoado” (1Jo 2.3-5). Podemos concluir que a vida cristé deve ser uma vida mol- dada pela lei. Ainda que os crentes ndéo devam procurar guar- dar a lei de Deus como meio de obter a salvac¢do, nao estado, Aperspectiva reformada = 99 apesar disso, proibidos de observar a lei como forma de de- monstrar a gratidao a Deus pela salvacdo que receberam como dadiva da graca. Para os crentes, guardar a lei é expresséo do amor cristéo e caminho para a liberdade cristaé; equivale a an- dar junto do Espirito. Uma vez que a lei reflete quem é Deus, viver em obediéncia a lei de Deus é viver como portador da imagem divina. A lei, portanto, é um dos mais importantes meios pelos quais Deus nos santifica.3* 0 PROPOSITO DA SANTIFICACAO O propésito da santificacéo pode ser enxergado por duas perspectivas: o propdsito final e o imediato. O propdésito final da santificacéo néo pode ser nada mais do que a gloria de Deus. Ao refletir sobre essa atuacdo graciosa de Deus, nao devemos ter primeiro em consideracdo a nossa felicidade fu- tura, mas a gléria de nosso Deus magnifico. A Biblia informa que a gloria de Deus é 0 propésito final da santificagaéo. Depois de escrever em Efésios 1.4,5 que Deus nos escolheu em Cristo antes da fundacéo do mundo e nos predestinou para sermos adotados como seus filhos, Paulo acrescenta, “para o louvor da sua gloriosa graca” (v. 6), idéia repetida nos versiculos 12 e 14 (“sejamos para o louvor da sua gloria” e “para o louvor da sua gloria’, respectivamente). Em outra parte, Paulo ora para que o amor de seus compa- nheiros aumente cada vez mais, a fim de que sejam puros e irrepreensiveis, cheios do fruto de justica, “para gloria e lou- vor de Deus” (Fp 1.9-11). Por que Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez assentar em lugares celestiais? “Para mostrar, nas eras que hao de vir, a incomparavel riqueza de sua graca, demonstrada em sua bondade para conosco em Cristo Jesus” (Ef 2.7). Em outras palavras, todas as maravilhosas béncdos da salvacao, entre elas nossa santificacéo, tem como propdsi- to final o louvor da gloria de Deus. Nada em toda a historia revelara de forma tao brilhante a plenitude da perfeicdo de Deus do que a plena glorificagdéo do seu povo. No livro de Apocalipse, 0 apéstolo Joao abre as cortinas que encobrem o mistério e da-nos um vislumbre do céu. Ele ouve a voz dos redimidos cantando: “Aquele que esta assen- tado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a gloria e © poder, para todo o sempre!” (Ap 5.13). O propésito final de 100 = 5 perspectivas sobre a santificagao todas as admiraveis obras de Deus, além da santificacéo de seu povo, é que ele seja exaltado, honrado e glorificado para sempre. O propésito imediato da salvacdo é a perfeicéo do povo de Deus. Esta perfeicdo sera o estagio final da histéria da ima- gem de Deus, pois na vida vindoura o seu povo refletira per- feitamente a imagem de Deus e a de Cristo, que é “a expressao exata do seu ser” (Hb 1.3). Paulo nos diz em 1Corintios 15.49: “Assim como tivemos a imagem do homem terreno, teremos também a imagem do homem celestial”. Esse “homem celestial” é sem dtivida Jesus Cristo, cuja imagem glorificada, diz Pau- lo, assumiremos plenamente e revelaremos na ressurrei¢do. Joao diz algo semelhante em lJoao 3.2. Embora ainda nao saibamos o que seremos no futuro, nos, os filhos de Deus, “sabemos que, quando ele [Cristo] se manifestar, seremos se- melhantes a ele, pois o veremos como ele 4”, diz 0 apéstolo. O proposito da santificacéo, como afirma este versiculo, é a se- melhanca completa e perfeita com Cristo e, por conseguinte, com Deus. Essa semelhanga total preservara nossa individua- lidade, mas significa que estaremos completamente isentos de pecado (v. tb. Ef 5.27; Hb 12.23; Ap 22.14,15). A perfeicdo futura é o propésito a que Deus nos predesti- nou: “Pois aqueles que de antem4o conheceu, também os pre- destinou para serem conformes a imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogénito entre muitos irmaos” (Rm 8.29). Esse proposito divino, em outras palavras, nao é apenas a felicidade futura, tampouco o acesso garantido ao céu, mas a semelhanca perfeita com Cristo e, conseqiientemente, com Deus. Com efeito, Deus nao poderia destinar futuro melhor para seu povo que o de ser inteiramente semelhante a seu Filho, em quem ele se compraz. A perfeicao futura do povo de Deus sera compartilharmos da glorificacaéo final de Cristo. Nao somos apenas herdeiros de Deus, diz Paulo em Romanos 8.17, mas co-herdeiros com Cristo, “se de fato participamos dos seus sofrimentos, para que também participemos da sua gloria’. Como diversas ve- zes se disse, jamais devemos pensar em Cristo a parte de seu povo, como também n&o devemos pensar em seu povo 4 par- te dele. Portanto, assim sera no porvir: a glorificacéo do povo de Deus ocorrera juntamente com a glorificacao de Cristo. Quando nossa santificagdo estiver completa, seremos total- Aperspectiva reformada = 101 mente semelhantes a Cristo até em sua glorificacaéo. Entao, perfeitos e sem pecado, exaltaremos e engrandeceremos con- tinua e eternamente as insondaveis riquezas da grac¢a de Deus. BIBLIOGRAFIA Bavinck, Herman. Gereformeerde Dogmatiek. 3* ed. 4 vols., Kampen, Kok, 1918. Berknior, Louis. Systematic Theology. Rev. ¢ enl., Grand Rapids, Eerdmans, 1952 [Teologia sistemdtica, Editora Cultura Crista, 2004]. Berkouwer, G.C. Faith and Sanctification. Trad. John Vriend. Grand Rapids, Eerdmans, 1962. . Man: The Image of God. Trad. Dirk W. Jellema. Grand Rapids, Eerdmans, 1962. Horxems, Anthony A. The Christian Looks at Himself. 29 ed., Grand Rapids, Eerdmans, 1977 [O eristdo toma consciéncia do seu valor, Edito- ra Luz para o Caminho, 1987]. . Created in God's Image. Grand Rapids, Eerdmans, 1986. Murray, John. Collected Writtings of John Murray. 2 vols., Carlisle, Pa., Ban- ner of Truth Trust, 1977. . Redemption — Accomplished and Applied. Grand Rapids, Eerd- mans, 1955 [Reden¢gdo: consumada e aplicada, Editora Cultura Crista, 1993). Réplica WESLEYANA a Hoenena Mewvin E. Dieter A definigéo com que Anthony Hoekema inicia seu artigo é a um sé tempo precisa e concisa. Expressa com beleza o propd- sito da salvacdo e da vida crista. Creio, porém, que nao seja injusto mencionar que, ao longo de toda a explanacdo da posi- ¢ao reformada, os contornos acentuados das implicacées do calvinismo classico para a doutrina da santificagéo parecem estar marcantemente modificados pela influéncia do pietismo e do reavivalismo norte-americanos, que tendem mais para a concep¢ao arminiana da natureza da santificagéo e da respon- sabilidade humana. Ao longo do capitulo, Hoekema revela pouco do pessimismo em relagdo 4 condicéo humana e as perspecti- vas da santificacdo pratica, pessimismo este inerente ao calvinismo tradicional e nele muitas vezes explicito. Mas ainda permanece o medo de usar qualquer categoria perfeccionista, téo caracteristico no didlogo reformado com as correntes wesleyano-arminianas. Deve-se observar que wesleyanismo nao é perfeccionismo (0 que implica um pelagianismo), e certamente nao implica perfeicdéo sem pecado. Este foi provavelmente o topico mais distorcido. O wesleyanismo cré na perfeic¢do crista —a medida da plenitude, em amor, que a grac¢a divina possibi- lita aos filhos de Deus em qualquer ponto de seu relaciona- mento com ele. Apesar dessas tensdes e das diferencas presentes entre a perspectiva reformada e a wesleyana, novamente me regozi- jo pela semelhanga na compreensao biblica que caracteriza Réplicawesleyana a Hoekema = 103 os dois entendimentos sobre o assunto. Quando Hoekema es- boga os meios de santificacéo pela uniao com Cristo, pela ver- dade e pela fé, com a conclusdo de que “o pecado nao mais predomina sobre nés"” (p. 73 e 92), fala com eloqiiéncia em nome de todos os crentes que créem na Biblia, independente- mente dos meios que visam o fim e dos termos empregados para desenvolver esse ensinamento. A semelhanca com Cristo e a fé que opera pelo amor so 0 que de fato importa; a inte- racdo e o didlogo entre nossas diferentes perspectivas, pelo menos, nos ensinam isso. Os matizes das diferengas basicas entre a definicdo de Hoekema, concebida no contexto reformado, e a dindmica da santificacdo, na concep¢do das outras posicées apresentadas neste livro, comecam a aparecer imediatamente quando ele define as palavras-chave utilizadas na definicao. Por exem- plo, quando Hoekema diz que a corrup¢ao do pecado gera mais pecado, que sao acrescentados 4 natureza pecaminosa do individuo (p. 95), isso da a entender imediatamente algum tipo de forca irresistivel do pecado em nés que nos deve fa- zer continuar pecando inevitavelmente. Esse entendimento se enquadra, com mais propriedade, na concep¢do reforma- da da humanidade decaida do que na posicao wesleyana, es- bogada em meu ensaio. Além disso, quando ele afirma que essa corrupcao esta em processo permanente de remocdo nesta vida, encontramos uma das principais diferencas entre as interpretagdes calvinista e wesleyana da santificag¢éo. Um wesleyano nao vé problema em dizer que faz parte da vida a presenca de alguma corrupcdo pecaminosa na ordem natural decaida, corrupc4o que nos priva da libertacdo final e com- pleta das conseqiiéncias da Queda e dos pecados posteriores do ser humano. A total libertacéo nao se realizara enquanto nao ocorrer a glorificagéo do corpo e o restabelecimento do governo de Deus sobre toda a cria¢do. Mas sera que a liberta- ¢do da corrup¢do do pecado é aquilo que a graca de Jesus Cristo nos dé em vida? Certamente nao. A distingdo entre os dois esta em Romanos 7 e 8. Apesar das diferentes interpretagdes de Romanos 7, passagem cen- tral para o tema da santificagéo, uma coisa é evidente: o ver- dadeiro dilema que deve ser resolvido é a capacidade, como diz Kierkegaard, de “desejar o desejo”. Essa idéia se confirma em Romanos 8, em que a libertacdo dessa devastadora frus- 104 = 5 perspectivas sobre santificagao tracao no cumprir a lei de Deus, de Romanos 7, esta na lei do Espirito de vida em Jesus Cristo, como foi declarado. O cum- primento da lei é amar de todo o coracao a Deus e ao proximo, e o chamado e a promessa destes relacionamentos estéo em Romanos 12. Romanos 8, além de celebrar o tipo de libertacéo do peca- do que Hoekema reconhece como a expectativa da vida san- tificada, também aborda o fato de os crentes continuarem sofrendo com as limitagées de seu proprio corpo decaido e do sistema ndo-redimido do mundo em que vivem. Parece que a confusao entre a vida de limita¢ao atual, proveniente das imperfeicdes naturais, e 0 estilo de vida anterior, livre do pecado em nosso relacionamento com Cristo e com Deus pelo Espirito, provocam a maior parte da incompreensdo, o que re- sulta no rétulo que os tedlogos reformados impéem aos wesleyanos e pentecostais, chamando-os de perfeccionistas, ou defensores da impecabilidade. Podemos ficar livres para amar a Deus de todo 0 coracao, pela fé, e para o continuo relacio- namento de graca e de amor correspondente. Ndo podemos fi- car livres da luta contra a corrupcado de nosso corpo nem da luta contra a corrupcaéo do mundo. Se a santificagdo inclui a luta contra a corrupcao do corpo, podemos ser plenamente santificados, conforme o sentido sustentado pela teologia da vida superior. Se compreendermos perfeicdo como a luta con- tra a corrup¢do do mundo, ela jamais se completara nesta vida. A liberdade para amar é o centro da perfei¢ao crista. A cor- rupcdo da “inclinagaéo para o pecado”, que sempre ameaca a obediéncia do crente antes de sua entrada na vida plena de amor sincero, é a tinica corrup¢ao de que a Palavra de Deus nos promete libertar nesta vida. Juntamente com Wesley, afir- mamos que qualquer doutrina de santificacdo que ofereca possibilidade inferior para a vida cristé normal, pela graga e pela fé, esta destituida do propdésito maior da redencdo do pecado que se encontra no centro do evangelho de Jesus Cristo e da vinda do Espirito Santo. Em resumo, Hoekema esta correto em afirmar que a perfei- ¢ao absoluta nao sera alcangada plenamente enquanto nao chegar “a vida vindoura” (p. 100). Se a questéo pendente for: “Podemos viver diariamente de forma tao perfeita a ponto de atingir a perfeicao absoluta na relacdo com Deus e com 0 pro- ximo em todas as nossas a¢ées?”, a resposta sera sem duvida Réplica wesleyana a Hoekema = 105 “nao”. Tao grande é o numero de pecados de omissao cometi- dos pela fraqueza do corpo, da mente e da natureza afetiva decaidos que temos de orar diariamente: “Perdoa as nossas dividas, assim como perdoamos aos nossos devedores”. A verdadeira questao acerca da santificacdo, entretanto, é se podemos ser libertados da inclinacao voluntaria a resistir a Deus e ao bem de forma que passemos a estar inclinados ao amor e a obediéncia no viver diario pela habitagao e pelo po- der purificador do Espirito Santo. O Espirito veio promover um coracdo obediente no povo de Deus a fim de que este faca a vontade dele e guarde seus estatutos (Ez 36.27). Essa distingéo sempre esteve no centro do conflito entre a perspectiva calvinista e a perspectiva wesleyana da santifica- cdo. E propria das diversas concepcoes sobre o relacionamento de Deus com o homem e sobre a eleicdo, a grac¢a preveniente e o livre-arbitrio. Para simplificar, pode-se dizer que os pon- tos em que os tedlogos se detém ao longo da linha de tensao que transp6e a lacuna entre a soberania divina e a genuina liberdade humana, dentro dos parametros delimitados por essa soberania, caracterizam a distingdo ténue que, quando desenvolvida mais extensamente, cria grandes cisdes entre nos. O fato de esses dois sistemas poderem recorrer as Escri- turas com grande apoio e integridade apenas demonstra a realidade da tensdo e pode ser, ele proprio, uma das maiores testemunhas da liberdade que Deus nos concede em face da intimidante realidade de seu senhorio absoluto. Réplica PENTECOSTAL a Horketa Stanvey M. Horton Apreciei muito a apresentacdéo que Anthony Hoekema fez da posic¢do reformada. Ele é claro quanto a distincdo entre santificagdo progressiva e santificacdo definitiva. Também salienta muito mais do que eu esperava a importancia de tratar a santificagéo progressiva como um processo de toda a vida. £ muito freqiiente no Meio-Oeste dos EUA ouvir dos mem- bros de igrejas calvinistas declaracées como: “E natural pecar um pouco todos os dias” ou “E melhor nado viver de forma muito santa para que ndo se comece a confiar em boas obras para a salvacéo” ou ainda “Uma vez que se esta salvo, pode-se viver em pecado grosseiro e mesmo assim ir para o céu de- pois da morte”. Essas afirmacées nao partem de tedlogos, e estou certo de que nenhuma dessas frases seria dita se 0 povo tivesse acesso ao ensino que Hoekema apresentou ao tratar da posi¢ao reformada. Aprecio também a definicdo inicial de santificagdo, no que se refere a “acdo graciosa do Espirito Santo” (p. 69), e a afirma- ¢ao posterior de que “pela fé recebemos o poder do Espirito Santo, que nos permite ter dominio sobre o pecado e viver para Deus [...] pelo Espirito, somos capazes de fazer morrer as mas ac6es da carne” (p. 74). E verdade que a Trindade esta envolvida na obra da santificacdo, fato que Hoekema apresen- ta de forma muito clara, embora muitas vezes deixe de lado a obra do Espirito. O NT reflete a compreensdo de que os cren- tes sabiam que necessitavam da ajuda constante do Espirito. Réplica pentecostal a Hoekema = 107 Infelizmente, boa parte da historia da igreja revela certa negli- géncia em relacdo a terceira pessoa da Trindade. Pouquissimos livros foram escritos sobre o Espirito entre os séculos XIII e XIX. Muitos dos autores de teologias sistematicas tinham bem pou- co que dizer sobre ele. Ha algumas décadas, era raro ouvir um sermao sobre o Espirito na maioria das denominagées. A situa- cdo é diferente hoje, em parte, creio eu, em virtude do teste- munho fiel do movimento pentecostal. Devo mencionar, entretanto, que a posi¢do reformada ain- da dispensa bem pouca atencao ao Espirito Santo em compa- ragao com outras posicées doutrinarias apresentadas neste livro. Hoekema o menciona em apenas duas ou trés ocasides e de forma breve. Ele dedica muito mais atencdo a posicaéo da lei e afirma que os crentes guiados pelo Espirito fazem o me- Ihor que podem para obedecer a lei de Deus. Essa opiniao pode levar alguém a supor que deve seguir a lei a risca. Em vez disso, o Espirito Santo da ao crente auxilio e poder para viver de modo agradavel a Deus, da forma que ele desejava ver em Israel quando revelou a lei. O principal significado de lei é “instrugdo”, e precisamos do Espirito Santo para esclare- cer as instrugées do AT a luz do NT. Concordo, entretanto, que 0 conflito de Romanos é entre lei e pecado, e nao entre lei e graca, pois o amor é de fato o cumprimento da lei. Acredito, porém, que “estéo destituidos da gloria de Deus” é apenas uma parte do que Romanos 3.23 significa. A gloria de Deus é a medida plena do que Deus é em toda a sua san- tidade, justica, misericérdia, graca e amor. O pecado, no sentido de deixar de atingir o alvo ou desviar-se para um lado ou ou- tro, ainda nos mantém privados da gloria de Deus nesta vida, fato que comprovamos a medida que nos aproximamos mais do Senhor. Mas o Espirito sem duvida nos ajuda na quest&éo de glorificar a Deus. O que observo nas igrejas pentecostais é que o Espirito traz um desejo novo de louvar a Deus e glorifi- car a Jesus tanto no culto quanto na vida diaria. Embora ainda estejamos aquém, perseveramos. Discordamos, sem duvida, na questao da eleicao. A eleicéo de Israel, bem como passagens do NT e diversas adverténcias da Biblia, revela que a eleic¢do se refere ao corpo e ocorre para cumprir os propésitos de Deus, e ndo se trata da eleicao de individuos. Mesmo um filho do Reino pode ser expulso. Robert Shank, um batista, no livro Elect in the Son [Eleito no Filho] 108 = 5 perspectivas sobre a santificagao (Springfield, Westcott, 1970), apresenta provas dessa perspec- tiva, um ponto de vista que muitos pentecostais aceitariam. A argumentacéo de Hoekema sobre a questdo do perfec- cionismo é excelente, como também o é em relacao ao propési- to imediato e final da santificacdo. Na verdade, a maioria das Assembléias de Deus concordaria mais que discordaria a res- peito do que Hoekema diz sobre santificagaéo. Mas dariamos mais aten¢ao ao auxilio do Espirito Santo e ao batismo com o Espirito como a experiéncia de revestimento de poder dispo- nivel ainda hoje. Replica de KESWICK a Horxena J. Roperrson McQuitkin Concordo substancialmente com os pontos principais enun- ciados por Anthony Hoekema. A posicado reformada sobre santificagao é exposta com clareza, vigor e, no geral, com uma exegese biblica cuidadosa. Gostaria, entretanto, de que ele ti- vesse feito uma distingdo mais clara entre a santificacéo empirica, isto é, experimentada pelo sujeito, e a objetiva ou posicional. Gostaria também de que tivesse definido teologi- camente o “velho homem” e o “novo homem” e explicado a natureza da continuidade entre o velho e 0 novo na mesma pessoa. Mas essas questées nao fazem parte da esséncia de sua argumentacao. O problema, portanto, nao é o que foi dito, mas o que nao foi dito. E, para o sucesso pratico na vida crista, essa omissao pode ser importante. Existe uma diferenca substancial entre os cristéos, ou estariam todos mais ou menos num processo continuo de regeneracao até a glorificagaéo, diferindo apenas no estdgio de crescimento no tocante 4 imagem restaurada? Se @ possivel haver um crente agindo a4 maneira de um nao- convertido, deixando de demonstrar coerentemente o fruto do Espirito, sendo fraco e insatisfatério espiritualmente, en- tao nada aprendemos sobre a exposi¢aéo de Hoekema. Pedro e Paulo identificam claramente essa espécie de cren- te e ndo apresentam essa condi¢éo como normativa nem acei- tavel. A doutrina reformada nao pode dar lugar 4 proposta wesleyana ou a pentecostal para resolver 0 problema. Mas sera N10 = 5 perspectivas sobre santificagao que os tedlogos reformados nao deveriam buscar uma solu- ¢4o alternativa, mais biblica e eficaz? No entanto, muitos ted- logos reformados ignoram o problema do crente derrotado e até mesmo a existéncia dessa classe de cristaéos. Uma vez que nem ao menos se reconheceu a condi¢do do cristéo que, por ignorancia, incredulidade ou desobediéncia, nao esta viven- do sob 0 controle e a influéncia do Espirito Santo, a segunda grande omissdo é nao apresentar nenhuma solucdo para o problema. Se tanto a Biblia quanto a experiéncia cristé atestam que existe um tipo de vida inferior ao padraéo normal, e se muitas pes- soas piedosas e instruidas biblicamente testificam que ha so- lucéo para o problema (uma solucao oferecida pelas Escrituras e experimentada por cristaos), essa questao deve, ao menos, ser levantada. Se existe um tipo de vida assim e uma solucaéo para ela, trata-se de perda lamentavel deixar de anuncia-la. Em suma, devo dizer que nao ha nenhum conflito funda- mental entre a apresentacéo do ensino reformado sobre santificagéo e a concepcao de Keswick. No entanto, para os calvinistas que negam a existéncia de um estilo de vida inacei- tavel, qualitativamente distinto da vida experimentada por al- guns cristaos, um estilo que pode e deve ser corrigido pela renovagaéo do compromisso inicial de fé com Deus, na verdade existe um conflito. Réplica AGOSTINIANO- DISPENSACIONALISTA a Hoexeta Joun F. Watvoorp A apresentacao da posicao reformada que Hoekema fez sobre santificagdo ¢ um modelo de argumentacao teoldgica esclarecida e apresenta uma pesquisa admiravel da posicao reformada e da comparagdo com outras correntes teoldgicas. Com poucas excecdes, a perspectiva de Hoekema correspon- de a perspectiva agostiniano-dispensacionalista. A posi¢do reformada, portanto, interpreta corretamente a santificacao como ato definitivo, decisivo e irreversivel e como processo que continua por toda a vida, tendo seu climax no céu, com a santificagaéo completa dos crentes. Praticamente tudo em sua argumentacdo é muito Uti] na medida em que permite ao leitor compreender a revelacdo biblica acerca do tema da santificagao. Existem algumas pequenas variacdes surpreendentes em relacdo a perspectiva agostiniano-dispensacionalista, como também ha diferencas em relacéo a perspectiva reformada tradicional. Nesse ensaio, Hoekema nao delineia com clareza a existéncia da velha natureza e da nova natureza no cristao e volta para o conceito, tal como apresentado na NVI, do “velho homem” e “novo homem’”. Essa posicao reflete uma patente mudan¢a da perspectiva apresentada no artigo do Bulletin of the Theological Society [Boletim da Sociedade Teoldgica] (Pri- mavera de 1962), no qual ele reconhece o conceito da velha e da nova natureza nos individuos regenerados. Ha certa confusdo com as expressGes “velho homem" e “novo homem” em que Hoekema compara a perspectiva de {12 = 5 perspectivas sobrea santificacao John Murray (por ele adotada) e a posicao calvinista mais an- tiga apresentada por Hodge. O problema pode ser resolvido caso se entenda que “velho homem” e “novo homem” nao séo referéncias 4 velha e 4 nova natureza, mas, em vez disso, ao estilo de vida antigo, manifestacaéo da velha natureza, e ao estilo de vida novo, manifestagdo da nova natureza. A tradu- ¢do da NVI de “velho homem” e “novo homem” em Colossenses 3.9 deve ser questionada. Como o contexto subseqtiente des- se versiculo indica, Paulo se refere 4 nossa maneira de viver depois da salvagao, e nao 4 nossa natureza essencial. Quando trata dos mandamentos, Hoekema da a entender que os cristdéos estaéo sob a lei dos Dez Mandamentos (é preci- so notar que nove dos dez mandamentos sao repetidos no NT como aplicaveis aos crentes; 0 nico omitido diz respeito a guarda do sabado). A palavra /ei (gr. nomos) tem diferentes usos no NT e nao necessariamente se refere ao Decdlogo. Em geral, entretanto, todos concordam que os cristéos estéo sob a lei moral, como é exposto claramente no NT. Ao mesmo tem- po que a lei moral condena, ela também demonstra a santida- de de Deus e fornece um padrao para a vida crista. Uma variacéo surpreendente de Hoekema é a declaragado na nota de rodapé (n. 25, p. 263), de que ele considera Romanos 7.13-25 um retrato da pessoa nao-regenerada. Essa posicao é contraria ao ensino calvinista histérico originado em Agosti- nho. E impossivel provar que o descrente tenha duas nature- zas interiores conflitantes entre si. E preferivel a posicao refor- mada tradicional de que essa luta ocorre no intimo do individuo regenerado. Estranhamente Hoekema omite qualquer refer€ncia ou dis- cussao com respeito ao enchimento do Espirito e ao batismo com o Espirito. Na concep¢ado agostiniano-dispensacionalista, o enchimento do Espirito é o segredo da santificacao. Esse en- chimento se obtém pela confisséo de pecados, pela entrega a Deus e pela apropriagao da provisdo divina de caminhar junto ao Espirito. A luta dos individuos regenerados para alcancar a santificacdo é mais bem esclarecida quando se explica o pro- cesso de encher-se do Espirito. Vista como um todo, a apresen- tacéo de Hoekema é notavel em virtude de sua clareza e do tratamento abrangente, Em diversos aspectos, ele apresenta a doutrina da santificagéo de uma forma Utl ao leitor. t A A perspectiva EYANA ADA ANTHONY A. HOEKEMA 3 A perspectiva PENTECOSTAL STANLEY M. HORTON 4 A perspectiva de A perspectiva AGOSTINIANO-DISPE JOHN FE WALVOORD SACIONALISTA A perspectiva PENTECOSTAL STANLEY M. HORTON RAIZES DO MOVIMENTO PENTECOSTAL O movimento pentecostal atual teve inicio no Bethel Bible College de Topeka, Estado de Kansas, nos Estados Unidos, em 1°. de janeiro de 1901. Ali, um grupo de alunos que estudava as Escrituras chegou a conclusdo de que falar em linguas, como registra Atos 2.4, é a evidéncia externa inicial de que uma pessoa foi batizada no Espirito Santo, uma experiéncia de revestimento de poder para o servi¢o cristéo.! O reaviva- mento espalhou-se do Missouri até o Texas, mas nao apresen- tou grandes resultados de inicio. Depois disso, em 1906, W. J. Seymour, um pregador negro, adepto do movimento holiness, acolheu essa doutrina no Te- xas, encontrou apoio entre outros do mesmo movimento e foi convidado para ir a Califérnia. Em pouco tempo, Seymour uniu-se a antiga Igreja Metodista da Rua Azusa, n°. 312, em Los Angeles. Esse lugar transformou-se num centro onde bran- cos e negros se congregavam. Logo as pessoas comecaram a chegar de toda a parte dos EUA e do Canada, até de outros paises.? Seymour evitava chamar a atencdo para si, e os cultos eram marcados por louvor e adora¢ao a Jesus. A partir dai surgiram inimeras igrejas pentecostais. Em 1906, meu avé, Elmer K. Fisher, influenciado por Reuben A. Torrey no Instituto Biblico Moody, em Chicago, era pastor da Primeira Igreja Batista de Glendale, California. Depois de orar muito, iniciou uma série de sermGes sobre o Espirito Santo como a fonte de poder espiritual. Entéo os diaconos o procuraram 116 = Sperspectvassobrea santifcacao para dizer que ele podia pregar sobre encorajamento ou sobre Daniel, mas que eles nao gostavam do entusiasmo que os ser- mées sobre o Espirito Santo estavam provocando. Em conse- qtiéncia disso, meu avé abandonou o pastorado daquela igreja. Pouco antes desse incidente, o dr. Smale, pastor da Primei- ra Igreja Batista de Los Angeles, retornou de uma visita das reunides de reavivamento de Evan Roberts, no Pais de Gales. Seu coracdéo estava tomado pelo desejo de ver um reaviva- mento semelhante em sua propria igreja. Encontrando resis- téncia, porém, deixou a igreja e, com alguns didconos, iniciou a Igreja do NT na regiao central de Los Angeles. Meu avé jun- tou-se a ele. No domingo de Pascoa, a sra. Seymour e outros foram a Igreja do Novo Testamento e relataram que o Espirito Santo estava sendo derramado na Missdo da Rua Azusa exatamente como no Pentecoste (At 2.4). Imediatamente, uma grande quan- tidade de pessoas, entre elas meu avd, reconheceu esse relato e recebeu o batismo pentecostal com o Espirito Santo. Em seguida, ele e minha avo foram a Missao da Rua Azusa. Quando minha av6 ouviu e viu o que estava acontecendo, disse: “Eu também experimentei isso". As pessoas reagiram dizendo: “Vocé nao pode, vocé é batista”. Por causa do con- texto wesleyano holiness, ensinava-se na Missdo que era ne- cessdrio ter a experiéncia da santificacéo primeiro, como pre- paracao para o recebimento do batismo com o Espirito Santo. A santificacéo, diziam, era “uma segunda obra definitiva de graca” que podia purificar os crentes do “pecado inato” e transforma-los em vasos puros, que por sua vez poderiam ser cheios pelo Espirito Santo. Minha avo, entretanto, filha do pro- fessor Heman Howes Sanford, da Universidade de Syracuse, havia tido uma experiéncia incomum por volta de 1880, quan- do falava a um grupo de mulheres batistas nas proximidades de Erie, Pensilvania. Sentindo uma un¢4o incomum do Espiri- to, comecou a falar em linguas que nunca aprendera antes. Em seguida, o Espirito Santo deu-lhe a explicacdo de que tudo o que falara eram versiculos que, juntos, compunham uma mensagem. Depois dessa experiéncia, quando estava sozinha e concentrada em oracdo, o Espirito Santo muitas vezes a edi- ficava e lhe trazia refrigério com essa lingua. Mas ela guardou a experiéncia em segredo sé para si e apenas a identificou com o livro de Atos quando foi 4 Misséo da Rua Azusa. Aperspectvapenteostal = {17 Nesse dia na missdo, minha avé nao quis discutir, mas co- mecou a orar por santificacao. Em poucos minutos, estava falando em linguas novamente, dessa vez em dinamarqués, como veio a saber por um visitante da Dinamarca. Minha mae também estava la e comecou a orar para ser santificada. Em menos de dez minutos, comecou a falar em linguas, mais es- pecificamente em francés, como atestou uma mulher que co- nhecia a lingua. Os primeiros pentecostais continuaram ensinando a santi- ficagéo como uma segunda obra definitiva da graca, crendo que o batismo com o Espirito Santo representava uma terceira experiéncia. Muitos, entretanto, especialmente os de forma- cdo reformada ou batista, tinham questionamentos biblicos acerca desse ensino. Outros, como minha mie, nao consegui- am distinguir uma segunda obra definida na sua prépria ex- periéncia. Em 1910, William H. Durham, um pregador de Chicago par- ticipante do movimento holiness, que também tinha rece- bido o batismo com o Espirito Santo, comecou a pregar 0 que chamou de “a obra completa do Calvario”. Durham ensinava que a fé que justifica o individuo o leva até Cristo. Em Cristo, o crente torna-se completo no que diz respeito a santificacao e em tudo o que faz parte da salvacdo ou com ela se relaciona. A experiéncia da conversdo inclui a purificagao que Cristo opera na alma a fim de que o crente se torne “nova criacdo” e nado necessite mais de nenhuma obra posterior da graca para a santificacao. O crente deve apenas permanecer em Cristo, re- ceber o Espirito Santo e andar junto a ele, e crescer na graca e no conhecimento de Deus e de Cristo. A natureza pecamino- sa, entretanto, nado é removida, mas esta crucificada com Cris- to, cuja justica nos é imputada. Contanto que se mantenha um relacionamento de fé com Cristo, essa justica produzira frutos na pratica, no dia-a-dia. Quando pecam, as pessoas demonstram que a relacdo com Cristo foi violada e a velha e pecaminosa natureza venceu e precisa ser crucificada pela fé. Durham também insistiu em que se deve crescer na graca a fim de aperfeicoar a obra interior permanecendo em Cristo, para “desejar o genuino leite da Palavra” e ter progresso em diregdo a maturidade. Durham, um cativante pregador, influenciou milhares na regido de Chicago. Depois disso, em 1911, decidiu ir para Los M18 5 perspectivas sobre a santificagéo Angeles. Nesse meio tempo, Fisher, meu avd, tinha fundado a que era entéo a maior igreja pentecostal da cidade, denomi- nada Missdo do Cenaculo, e comecou a crer numa segunda obra definitiva da graca, simplesmente porque esses ensina- mentos foram apresentados na rua Azusa. A principio, ele convidou Durham para pregar em sua igreja mas, quando ouviu o que Durham estava pregando, cancelou os cultos. Durham foi entdéo 4 Missdéo da Rua Azusa, onde centenas de pessoas se reuniram para ouvi-lo. Mas, quando Seymour re- tornou de uma campanha evangelistica, nado o deixou ficar, o que levou Durham a abrir uma igreja em Los Angeles. Os ensinamentos de Durham acarretaram imediatamente uma acirrada polémica. Charles Parham, um pregador pente- costal adepto do movimento holiness, que muito fizera para popularizar o movimento nascente, orou para que Deus ti- rasse a vida de Durham se a doutrina da segunda obra defini- tiva da graca fosse verdade. De fato, Durham morreu seis meses depois, fato que Parham considerou uma defesa da doutrina da santidade. A morte de Durham, entretanto, nado fez diminuir a controvérsia. E£ verdade que, em boa parte, 0 ensino da Misséo da Rua Azusa tinha preparado as pessoas para aceitar a mensagem de Durham. Ainda que os pentecostais adeptos do movimen- to holiness geralmente retratassem a santificacaéo em termos de Espirito Santo, na rua Azusa havia muita énfase na obra de Cristo e muita exaltacdéo do sangue de Cristo e da cruz. Embo- ra estimulassem os crentes a deixar-se encher do Espirito e a evidenciar 0 enchimento pelo ato de falar em linguas diferen- tes, a adoracdo se concentrava notadamente em Cristo. Nao foi dificil, portanto, aceitar a argumentacao de Durham de que a fé deve apoiar-se antes em Cristo que na experiéncia da san- tificagado. Os pentecostais holiness, entretanto, reconheceram cor- retamente que boa parte do ensino de Durham era pareci- do com o do Conde Nicolaos von Zinzendorf que, por sua vez, ensinava que a perfeicdo cristé é imputada e acontece pela fé no sangue de Cristo, de modo que, no momento em que a pessoa é justificada, a santificagdo é completa. Confiavam plenamente nos argumentos de Wesley contra posicées semelhantes as de Zinzendorf para refutar o en- sino de Durham. Aperspectiva pentecostal = 119 Havia extremos em ambos os lados. Alguns pentecostais holiness, por um lado, declaravam que, na converséo, Deus perdoava aos pecadores, mas os deixava tao cheios de pecado e corrupcaéo que era necessaria “uma segunda acdo da graca” para evitar que fossem para o inferno. Por outro lado, alguns seguidores dos ensinos de Durham pregavam que, uma vez que a obra de Cristo se cumpriu plenamente na cruz, torna-se completa e perfeita em nds no momento em que cremos e as- sim nos tornamos imediata e totalmente justos e seguros nes- sa condicdo, independentemente de quanto venhamos a pe- car. O proprio Durham, entretanto, foi cuidadoso em salientar a cren¢a na santidade, na santificagdo e no crescimento na graga. Seus seguidores continuaram sustentando que a santi- ficagéo, como uma segunda obra definitiva da graca, nao re- conhecia corretamente o poder do sangue de Cristo.? O ensino de Durham cindiu o movimento pentecostal. A cisdo permanece até os dias de hoje. Os grupos de pentecos- tais holiness (como a Igreja de Deus de Cleveland, Tennessee, e a Igreja Pentecostal Holiness) ainda ensinam uma experiéncia critica de santificacéo como a segunda obra definitiva da graca, pré-requisito para o batismo com o Espirito Santo. Os grupos influenciados por Durham talvez exijam pureza de coracdo, mas em geral acreditam que a fé e a purificacdo do sangue de Cristo s&o os pré-requisitos para 0 batismo com o Espirito. As Assem- bléias de Deus, com mais de 15 milhdes de membros no mun- do, s4éo 0 maior grupo seguidor dessa corrente. AS ASSENBLEIAS DE DEUS E 0 DEBATE SOBRE SANTIFICACAO As Assembléias de Deus surgiram em conseqliéncia de uma convocacéo que Eudorus N. Bell fez na revista Word and Wit- ness [Palavra e testemunho] para uma conferéncia de crentes pentecostais, evento ocorrido em 1914 em Hot Springs, Arkan- sas.‘ Cerca de 300 pessoas estiveram presentes, e formou-se o Conselho Geral das Assembléias de Deus como “uma orga- nizagaéo voluntaria e cooperativa”. Por volta de 1918, fundou- se sua sede em Springfield, Missouri, local que ainda hoje abriga a sede internacional. Pouco tempo apés a fundacdo, entretanto, uma controvér- sia referente a natureza da Trindade fez com que algumas pessoas deixassem a recém-formada organizacgao. Os dissi- 120 = Sperspectivas sobre a santificagao dentes levaram a doutrina cristocéntrica ndo-wesleyana da “obra completa do Calvario” ao extremo. Concentraram todo 0 foco em Jesus e propuseram a “revelacdéo” do pensamento modalista da Trindade, que transformava Jesus na unica Pes- soa da divindade. Exigiam que os que haviam sido batizados em nome do Pai, do Filho e do Espirito fossem rebatizados em nome de Jesus somente, baseando-se no padrao apostdlico do livro de Atos. Propor que Jesus é “o nome” do Pai, do Filho e do Espirito em Mateus 28.19 passou a ser a marca do unita- rismo pentecostal, o conhecido movimento unitarista ou Je- sus Somente. Frank Ewart, seu principal expoente, argumen- tava que, uma vez que a plenitude da divindade habita corporalmente em Jesus (C] 2.9), ele deve ser a totalidade da divindade. Alguns seguidores de Ewart vieram até minha mae e disseram-Ihe que, se ela nado se “batizasse novamente no nome de Jesus”, perderia a salvacdo. Ela era uma pessoa sen- sivel, e sua primeira reacdo foi perguntar: “Como isso é possi- vel, ja que minha salvacdo é tao preciosa para mim?”. Depois disso, comecou a ficar irada com qualquer um que questio- nasse a obra de Cristo, o que a levou a assinalar: “Estou fican- do com raiva. Devo estar perdendo minha salvacao”. Entao foi rebatizada. Posteriormente, estudando sozinha as Escrituras, voltou a crer na Trindade e finalmente congregou-se a As- sembléia de Deus. Muitos, porém, mesmo alguns dos primei- ros lideres das Assembléias de Deus, foram levados ao reba- tismo com a motivacdo de glorificar a Cristo. Muitos destes, entretanto, também retornaram. A polémica acerca da unidade de Deus fez com que as As- sembléias de Deus adotassem a “Declaracéo de Verdades Fun- damentais”, com 16 itens, a fim de prover a base para uma unidade duradoura. Esse documento, adotado em 1916, deu atencao especifica 4 natureza da Trindade, declarando-a “Di- vindade digna de adoracado”, com trés pessoas distintas num unico Ser. Outras doutrinas foram apresentadas apenas de forma breve. O tépico nimero 9 dessa declaracdo foi denominado “San- tificacéo completa (ou plena)” e é exposto a seguir: As Sagradas Escrituras ensinam em suas paginas que 0 homem deve viver uma vida de santidade, sem a qual ninguém vera 0 Senhor. Mediante o poder outorgado pelo Espirito Santo, podere- Aperspectiva pentecostal » 121 mos obedecer ao mandamento que diz: “Sejam santos, porque eu sou santo”. Deus deseja que o crente experimente completa santi- ficacdo, a qual deve-se procurar seriamente mediante a obediéncia ao Senhor (Hebreus 12.14; 1Pedro 1.15,16; 1 Tessalonicenses 5.23, 24; Joao 2.6).5 Esta declaracéo apresenta a santificagdo como obra do Espi- rito Santo com coopera¢ao do crente. A expressdo santificagdo plena nao foi definida, talvez porque alguns ndo queriam des- cartar completamente a possibilidade da segunda obra defini- tiva, enquanto outros poderiam sustentar que ela se tornou “plena” na cruz. A declarac&o, entretanto, nado apresenta a san- tificagdo como objetivo a ser alcancgado. Os seguidores de Du- rham na época nao eram instruidos em teologia e pregavam um evangelho simples, cristocéntrico. A maior parte dos que se reuniram para formar as Assembléias de Deus concordava que nao havia segunda obra definitiva da gracga e que a santi- dade é importante. Por isso, tiveram poucos problemas ao adotar essa declaragao. Os primeiros materiais escritos e o material da escola do- minical das Assembléias de Deus (publicados por sua subsi- diaria, a Gospel Publishing House) continuaram enfatizando a santidade cristocéntrica e opondo-se a idéia da segunda obra definitiva da graca. A primeira vista, Myer Pearlman, o escri- tor mais influente das Assembléias de Deus, parece ser exce- cdo. Ele afirma: Em relacao a isso devemos reconhecer que o progresso na santi- ficagaéo muitas vezes implica uma crise na esperiéncia, quase tao definida como a da conversao. De forma ou de outra, 0 crente recebe uma revelacdo da santidade de Deus e da possibilidade de andar mais perto dele, e essa experiéncia é seguida por um conhecimento interior, a saber, de ainda ter alguma contamina¢ao (cf. Is 6). Ele chega a uma encruzilhada em sua experiéncia crista, na qual devera decidir se retrocede ou segue avante com Deus. Confessando seus fracassos passados, ele faz uma reconsagra¢ao e, como resultado, recebe um acréscimo novo de paz, alegria e vitéria, como também o testemunho de que Deus aceitou essa sua reconsagracdéo. Alguns chamam essa experiéncia de uma segunda obra da graca.® Pearlman, entretanto, esta simplesmente tentando ajudar as pessoas que vieram das igrejas holiness para as Assembléias (22 = Sperspectivas sobre a santificagao de Deus. Deseja que essas pessoas enxerguem que o que cha- mam de “segunda obra definitiva” pode bem ser uma experiéncia real, mas precisa ser reinterpretada a luz do que a Biblia ensina. Myer Pearlman também deixa patente sua rejei¢éo a qual- quer ensinamento que proponha a possibilidade de o indivi- duo ser “salvo ou justificado sem ser santificado”. Posterior- mente ela da a entender que outra explicacdo dessa experiéncia considerada a segunda obra definitiva da graca pode ser o despertamento dos crentes para a posi¢ao que eles ja tinham em Cristo. Em outras partes, Pearlman apresenta a erradica- cao do pecado inato como contraria as Escrituras e a experi- éncia crista.” Para ele fica claro que no existe lugar para uma experiéncia de santificagéo como a que ensinavam os pente- costais da virada do século XIX para o XX. Sua influéncia como professor de instituto biblico, escritor e palestrante de acam- pamentos foi sentida fortemente por toda a Assembléia de Deus. Nas igrejas locais, ressaltaram-se repetidamente dois as- pectos da santificacéo. Houve freqiientes apelos 4 consagra- Gao e a reconsagracao ao servi¢o e a adoragao do Senhor. Tam- bém se deu muita énfase a necessidade de separar-se do mundo. O texto predileto era: “Portanto, ‘saiam do meio deles e separem-se’, diz o Senhor. ‘Nao toquem em coisas impuras, e eu os receberei” (2Co 6.17). Em geral a interpretacao de “coi- sas impuras” incluja bebidas alcodlicas, cigarro, danca, 0 jogo de cartas, jogos de azar, teatro e principalmente cinema. Para as mulheres também incluia maquiagem, cabelos e roupas cur- tos. Em contextos mais regionais também se podiam incluir outras atividades ou atitudes (por exemplo, uma convencdo de que participei no norte da Califérnia no comeco dos anos 1930 acrescentava 4 lista circo e festas). A Segunda Guerra Mundial fez com que muitos se mudas- sem, grande parte em virtude das oportunidades de empre- go. Ocorreram algumas confusGes quando as pessoas come- garam a perceber que nem todas as igrejas mantinham exatamente os mesmos padrées de santidade exterior. Havia também a tendéncia perceptivel de afastar-se da chamada pregacao “da roupa” em direcaéo a uma énfase maior na devo- ¢do positiva a Deus e sua obra e na cooperacéo com Deus no que diz respeito a santificacao. Nessa época, entretanto, 0 su- perintendente geral das Assembléias de Deus, Ernest Swing Williams, escreveu: “Percebo que a fraqueza de nosso movi- Aperspectiva pentecostal = 123 mento no que concerne a pregacao da santificacéo é que essa doutrina é ensinada de forma téo vaga que muitos nao conse- guem obter um entendimento claro a ponto de pé-la em pra- tica na vida".§ Essa falta de clareza ainda se fazia sentir com respeito tan- to a santificacdéo quanto a outras secdes na “Declaracao de Ver- dades Fundamentais”. Os ministros e delegados do conselho geral votaram em sessdo indicar uma comissdo para elaborar uma proposta de revisdo. Todos nés que compunhamos a comissdo estavamos particularmente preocupados com 0 ponto 9, “Santificacaéo Plena”. Achavamos que a palavra plena era imprecisa, pois a empregavamos em sentido diferente do que o usado pelos pentecostais holiness, que ensinavam a se- gunda obra definitiva da graca. A declaracgdo revisada foi apresentada ao conselho geral das Assembléias de Deus reunido de 23 a 29 de agosto de 1961 em Portland, Oregon. Apés dois dias de debate, a deci- sao foi unanime: a palavra plena foi retirada do ponto 9. A secao intitula-se simplesmente “Santificagdo” e declara: Santificagado é 0 ato de separacao de tudo quanto é mal, e de dedicacio a Deus (Rm 12.1,2; 1Ts 5.23; Hb 13.12). As Escrituras ensinam que “sem santidade ninguém vera o Senhor” (Hb 12.14). Pelo poder do Espirito Santo somos aptos a obedecer ao manda- mento: “Sejam santos, porque eu sou santo” (1Pe 1.15,16). A santificacao realiza-se no crente mediante o reconhecimento da identidade com Cristo na morte e ressurreicao, mediante a con- sideracao diaria dessa uniao pela fé, e mediante a entrega continua de todos os talentos ao dominio do Espirito Santo (Rm 6.1-11,13; 8.1,2,13; GI 2.20; Fp 2.12; 1Pe 1.5).° As definicées dos primeiros autores das Assembléias de Deus revelam que essa declaracao revisada esta de acordo com o que foi ensinado. Myer Pearlman, num livro didatico usado por muitos dos primeiros institutos biblicos pentecostais, inclui na definigdo de santificagao 1) separagao do pecado e do mundo e 2) dedicagdo, ou consagragdo, 4 comunhdo e a obra de Deus por meio de Cristo. Ele considera os termos “san- tificado” e “santo” sinédnimos e acrescenta que “embora o sen- tido primordial de ‘santo’ seja separagdo para servic¢o, esse sentido inclui também a idéia de purificacgdo”.!° Reconhece que 124 = Sperspectivas sobre a santificacao a pureza também é uma condicaéo da santidade, mas nao é a santidade ou a santificagado em si, “que é primeiramente sepa- ragao e dedicacao”. O fundador do Southwestern Assemblies of God College, P. C. Nelson, afirma que a santificagdo exibe o fruto do relacio- namento correto com Deus numa vida separada do mundo pecaminoso e dedicada a Deus." Salienta que nao é suficiente separar-se do mal. A devocdo a obra de Deus é necessaria. E. S. Williams concorda com esse pensamento, porém da mais @nfase a separacdo, em que “o crente separa-se do mundo e do pecado, tornando-se puro por meio da obra expiatoria de Cristo e pelo poder do Espirito Santo”.!* Ele afirma posterior- mente que o proposito da santificagéo é “permitir que a alma viva acima do pecado, para Deus”. O superintendente geral das Assembléias de Deus em 1986, G. Raymond Carlson, con- corda. Ele afirma que “santificacéo implica duas grandes ver- dades. A primeira é a consagracaéo”, que para ele inclui a sepa- racdo do pecado e a dedicacdo a Deus. De acordo com Carlson a segunda verdade é a purificagao."? A lideranca das Assem- bléias de Deus, portanto, sustenta que a santificagado implica dedicacdo, pureza e capacitagéo para viver uma vida santa. Os primeiros autores das Assembléias de Deus também con- cordam que a santificacaéo é uma via de mao dupla. Por um lado, tem uma posi¢aéo determinada e instantanea; por outro, é pratica e progressiva. Nelson, Pearlman e Williams chamam atengao para a referéncia que Paulo faz aos crentes de Corinto, denominando-os santos e santificados em Cristo (1Co 1.2; 6.11). Apesar disso, ao mesmo tempo, eles estavam longe da perfei- ¢&0. Muitos ndéo andavam a altura do chamado recebido, e al- guns estavam abertamente envolvidos com o pecado. Nelson atenta para 1Corintios 6.11: “Mas vocés foram lava- dos, foram santificados, foram justificados no nome do Se- nhor Jesus Cristo e no Espirito de nosso Deus”. Também cita Hebreus 10.10 e 14 e prossegue: Quando cremos no Senhor Jesus Cristo e 0 aceitamos como Salvador, somos nele justificados pela fé, e nos apresentamos di- ante de Deus sem condenacdo alguma para a alma. Somos regene- rados, isto é, nascidos de novo por intermédio da operacao do Espirito Santo e da Palavra de Deus, e nos temos convertido em novas criaturas. Também somos separados do pecado, lavados e purificados pelo sangue de Jesus (1Jo 1.7) e por nossa propria Aperspectiva pentecostal « 125 vontade nos separamos para servir a Deus, e Cristo é agora nossa “justiga, santidade e redengao" (1Co 1.30). Pearlman salienta também que a santificacdo é, nesse sen- tido, simultanea a justificagao, e Williams afirma: “Todo o cren- te em Cristo é santificado posicionalmente quando aceita Cris- to. Isso é uma verdade que deve ser levada em conta por quem deseja viver de modo santo”.'5 Os autores citados anteriormente assinalam com mais vee- méncia que a santificacao @ uma obra progressiva. Ainda que todos os crentes sejam separados para Deus em Cristo, essa relacéo de separacdo apenas inicia 0 processo de vida pelo qual a santidade de Deus se realiza. Exige separacao diaria a medida que o crente procura conformar-se cada vez mais a imagem de Cristo. O fato de ser um processo, e néo um ato instantaneo, confirma-se também por textos como 2Corintios 3.18 (“E todos nds, que com a face descoberta contemplamos a gloria do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com gloria cada vez maior, a qual vem do Se- nhor, que é o Espirito”). Além disso, Pedro nos exorta: “Crescam, porém, na graca e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 3.18), Hebreus 12 indica que esse processo pode envolver muitas experiéncias, inclusive disciplina e castigo. Por isso, comenta que essa disciplina nao serve apenas para nosso bem, mas principalmente “para que participemos da sua santida- de” (v. 10). Pearlman salienta, sobre esse assunto, que “isso nao quer dizer que crescemos em santificagao, e sim que pro- gredimos na santificacao da qual ja participamos”.!® Como diz Hebreus 12.14; “Esforcem-se para [...] serem santos; sem san- tidade ninguém vera o Senhor". Esses primeiros autores das Assembléias de Deus também concordam que santificacaéo implica crucificar “a carne, com as suas paixGes e os seus de- sejos” (Gl 5.24) e ao mesmo tempo receber a “vivificante graca de Deus que produz o fruto de justica”. Também reconhecem que, “quando alguém se aparta da santidade e comega a an- dar na carne, perde a santificacdo”.!” A SANTIFICAGAO NO ENSINO DAS ASSEMBLEIAS DE DEUS Com essa historia em mente, podemos agora tratar do que as Assembléias de Deus ensinam atualmente sobre santifica- 126 = S perspectivas sobre. santificacao cdo. Os escritores da atualidade revelam ter sido influencia- dos pelos da primeira geracdo e referem-se muitas vezes a eles. Existe continuidade na teologia, mas em alguns casos houve mudangas na aplicacdo e pratica. Os autores ainda in- cluem na santificagdo o aspecto instantaneo e o progressivo, além de falarem de santificagdo plena. Em algumas igrejas lo- cais, entretanto, ndo ha mais tanta énfase nos aspectos exter- nos da santidade nem nos modelos herdados do movimento holiness do século XIX. Santificagao instantanea O primeiro aspecto é apresentado de forma simples por Ralph W. Harris, primeiro redator de literatura para a escola biblica das Assembléias de Deus e organizador da Complete Biblical Library [Biblioteca Biblica Completa]. Harris afirma que “a santificagaéo é instantanea; no momento em que a pes- soa confia em Cristo, 6 separada do pecado e para Deus”.'* Em meu material para professores de adultos na escola do- minical, da Assemblies of God Publishing House, tenho fala- do constantemente que somos santificados, ou feitos san- tos, pela fé em Cristo. Discutindo a questéo “Quem s4o os santos hoje?”, escrevo: Existe um aspecto progressivo da santificacdéo mediante o qual crescemos na graca (2Pe 1.4-8; 3.18). Mas também existe um aspec- to instantaneo da santificagéo mediante o qual, no momento em que nascemos de novo, somos separados do mundo para seguir a Jesus, e somos santos neste sentido. Infelizmente, algumas igre- jas muito formais tém colocado algumas pessoas no pedestal e as chamam santas. O NT, porém, chama todos os crentes de santos, mesmo os que estao longe da perfeicao. Se de fato somos cristaos, somos consagrados e dedicados a seguir a Jesus. Todos sao santos se levados para a direcdo certa, mesmo que tenham apenas comec¢a- doa seguir o caminho. £ triste que a palavra santo tenha sido distor- cida pelos que a empregam como um titulo para seus herdis.!* Reconhecemos também que o batismo nas aguas declara a unido com Cristo na morte e ressurrei¢ado. “Nele também vocés foram circuncidados [em sinal da alianca e promessa], nado com uma circuncisdo feita por maos humanas, mas com a circunci- Aperspectiva pentecostal = 127 sao feita por Cristo, que € 0 despojar do corpo da carne. Isso aconteceu quando vocés foram sepultados com ele no batis- mo, e com ele foram ressuscitados mediante a fé no poder [ou operacdo] de Deus que o ressuscitou dentre os mortos.” (Cl 2.11,12). Dessa forma, Paulo testemunha: “Fui crucificado com Cristo. Assim, j4 nado sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20; cf. Ef 2.4-6). Somos, portanto, unidos com Cristo num novo tipo de vida para Deus. Essa nova vida so é possivel pela obra de Cristo e a uniado com ele. “E, porém, por iniciativa dele que vocés es- tao em Cristo Jesus, o qual se tornou sabedoria de Deus para nos, isto é, justica, santidade [santificagéo — ARA] e reden- cao” (1Co 1.30, referéncia usada na “Declaracdo de Verdades Fundamentais”). Com base nesses versiculos, esta claro que a vida de santi- dade é possivel para nés apenas por causa da obra de Cristo e que a santificacao inicial, ou posicional, é necessdria para co- mecarmos a viver de forma santa. Como afirma Hebreus 10.10: “Pelo cumprimento dessa vontade [a vontade de Deus reali- zada por Cristo] fomos santificados [feitos santos], por meio do sacrificio do corpo de Jesus Cristo, oferecido uma vez por todas”. Isto é, a vontade e propésito de Deus mediante o sa- crificio de Cristo era e é a nossa santificacdo, e ndo apenas nossa redengao. Pelo sacrificio de Cristo, pecadores entram num relacionamento perfeito com Deus. Somos santificados, dedicados, consagrados, separados por Deus para sua adora- cdo e seu servico. Ao andar com Cristo na fé, passamos a ser participantes dos frutos de sua obediéncia. Somos libertados para fazer a vontade de Deus. A cruz é, portanto, o segredo para a santificacgaéo posicio- nal. Temos essa posicao em virtude do que Cristo fez. Os au- tores das Assembléias de Deus falam ainda na “obra completa no Calvario”.?° Sem reconhecer a obra completa de Cristo, nao podemos entender corretamente a obra progressiva da santi- ficagéo em nossa vida. Santificagéo progressiva A necessidade da santificagéo progressiva é indicada quan- do Paulo se refere aos corintios néo como espirituais, mas 128 = 5 perspectivas sobre santificagao “como a carnais [conseqiiéncia da fraqueza humana, munda- na], como a criangas em Cristo” (1Co 3.1). Ou seja, o estado deles nao estava a altura da posicdo que tinham em Cristo. O apostolo também os adverte de que, se permanecerem na Car- ne, a carnalidade seria julgada, e eles sofreriam prejuizo no julgamento (1Co 3.13,14). Esse ensino se harmoniza com a exortacdo de Paulo quanto “a vontade de Deus é que vocés sejam santificados [...] Cada um saiba controlar o seu proprio corpo” (1Ts 4.3,4), Estamos mortos para 0 pecado por meio da identificagao com Cristo (CI 3.3). Mas isso nao é suficiente. “Vocés”, diz Paulo, tm a responsabilidade de fazer “morrer tudo o que pertence a natureza terrena de vocés: imoralidade sexual, impureza, paixdo, desejos maus e a ganancia, que é idolatria [...] as quais vocés praticaram no passado, quando costumavam viver nelas. Mas agora, abandonem todas estas coisas: ira, indignacaéo, maldade, maledicéncia e linguagem indecente no falar. Nao mintam uns aos outros, visto que vo- cés ja se despiram do velho homem com suas praticas e se revestiram do novo, o qual esta sendo renovado em conheci- mento, a imagem do seu Criador” (C] 3.5-10). Como se lé em Efésios, eles foram “ensinados a despir-se do velho homem, que se corrompe por desejos enganosos, a serem renovados no modo de pensar e a revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a Deus em justiga e em santidade prove- nientes da verdade” (Ef 4.22-24). Esses versiculos nao significam que toda a responsabilida- de de obter a santificagdo progressiva esteja no crente. Temos nossa parte, mas Deus também tem a dele. Ele indicou os mei- os para prover tanto a santificagdo externa quanto a interna na vida cotidiana. Esses meios sao: 0 sangue de Cristo, o Espirito Santo e a Palavra inspirada de Deus, os 66 livros da Biblia. O sangue de Cristo é eficaz para nos conceder a santifica- ¢ao posicional, na qual somos santificados com Cristo (Hb 2.10,11). Mas também existe um aspecto continuo, pelo qual © sangue de Cristo continua purificando-nos e santificando. “Se, porém, andarmos [continuarmos a andar] na luz, como ele esta na luz, temos [continuamos tendo] comunhao uns com os outros [entre Deus e nds], e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7). Ao que parece, alguns nao entendiam essa provisdo para a purificagdo continua pelo sangue de Cristo, pois Joao prosse- Aperspectiva pentecostal = 129 gue, dizendo: “Se afirmarmos que nao temos cometido peca- do, fazemos de Deus um mentiroso, e a sua palavra nado esta em nds” (v. 10). A expressdo “temos cometido pecado” esta no tempo perfeito em grego, que normalmente se refere a uma acdo ou acontecimento no passado com efeitos continuos no presente. Em outras palavras, se dissermos que experimenta- mos uma santificagdo que nos da garantia de nao mais pecar na vida ou de nao poder mais pecar, entéo estamos fazendo de Deus um mentiroso e nado damos importancia a sua Palavra na vida cotidiana. Nesse caso, estamos dizendo que nao necessi- tamos da purificacgéo continua do sangue de Cristo. Mas Deus acabou de dizer em 1Jodo 1.7 que necessitamos de purificagaéo continua, por isso o fazemos de mentiroso. Além disso, a Bi- blia esta repleta de exortacdes que nos ajudam a vencer 0 peca- do. Entretanto, se dissermos que nao pecamos ou que nao mais podemos pecar, estamos dizendo que nao precisamos prestar atencdo a Palavra de Deus nem pé-la no lugar que ela merece em nossa vida. As mesmas conclusdées aplicam-se aos que dizem que, em virtude de termos a santificagaéo posicional absoluta por meio do sangue vertido na cruz, néo necessitamos da puri- ficagéo continua do sangue de Cristo. Na verdade, quanto mais perto andarmos do Senhor, mais tomaremos consciéncia da necessidade de purificacdo conti- nua e do lavar purificador do sangue de Cristo. Quando Isaias teve a visdo da gloria e santidade de Deus, imediatamente to- mou consciéncia de sua propria necessidade de purificagdo (Is 6.5). Mas, “se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiga” (1Jo 1.9). Cristo, por meio do sangue de seu sacrifi- cio eterno, remove todas as barreiras que impedem nossa co- munhao com ele. A santificagéo progressiva deve envolver a pessoa como um todo. Mas a Biblia ensina que as provas e os efeitos exter- nos da santificacdo devem ser conseqUiéncia da obra interior. O Espirito Santo é o agente, e sua obra é 0 meio mais impor- tante da santificacdo progressiva. O Espirito, conforme afir- ma E. S. Williams, faz a obra “na alma, fortalecendo os atribu- tos santos que nascem no homem por causa da regeneracéo e levando ao crescimento. Embora Deus empregue meios e se espere que o homem coopere com ele, a santificagao é obra de Deus” (1Ts 5.23; Hb 13.20,21).! 130 = 5 perspectivas sobrea santificagao O Espirito Santo esta envolvido na obra inicial da santifica- go, como se depreende de 1Corintios 6.11: “Assim foram al- guns de vocés. Mas vocés foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espi- tito de nosso Deus”. Novamente, 2Tessalonicenses 2.13 fala de salvacdo (provavelmente significando nossa salvacéo ou heranca futura) “mediante a obra santificadora do Espirito e a fé na verdade”. Romanos 15.16 e 1Pedro 1.1,2 também tratam da obra de santificacéo do Espirito. Essas passagens indicam que ha progresso na santificagéo por meio do Espirito Santo. No meu livro What Bible Says About the Holy Spirit [O que a Biblia diz sobre o Espirito Santo], assinalo que: O Espirito Santo também é testemunha de que Deus aceitou 0 sacrificio de Cristo e “aperfeicoou [tem aperfeicoado] para sempre os que est&o sendo santificados" (Hb 10.14). Isto se confirma pos- teriormente pela profecia de Jeremias (Hb 10.16; Jr 31.33), embora o proprio Jeremias néo tenha mencionado 0 Espirito Santo. Nesse contexto, 0 “aperfeigoamento” foi levado a cabo no sacrificio de Cristo no Calvario. “Para sempre” significa tanto continuamente quanto por todo o tempo e refere-se ao fato de que o sacrificio de Cristo se realizou de “uma vez por todas” (Hb 9.28). “Santificados” [est&o sendo santificados] é uma forma continua do verbo, “os que estao sendo santificados [feitos santos] ou consagrados, dedica- dos a Deus e€ a seu servico".?? O Espirito Santo, por cujo intermédio recebemos a santifi- cagdo, ou consagracdo (1Pe 1.2), também nos capacita a coo- perar com essa obra pela purificagdo da alma em obediéncia a verdade, o que resulta em amor fraternal e sincero (1Pe 1.22). Isso pode envolver a participacdo nos sofrimentos de Cristo. Mas, se somos insultados por causa do nome de Deus, somos feli- zes pois o Espirito da gloria e de Deus repousa sobre nos (1Pe 4,14), Na natureza [no reino natural], a autopreservacao é a primei- ra lei que rege a natureza humana. O mundo enfatiza o interesse proprio, cuidar-se em primeiro lugar. A competi¢ao gera o desejo de dominar os outros e tornar-se tirano, Mas Jesus esteve entre nds como servo de todos. O maior entre nés deve ser servo (escravo) de todos (Lc 22.27; Mt 20.25-28; 23.11). $6 nos é possivel vencer a inclinacao natural pelo poder do Espirito, na medida em que Cristo vive em nds e sua natureza é em nds formada. Desse modo, a medi- Aperspectiva pentecostal = 131 da da graca de Deus torna possivel até morrermos pelo Senhor. Que enorme contraste entre a morte de Estévao e a de Herodes Agripa! Estévao, cheio do Espirito Santo, vislumbrou o céu, viu a gloria de Deus e foi capaz de perdoar a seus algozes (At 7.55-60). Herodes, agindo por auto-exalta¢ao, trouxe para si a gloria que pertenciaa Deus e morreu em agonia sob 0 juizo de Deus (At 12.21-23).% A obra do Espirito na santificagaéo, portanto, produz cres- cimento em graca e efetua o desenvolvimento do fruto do Espirito. Esse processo foi e é possivel por meio de Cristo, que nos santificou por seu sangue (Hb 13.12). Mas ela se tor- nou individual para nés pelo Espirito Santo, que nos santifi- cou separando-nos do mal e dedicando-nos a Deus quando nos deu nova vida e nos colocou no corpo de Cristo (1Co 6.11; 12.13). Paulo, porém, ora para que o aspecto inicial da santifi- cacao prossiga 4 medida que Deus nos santifica inteiramente, completamente (1Ts 5.23). Devemos cooperar com o Espirito Santo nessa obra pela apresentagdo de nosso ser a Deus (Rm 12.1,2), pela busca do auxilio do Espirito Santo 4 medida que perseguimos a santi- dade, dedicando-nos a Deus em relacionamento justo com ele e com os outros, pois sem santidade ninguém vera o Se- nhor (Hb 12.14). Essa santidade é semelhante a de Deus, a qual o Espirito Santo nos ajuda a alcancar (1Pe 1.15,16), De fato, a obra do Espirito que recebe decisivamente mais atencdo no NT é a da santificagao. Tem precedéncia sobre o testemunho, a evangelizacao, a con- tribuicdo e todas as outras formas de servico cristao. Deus quer que sejamos algo, nado que facamos algo, Somente quando nos tornamos semelhantes a Jesus podemos ser eficazes € aptos a dar gléria a Deus. A adoracao também, guiada e motivada pelo Espirito em todos 0s aspectos, incentiva-nos a santificagao.”4 O terceiro meio de santificacdo é a Palavra de Deus. Na ora- ¢ao sacerdotal em favor dos discipulos, Jesus roga: “Santifi- ca-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17). Esse instrumento nao esta desvinculado da obra do Espirito Santo nem é adicional a ela. A espada do Espirito é a Palavra de Deus (Ef 6.17). Com efeito, a Palavra é sua principal ferramenta e ele a usa para cumprir a obra na vida e no coragado das pessoas. As pessoas que ele usa s&o seus agentes voluntarios, mas o meio pelo qual realiza a obra é a Palavra. 132.» Sperspectvas sobre santiticagdo A Palavra é de fato eficaz somente quando se faz viva por meio do Espirito Santo. Paulo diz: “Ele nos capacitou [qualifi- cou, e portanto nos tornou eficientes] para sermos ministros de uma nova alianca, nado da letra, mas do Espirito; pois a letra mata [e traz condenacao], mas o Espirito vivifica” (2Co 3.6). Ele prossegue, mostrando que esse ministério € muito mais glorioso do que aquele que fez brilhar o rosto de Moisés. Moisés escondeu aquela gloria usando um véu sobre a face. Mas, como Paulo assinala adiante, outro tipo de véu estava sobre a mente dos judeus incrédulos de seus dias, e os impe- dia de ver uma gloria maior: a gloria de Cristo. Enquanto os judeus nao se voltam para o Senhor, esse véu nao lhes é¢ retira- do da mente. Mas, quando isso ocorre, o Senhor que véem nao é€ 0 mesmo que Moisés viu. Por outro lado, também 6€, pois 0 Senhor que véem é Cristo revelado por meio do Espirito. Onde 0 Espirito do Senhor esta, portanto, 0 véu foi retirado e ha liberdade da escravidao da Lei, que Ihes encobre a mente com um. véu (v. th. Jo 8.31,32). Entaéo, nds todos, judeus e gentios, coma face descoberta [sem véu] contemplamos pelo Espirito a gloria do Senhor [...] Enquanto continuamos contemplando a gloria do Se- nhor, mesmo que por espelho (imperfeito, por isso o enxergamos de forma imperfeita, nao por nenhuma falha do Espirito, mas por nossa incapacidade), somos transformados de gloria em gloria (de um nivel de gloria para outro) assim como por meio do Espirito do Senhor (2Co 3.18). Ou seja, Moisés foi o Gnico que contemplou a gloria no Sinai. Logo, ele teve essa experiéncia tinica e teve de encobrir a gléria. Mas, por meio do Espirito, o Cristo glorificado, nosso mediador que esta a direita de Deus, é-nos continuamente revelado (2 Co 3.18) e continuamos sendo transformados.*> Dessa forma, Deus enxerga nosso potencial de melhora e, por meio do Espirito e da Palavra, faz proviso para que 0 realizemos. O propdsito de Deus na santificagaéo é levar-nos 4 maturi- dade, nao (pelo menos nesta vida) a perfeicao final, absoluta. Paulo afirma em Efésios 4 que, para cumprir esse fim, Cristo os levou cativos e os fez escravos. Em seguida, distribuiu dons a igreja e “designou alguns para apéstolos, outros para profe- tas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mes- tres com o fim de preparar os santos para a obra do ministé- rio, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos Aperspectiva pentecostal = [33 alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos a maturidade, atingindo a medida da ple- nitude de Cristo” (v. 7-13). Embora Paulo nao mencione o Espirito nem as Escrituras nesse texto, ambos estao claramente envolvidos no propdsito de nos dar maturidade. Os ministérios de apdstolos, profe- tas, evangelistas, pastores e mestres sdo dons do Espirito, como assinala 1Corintios 12—14. Em seguida, Paulo prosse- gue demonstrando a necessidade que temos da verdade bi- blica e diz que esses ministérios nos produzem maturidade para que “nado sejamos mais como criangas, levados de um lado para outro pelas ondas, nem jogados para ca e para la por todo vento de doutrina e pela astucia e esperteza de ho- mens que induzem ao erro. Antes, seguindo a verdade em amor, crescamos em tudo naquele que é a cabeca, Cristo” (Ef 4.14,15). Nessa passagem, e em muitas outras, os falsos mes- tres so apresentados como obstaculos 4a santificagdo e ao crescimento espiritual. Em oposicao a esses mestres, 0 apds- tolo Paulo proclama Cristo, “advertindo e ensinando a cada um com toda a sabedoria, para que apresentemos todo ho- mem perfeito em Cristo. Para isso eu me esforco, lutando conforme a sua forca, que atua poderosamente em mim” (Cl 1.28,29). A Biblia também é importante porque juntamente com 0 crescimento na graga deve haver o crescimento no conheci- mento. Paulo orava continuamente pelos colossenses para que Deus os enchesse com 0 conhecimento de sua vontade por meio de toda a sabedoria e entendimento, a fim de que “vivam de maneira digna do Senhor e em tudo possam agra- da-lo, frutificando em toda boa obra, crescendo no conheci- mento de Deus e sendo fortalecidos com todo o poder, de acordo com a forca da sua gloria, para que tenham toda a perseveranca e paciéncia com alegria” (Cl 1.10,11). Novamen- te, nesse texto existe cooperacdo entre a Palavra de Deus e 0 Espirito. Observe também o seguinte: o Espirito Santo é mes- tre (Jo 14.26); é o Espirito da verdade (Jo 14.17; 15.26; 16.13; Jo 4.6); a verdade é o que Jesus proclama a respeito de Deus (Jo 1.17; 8.40,45,46; 18.37); Jesus é a verdade (Jo 14.6); a Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17); o Espirito nos guia a toda a verdade (Jo 16.13); e o Espirito também é a verdade (1Jo 5.6). 134 = Sperspectivassobrea santiticagao As passagens de Jodo 1.14,18 indicam que Jesus veio para declarar, explicar, revelar, interpretar, fazer conhecidas e des- vendar a natureza e a vontade do Pai. Semelhantemente, o Espirito veio para explicar, revelar, interpretar, fazer conheci- das a natureza e a vontade de Jesus (Jo 16.12,13). Como mes- tre, apresenta-nos a verdade que esta em Cristo, mastrando- o como o Revelador do Pai, o Salvador, o que perdoa os pecados, o Senhor ressurreto, o que batiza no Espirito Santo, o Rei que vira, e aquele que julgara no final. Sua exegese, ou revelacao, da verdade que esta em Cristo e o ato de fazer os discipulos lembrar das palavras de Jesus garantiram a preciséo de seu ensino e nos deram a seguranca da inerrancia do NT com respeito aos fatos e a doutrina. Essas questées séo importantes, mas devemos também re- conhecer que 0 mesmo Espirito que nos ensina continua atu- ando hoje, néo por meio de nova revelacdéo, mas trazendo entendimento, uma vez que esclarece a verdade quando es- tudamos as Escrituras. Mais do que apenas mostrar-nos a ver- dade, ele nos santifica, conduz a essa verdade e ajuda a colo- ca-la em pratica, tornando-a real e eficaz para a vida. Portanto, tanto Cristo vive em nés quanto o Espirito Santo nos ajuda a realizar a obra de Cristo de forma que glorifiquemos a Deus. Podemos encontrar em Atos 9.31 um exemplo biblico de que a igreja “se edificava e, encorajada pelo Espirito Santo, crescia em numero, vivendo no temor do Senhor”’. O contexto da passagem revela que esse crescimento numérico e a vida crista foram proporcionados pelo Espirito Santo 4 medida que ele santificava a Palavra de Deus e vivificava, capacitava, san- tificava, incentivava e animava os crentes. O cristéo, portanto, tem a responsabilidade de responder a Palavra de Deus e ao Espirito com fé e obediéncia. A Biblia nado foi escrita para satisfazer nossa curiosidade acerca do passa- do e do futuro. Como diz lJoao 3.3: “Todo aquele que nele tem esta esperanca purifica-se a si mesmo, assim como ele é puro”, Paulo expressa essa mesma verdade, dizendo: “Ama- dos, visto que temos essas promessas, purifiquemo-nos de tudo o que contamina o corpo e o espirito, aperfeicoando a santidade no temor de Deus” (2Co 7.1). Dessa forma, nossa coopera¢do é necessdria para que a santificacdo se torne real e pratica na vida. A santidade deve ser posta em pratica, e s6 podemos conseguir isso com a ajuda do Espirito Santo. Aperspectiva pentecostal = 135 Visto que esse aspecto da santificagado é progressivo, faz- se pertinente a pergunta: Quanto progresso podemos fazer?; ou: Qual o nivel de perfeigdo possivel de se alcancar nesta vida? Os autores assembleianos concordam que nao pode- mos alcangar a perfei¢do absoluta, ou final, nesta vida.2° Até o apéstolo Paulo afirmou que nao conseguiu atingir esse alvo: Nao que eu ja tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeicoado, mas prossigo para alcanga-lo, pois para isso também fui alcancado por Cristo Jesus. Irmaos, nao penso que eu mesmo ja o tenha alcanga- do, mas uma coisa fa¢o: esquecendo-me das coisas que ficaram para tras e avancando para as que esto adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prémio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus. Acrescenta em seguida: “Todos nés que alcancamos a ma- turidade devemos ver as coisas dessa forma e, se em algum aspecto vocés pensam de modo diferente, isso também Deus lhes esclarecera. Tao somente vivamos de acordo com o que ja alcancamos” (Fp. 3.12-16). Santificagao plena Os escritores e pregadores das Assembléias de Deus ainda utilizam, as vezes, a expressdo santificagdo plena com trés significados diferentes. Primeiro, a expressdo é usada para os crentes que “vivem a altura da luz que possuem”. Crentes novos e recém-convertidos podem estar distantes da maturi- dade, mas se o desejo e objetivo deles é seguir a Cristo e estao fazendo o melhor possivel com o auxilio do Espirito, eles sio cristéos saudaveis e estéo em santificagdo plena. E. S. Williams chama isso de “vida vitoriosa” e salienta que, pela regenera- ¢do, o poder do pecado nao é mais a forga dominante. “Por meio da iluminacao, do poder, da dinamica do Espirito Santo, o Calvario torna-se eficaz na operagdo em nés”.’? Dessa for- ma, 0 crente pode viver vitoriosamente e vencer as tentacgdes do pecado. Como ressalta William Menzies, professor de His- toria da Igreja nas Assembléias de Deus: Deve-se concluir prontamente que isso nao deve ser de forma alguma entendido como um nivel estatico de perfeccionismo, ob- tido por meio de uma experiéncia critica. A énfase é geral: o indivi- duo pode ser governado pelo Espirito ou pela carne; o crente pode _ [36 = Sperspectivas sobre a santificagao cultivar um ou outro estilo de vida, com as devidas conseqiiéncias em cada caso, segundo Romanos 8. £ claro que nao se espera que o crente se envolva em lutas e quedas perpétuas, pois o “Espirito veio para conduzir a vida santa”.”* Pearlman também assinala que a santificacdo plena ndo sig- nifica a perfeicéo absoluta, uma vez que esse atributo é exclu- sivo de Deus. Ele a associa com a perfeicao relativa “que cum- pre 0 propésito para o qual foi designada’”. Vai adiante e define santificagao plena como “o desejo e a determinacdo de todo o coracéo de cumprir a vontade de Deus”; ela “é plena no senti- do de ser apta ou adequada para determinado tipo de tarefa ou propésito”, propdsito este que pode ser “alcangado por meio do crescimento no progresso mental e moral” por inter- médio do Espirito Santo e da Biblia.” De novo 0 propésito, ou objetivo, da santificagaéo nunca sera cumprido completamente nesta vida. O crente jamais esta livre das tentagées, e a velha natureza ainda é capaz de dar ordens. O crente deve sempre ser responsivo ao Espirito en- quanto este continua mediando o favor da cruz, da expia¢ao, a fim de que nossa vida seja “para o louvor de sua gloria” (Ef 1.12).3° No entanto, como afirma Albert Hoy, professor eméri- to do Assemblies Southern California College: Por mais consagrado que o cristo possa ser, é impossivel que ele tenha conhecimento perfeito de como aplicar a Palavra de Deus as complicadas atividades da vida moderna. Existe em geral muita confusao para decidir se a vontade de Deus entra em conflito com as obrigacées [...] No processo de santificacao, a reagdo do crente a verdade revelada requer o poder do Espirito Santo para abnegar- se. Como Paulo afirma explicitamente (Rm 7.16-25), qualquer pas- so em direcdo a santidade sé é obtido apés muita luta entre o ho- mem carnal [...] eo espiritual.*! Outros autores das Assembléias de Deus, entretanto, afir- mam que essa interpretacdéo de Romanos 7 é equivocada, pois consideram que o tempo perfeito (gr.) em 7.14 (“fui vendido como escravo ao pecado”) significa que a pessoa era e ainda é escrava do pecado e, conseqijentemente, nao é€ crista.?? Mas eles concordam em que estamos em luta continua e temos necessidade constante de crucificar a carne, a natureza pe- caminosa, nesta vida. Ao mesmo tempo salientam que, por Aperspectvapenteastal = 137 meio do Espirito Santo, somos capazes de nao pecar, ainda que jamais cheguemos ao estado de ser incapazes de pecar. Os escritores e pregadores das Assembléias também falam de santificacaéo plena como o estado em que seremos trans- formados na segunda vinda de Cristo, “num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da Ultima trombeta. Pois a trombeta soara, os mortos ressuscitarao incorruptiveis e nds seremos transformados” (1Co 15.52). Seremos, entéo, seme- lIhantes a Cristo, “pois 0 veremos como ele é” (1Jo 3.2). Entéo Nossas oracgées serdéo completamente respondidas e fruire- mos a perfeicdo final em todo o nosso ser, pois Cristo tornou isso possivel derramando seu sangue. Com novo corpo imor- tal e incorruptivel, compartilharemos da gloria de Cristo e as- sim seremos plena e totalmente santificados. Enquanto isso, devemos manter “comunhao continua com Cristo por meio dos recursos da oracao e da Biblia, e buscar a orientagao divi- na do Espirito, empenhando-nos ‘até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e chegue- mos a maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo’ (Ef 4,13)".3 Em cada aspecto da santificacdo existe, sem duivida, perfeita cooperacado entre os membros da Trindade. Paulo orou pelos crentes de Tessal6nica: “Que o proprio Deus da paz os santifi- que inteiramente. Que todo 0 espirito, a alma e 0 corpo de vo- cés sejam preservados irrepreensiveis na vinda do Senhor Je- sus Cristo. Aquele que os chama €¢ fiel, e fara isso” (1Ts 5.23,24). No ponto culminante da ora¢do pelos discipulos, Jesus roga ao Pai: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17). Jesus os havia desafiado anteriormente quando disse: “Se vo- cés permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serao meus discipulos” (Jo 8.31,32). Continuar, permanecer, persistir no ensino e nas palavras de Cristo é 0 ponto essencial de toda a quest&éo. Deus nos deu sua Palavra para libertar-nos da mentira e da escravidaéo de Satanas. Por meio da sua Pala- vra, ele nos da a revelacao de sua vontade e de seu plano, e usa a Biblia para nos santificar, dedicar e consagrar ao seu servico e ao cumprimento de sua vontade. Jesus diz ainda: “Assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo. Em favor deles eu me santifico, para que também eles sejam santificados pela verdade” (Jo 17.18,19). Jesus demonstrou santificagaéo, dedicacéo e consagracao obe- 138 = 5 perspectivas sobre. santificagao decendo ao Pai, vindo ao mundo a fim de realizar a obra para que foi enviado. Demonstramos, da mesma forma, santifica- cao, dedicacdo e consagracdo pondo em pratica a vontade e a Palavra de Deus. Santificacao progressiva nao é algo a profes- sar. Nao é nada teérico nem um processo no qual s6 podemos nos envolver depois da morte (v. Le 1.74,75; Tt 2.12; lJo 1.7). Somos verdadeiramente santificados quando obedecemos a Deus e efetuamos 0 servico que ele nos confia, com 0 amor e a abnegacao semelhantes aos demonstrados por Jesus na obe- diéncia ao Pai. Esse tipo de santificagdéo nos fara realizar a obra que precisa ser feita, sem alarde e sem nos preocupar- mos se alguém a valoriza. Paulo utiliza a mesma verdade para incentivar os maridos a amar as esposas “assim como Cristo amou a igreja e entregou- se por ela para santifica-la, tendo-a purificado pelo lavar da agua mediante a palavra, e para apresenta-la a si mesmo como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e inculpavel” (Ef 5.25-27). Hebreus 10.10 também relaciona a santificagéo com a vontade de Deus e a obra de Cristo: “Pelo cumprimento dessa vontade fomos santificados, por meio do sacrificio do corpo de Jesus Cristo, oferecido uma vez por todas”. Mais uma vez percebemos que a vontade de Deus para nos é a santificacdo. Por meio do sacrificio de Cristo, pecadores sao levados a um relacionamento perfeito com Deus. O propésito desse relacionamento, entretanto, é santificar-nos e guardar-nos para Deus e sua obra. Ao caminhar com Cristo téo-somente na fé, continuamos participantes dos frutos de sua obediéncia e livres para fazer a vontade de Deus. Dessa forma, Cristo torna-se por ns e para nds: “sabedoria de Deus [...] isto é, justica, santidade e redengdo” (1Co 1.30). A obra do Espirito na santificagao O poder e 0 auxilio do Espirito Santo também sao absoluta- mente necessarios para a santificacao. Pedro dirige-se aos cren- tes como “escolhidos de acordo com o pré-conhecimento de Deus Pai, pela obra santificadora do Espirito, para a obedién- cia a Jesus Cristo e a aspersdo do seu sangue” (1Pe 1.2). Embo- ra esses crentes estivessem exilados e dispersos, ainda eram povo escolhido, Eles podiam ter consciéncia dessa condicao e seguir o caminho da consagracdo e da santidade que a pres- Aperspectivapentecostal = 139 ciéncia de Deus providenciou, o sangue de Jesus possibili- tou, a obra santificadora do Espirito tornou acessivel e que se torna visivel por meio de nossa obediéncia. Deus quer que tomemos parte de sua santidade e participemos de sua natu- reza (Hb 12.10; 2Pe 1.4). Pedro diz que fomos chamados por Cristo para sua gloria e por seu mérito ou exceléncia, o que se tornou possivel porque o Cordeiro sem pecado ofereceu sua vida em sacrificio a Deus. Na verdade, o poder para a vidae a piedade se torna eficaz pelo conhecimento pessoal de Cristo, e isso também é obra do Espirito. O Espirito Santo toma da Palavra e nos revela Cristo por meio dela. Torna Jesus real. Capacita-nos a viver a mesma experiéncia do apéstolo Paulo, que diz: “Considero tudo como perda, comparado com a su- prema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Se- nhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar Cristo e ser encontrado nele, nao tendo a minha propria justica que procede da Lei, mas a que vem mediante a fé em Cristo, a justica que procede de Deus e se baseia na fé” (Fp 3.8,9). Paulo pée em pratica essa atitude, reconhecendo-a como “o dever sacerdotal de proclamar o evangelho de Deus, para que os gentios se tornem uma oferta aceitavel a Deus, santificados pelo Espirito Santo” (Rm 15.16). O Espirito Santo, portanto, usa as Escrituras para nos dar uma visao clara sobre Jesus e inspi- rar em nds o profundo desejo de ser semelhantes a ele. Zenas Bicket, ex-deéo académico do Assemblies Evangeli- cal College, chama a atencdo para a obra do Espirito Santo no processo de santificacdo: Em primeiro lugar, deve haver dependéncia real do Espirito Santo para que ele santifique alguém. As concep¢ées equivocadas sobre 0 processo de santificagao devem ser rejeitadas. Alguns cris- téos comportam-se como se acreditassem que a santidade éa con- seqiiéncia inevitavel de professar a Cristo durante tempo suficien- te. [...] Outros, ao que parece, acreditam que a santificacdo se obtém pelo empenho cada vez maior de consagrar-se pelos proprios esforcos. Todavia, assim como o crescimento de uma planta é pro- duto da vida, e nao do esforco, a santidade é produto da habitagao do Espirito, que é vivo. Outra concep¢ao equivocada sobre santifi- ca¢ao é a de o cristdo fazer o trabalho e depois pedir que Deus 0 abencoe. Mas o Espirito deve fazer toda a obra, ou nada. Ele nao divide sua obra com o homem. Sem receber a justica de Cristoea 140 = Sperspectivassobrea santiticagéo atuacao do Espirito, o homem continuara nadando contra a maré e enfrentando ventos contrarios.3+ Bicket prossegue, ressaltando que o Espirito “funciona como o agente que torna Cristo nossa santificagdo, procurando efe- tuar uma uniao perfeita e completa de Cristo com o crente”, 0 que ele realiza em varias etapas. O Espirito faz que o crente tome consciéncia do pecado nao reconhecido ou oculto por causa da justica propria. Em seguida, faz que o crente sinta a propria impoténcia para atingir a santidade e faz nascer nele fome e sede de justica. Depois, com o auxilio do Espirito, o velho homem é despojado, e o novo homem toma seu lugar. Nessa etapa, vem a sensacado da aceitagéo de Deus que traz paz e conforto. Entdéo, ha progresso, as vezes por meio de “explosées repentinas de revitalizagdo interior [...] Ou pode haver uma evoluca&o constante”. Os sinais de santidade sao “transmitidos pela atuacaéo do Espirito Santo” 4 medida que o crente “faz novas descobertas de coisas que precisam ser en- tregues a Deus ou recebidas dele".?> 0 BATISMO COM 0 ESPIRITO SANTO Para esclarecer a perspectiva pentecostal sobre a santifica- cdo, torna-se necessdrio discorrer um pouco mais sobre 0 ba- tismo com o Espirito Santo. Alguns grupos pentecostais uni- taristas (ou adeptos do movimento Jesus Somente) chegam ao extremo de dizer que quem nao foi batizado com 0 Espirito Santo com a evidéncia do falar em linguas nao é salvo. As Assembléias de Deus e a maioria dos outros grupos pente- costais que créem na Trindade reconhecem que o batismo com o Espirito Santo é uma experiéncia distinta da regeneracao. Ndo estamos dizendo, entretanto, que o crente que nunca fa- lou em linguas nao tenha o Espirito Santo atuando em sua vida. Reconhecemos que a regeneracdo é obra do Espirito, pois quem nasceu de novo é nascido do Espirito (Jo 3.3-8). Reconhecemos também que a obra do Espirito néo sé nos concede vida, mas também nos batiza no corpo de Cristo (1Co 12.13). “Ele nos insere no Corpo, nao importa quem sejamos, judeus, gregos, escravos ou livres. E a todos nds faz beber (en- charcar, saturar) do mesmo Espirito”.** Ou seja, apOs o batismo no Espirito Santo, que nos coloca no corpo de Cristo, somos Aperspectiva pentecostal = 141 encharcados ou cheios com o Espirito. Esse batismo é, porém, uma experiéncia distinta que ocorre depois da conversao. Nas seis ocorréncias do NT em que se compara 0 batismo em agua de Jodo com o batismo no Espirito, de Jesus, a palavra batizar é usada com a preposicdo grega en, que significa, nesse contexto, “em”. Mas cremos que o contexto de 1Corintios 12.13 justifique a traducao de en pela preposicado “por”, uma vez que nesse texto 0 batismo é “por um Unico Espirito". Anthony D. Palma, ex-dedo do departamento de teologia da Assemblies of God Graduate School (hoje seminario), escreve: A distingdo feita por muitos estudiosos pentecostais é que a experiéncia de que Paulo fala é diferente da experiéncia de Joao Batista e da de Jesus. Nos dois conjuntos de passagens analisadas, existem, de fato, alguns termos semelhantes. Mas é incorreto insistir que a mesma combinacao de palavras no NT sempre deve ser traduzida da mes- ma forma. A Biblia ndo é nenhum manual ou livro de teologia siste- matica. Se fosse, poderiamos insistir que cada palavra, expressdo ou locucao deveria ser traduzida da mesma forma. Semelhancas 4 parte, essas passagens nao tém muito em co- mum. Na verdade, existem elementos no texto de Paulo que nao se encontram nos outros textos. Por exemplo, ele menciona 0 “tinico” Espirito; fala sobre sermos batizados “em um s6 corpo”. Além di SO, a expresso preposicionada “en mesmo Espirito" precede 0 verbo; na outra passagem, ela vem depois do verbo.*” Palma observa, em seguida, que em 1Corintios 12.3 e em 12.9, passagens que mencionam a obra do Espirito, en é tra- duzida pela preposigao “por”; além disso, no resto do capitu- lo ele fala sobre a atuacado do Espirito, “Pelo mesmo Espirito” é, portanto, a traducdo preferivel de 1Corintios 12.13, usada nas versdes Almeida Revista e Atualizada (ARA), Almeida Revista e Corrigida (ARC), Nova Versado Internacional (NVI, em notas de rodapé) e na Biblia na Linguagem de Hoje.* E claro que nao é apenas a tendéncia hermenéutica dos pentecostais que faz distincado entre o batismo pelo Espirito, que insere os crentes *As seguintes versoes inglesas utilizam a preposico by (por) em vez de in (em): King James Version, New American Standard Bible, New International Ver- sion, Revised Standard Version, Living Bible, Today's English Version, Twentieth New Testament e as tradugdes de Phillips, Moffatt, Williams e Beck [N. do T]. 142 = 5 perspectivas sobre santificagao no corpo de Cristo, e o batismo no ou com o Espirito, no qual Cristo é quem batiza, objetivando capacitar o crente pelo en- chimento do Espirito (Lc 24.49; At 1.8; 2.4). O reitor do Western Canadian Pentecostal College, L. Tho- mas Holdcroft, chama a atencao para o fato de, em nossos dias, algumas pessoas ensinarem, seja por descuido, seja propositadamente, que o papel do Espirito Santo se resume em batizar o crente no corpo de Cristo. Outras acreditam que haja enchimentos periddicos na vida do crente, mas que nado os podemos chamar de batismo. Outras, ainda, fazem distin- cao entre o batismo pelo Espirito no corpo de Cristo e o batis- mo com o Espirito, que Cristo realiza para o servico, mas ndo aceitam o falar em linguas como evidéncia externa inicial do batismo com o Espirito Santo. Além disso, Holdcroft da a en- tender que a rejeicdo da posi¢éo pentecostal e da evidéncia do falar em linguas muitas vezes causa uma tendéncia de de- clinio espiritual que resulta na negligéncia da obra do Espirito na vida do crente. Dessa forma, “a parte a questdo do falar em linguas, é evidente a importancia espiritual de desfrutar o ba- tismo pessoal com o (no) Espirito Santo”.%* Os pentecostais também reconhecem que a antiga alianca foi abolida na cruz (Ef 2.15) e a morte de Cristo deu inicio 4 nova alian¢a (Hb 9.15-17). Assim, antes do Pentecoste, Jesus iniciou com os que creram nele o verdadeiro relacionamento com Deus e com ele mesmo. Esses crentes ja eram participan- tes da vida de Cristo quando ele ordenou que aguardassem em Jerusalém a promessa do Pai. Atos 1.8 destaca 0 poder para 0 servico, nado a regeneracdo. Também reconhecemos que o falar em linguas é apenas a evidéncia inicial do batismo com o Espirito Santo. Essa experién- cia é o sinal do enchimento do Espirito no dia de Pentecoste. Foi a prova convincente na casa de Cornélio (“pois os ouviam falando em linguas”, At 10.46). Embora apresentemos nossas razées com base no livro de Atos, reconhecemos que Lucas era também tedlogo, nao sé historiador. Declaramos também que o apéstolo Paulo em suas epistolas, além das proprias ex- periéncias, trata de experiéncias de outras pessoas. Mesmo quando apresenta nas epistolas a verdade em forma proposi- cional, como por exemplo justificacdo pela fé, ele a relaciona a um acontecimento histérico na experiéncia de Abrado. Quan- do Paulo quer demonstrar a importancia da graca, volta-se Aperspectiva pentecostal = 143 para um livro histérico e fala sobre Davi (Rm 4). Devemos ob- servar também que, quando Paulo faz a pergunta: “Falam to- dos em linguas?” (1Co 12.30), o verbo esta no tempo presen- te, o que faz supor o significado: “Todos continuam falando em linguas?”. Ou seja, 0 apéstolo pergunta se todos exercem o ministério de falar em linguas na igreja. Dessa forma, Paulo nao descarta o falar em linguas como a evidéncia inicial. Esperamos outras provas apés o batismo do crente com o Espirito Santo. Na “Declaracéo de Verdades Fundamentais” das Assembléias de Deus, nas secées 7 e 10, lé-se: Com o batismo como Espirito Santo, surgem novas experiéncias, como 0 transbordar da plenitude do Espirito (Jo 7.37-39; At 4.8), mai- or reveréncia a Deus (At 2.43; Hb 12,28), a consagracao mais intensa a Deus e maior dedicacao a sua obra (At 2.42), e o amor mais ativo por Cristo, por sua Palavra e pelos perdidos (Mc 16.20) [...] Essa experiéncia: a) capacita-os a evangelizar no poder do Espirito Santo, como acompanhamento de sinais sobrenaturais (Mc 16.15-20, At 4.29- 31; Hb 2.3,4); b) acrescenta um aspecto necessario da relacdo de adoracdo com Deus (1Co 2.10-16; 12—14); ¢) capacita-os a responder a obra plena do Espirito Santo, mani- festando frutos, dons e ministérios como nos tempos do NT, para edificag&o do corpo de Cristo (Gl 5.22-26; 1Co 14,12; Ef 4.11,12; 1Co 12.28; Cl 1.29). Também reconhecemos que o batismo com o Espirito San- to ndo é uma experiéncia progressiva. O proprio Pentecoste foi apenas o inicio da colheita. Ele pés os crentes em comu- nhao na adoracao, no servic¢o e no ensino. O batismo com 0 Espirito Santo é, portanto, apenas uma porta para o relaciona- mento cada vez maior com a pessoa divina do Espirito e com os membros do corpo de Cristo. Esse batismo produz em nds a vida de servico marcada por dons do Espirito, que confe- rem poder e sabedoria para o crescimento da igreja e a expan- sao do evangelho. Apesar da énfase no revestimento de poder para o servic¢o, nao negligenciamos a obra santificadora do Espirito, princi- palmente com respeito a dedicagéo a Deus e a demonstracao de seu amor. O Espirito Santo, em cada aspecto de nossa vida com ele, volta-nos para Cristo e enche-nos o coracéo do amor 144 = Sperspectivas sobre santificagéo de Deus e, por nosso intermédio, transmite esse amor ao mundo necessitado. Uma vez que estamos em Cristo, deve- mos viver no Espirito e pelo Espirito. Cada aspecto da vida precisa ser trabalhado por ele. Ele deseja, quando nos reuni- mos na comunhao do Espirito, fazer-nos um com Cristo e com os membros do corpo. Quer recebamos manifestagées especiais do Espirito, quer nao, ele esta sempre presente para nos guiar, dirigir e ajudar. Boa parte da vida no Espirito é uma questao de realizar fiel- mente o servico do Senhor e os negécios da vida cotidiana sem intervencées espetaculares. Essa existéncia deixa de ser banal e passa a ser uma vida de crescimento na graca e no fruto do Espirito. A santificagéo continua ainda permanece como a obra principal do Espirito Santo. Entretanto, devemos reconhecer que, como 0 batismo com o Espirito Santo nao é propriamente uma experiéncia de santificacdo, os que acaba- ram de ser batizados com o Espirito precisam perseverar ain- da mais na coopera¢ao com o Espirito na obra santificadora. Por outro lado, cremos que o proposito principal da vida cristaé nao é purificar-nos. O crescimento na gra¢a realiza-se melhor quando estamos envolvidos no servico de Deus. Nao acreditamos que o santo ou crente consagrado deva passar todos os dias dedicando-se apenas ao estudo biblico, a ora¢gdo e a devocao, e mais nada. Isso tudo é importante, mas a vida santificada implica muito mais. Os utensilios santos do taber- naculo nos servem de ilustracéo. Esses objetos nao podiam ser utilizados na pratica de atividades comuns. Ninguém poderia utiliza-los na cozinha, por exemplo, nem poderia usé-los para servir 0 jantar. Todavia, nao foi a separacao do uso comum que os tornou santos, Eles s6 se tornaram santos quando foram levados para o tabernaculo e utilizados de fato no servico a Deus. Desse modo, somos santos néo sé porque fomos sepa- rados do pecado e do mal, mas porque fomos separados para Deus, santificados e ungidos para o servico do Mestre. A ordenacao, ou consagracdo, dos sacerdotes no AT é ou- tro exemplo. Nessa ceriménia, primeiro o sangue era aspergi- do sobre o lébulo da orelha direita, o polegar da mao direita e o halux do pé direito, simbolizando a expiacao e a purificagao do individuo. Em seguida, os futuros sacerdotes eram ungi- dos com 6leo, o que representava a obra do Espfrito na prepa- racgdo para o servico, Da mesma forma, somos purificados e Aperspectiva pentecostal = 145 ungidos, como se féssemos profetas, reis e sacerdotes (2Co 1.21; Jo 2.20). O Espirito Santo da-nos poder para o servico, nado sem crité- rio, mas segundo sua vontade, por meio de dons e diferentes ministérios do Espirito (1Co 12.11). Paulo, porém, desafia os crentes: “Entretanto, busquem com dedicacao os melhores dons” {v. 31). Essa ordem implica que os crentes deviam buscar os dons mais necessarios ou mais edificantes naquele momento. Isso mostra que nao recebemos os dons do Espirito automati- camente s6 porque fomos batizados no Espirito Santo. Precisa- mos estar abertos ao Espirito e corresponder com fé ativa e obediente, pois ele nado nos forgara a receber os dons. Paulo também informa em 1Corintios 12 que os crentes de Corinto, que nao careciam de nenhum dom espiritual (1.7), precisavam exercé-los com mais éxito. Precisavam entender o valor dos dons e a necessidade de dons variados na edifica- ¢ao e na promocao da unidade do corpo. Mas isso s6 nao era suficiente. Paulo escreve: “Passo agora a mostrar-lhes um ca- minho ainda mais excelente” (12.31) — 0 caminho do amor. O amor, todavia, nao é um dos dons carismaticos do Espi- rito. Antes, abrange o fruto do Espirito e é, portanto, um dos principais resultados da obra santificadora do Espfrito. O amor de Deus é uma dadiva para nds. Cristo deu-nos seu amor. O Espirito Santo também nos torna conscientes do amor de Cristo (Rm 5.5). O amor, porém, nunca é considerado um dom espi- ritual. Como fator de motivacdo para nossa vida, ele sempre é fruto do Espirito. Paulo evidentemente nao quer dizer que o amor possa subs- tituir os dons espirituais. A Biblia deixa muito claro que ne- cessitamos do fruto e dos dons para a vida e o ministério cristéos. O que Paulo salienta, entao, é o contraste entre os dons espirituais sem a presenca do amor e esses mesmos dons com a presenca dele. De modo algum Paulo diminui a importancia dos dons espirituais nem diz que o amor é me- lhor que eles. Mas 0 amor é necessario para permitir que os dons sejam aproveitados ao maximo e resultem na devida recompensa. Dessa forma, a obra santificadora do Espirito precisa caminhar ao lado de sua obra capacitadora. Deve-se ressaltar também que ambos sao necessarios atual- mente. £ claro que precisamos do fruto, mas os pentecostais enfatizam que também precisamos dos dons. Penso que: 146 = 5 perspectivas sobre santificagao Eles [os dons] foram estabelecidos (determinados, instituidos, ordenados) por Deus como parte integrante da Igreja, da mesma forma que cada um dos varios membros do corpo humano foram colocados em seu devido lugar para cumprir uma funcao especifi- ca(1Co 12.18,28). Isso significa que foram planejados para todaa era da Igreja. Mas sdo temporarios no sentido de se limitarem a presente era. Ainda sao necessarios hoje, mas quando Cristo voltar o estado perfeito sera revelado. Seremos transformados a seme- lhanca de Cristo. Nao estaremos mais sujeitos ao corpo decaido presente. Com novo corpo, nova maturidade e a presenga visivel de Cristo conosco, nao necessitaremos mais de dons especificos. As coisas que nos deixam perplexos hoje ndo nos surpreenderao mais. Sera facil submeter nossa atual compreensdo parcial e in- completa quando o virmos como ele é (1Jo 3.2) [...] O amor, por certo, nao pode acabar, pois Deus € amor. Quanto mais participa- mos dele, mais temos amor, e, visto que ele é infinito, sempre havera mais por toda a eternidade. Portanto, as coisas permanentes devem ser nosso parametro para o exercicio dos dons espirituais. Acima de tudo, os dons devem ser exercidos em amor.‘” CONCLUSAO Resumindo, os autores pentecostais concordam que a san- tificagdo diz respeito a cada aspecto do magnifico plano divino de redencao. Entendem que a justificacdo e a santificacdo inici- al ocorrem no mesmo momento; a primeira nos pde numa nova posic¢ao diante de Deus, e a ultima nos proporciona um novo estado. Entretanto, nem a justificacéo, nem a santifica- ¢ao posicional acabam com o pecado “na raiz e nos ramos”. Os pecados passados séo perdoados, mas o pecado original, no sentido de inclinagao herdada para pecar, permanece. Os pentecostais holiness ainda defendem a segunda obra definiti- va da graca, que, segundo eles acreditam, elimina completa- mente o pecado original e torna mais facil viver em santidade. Os membros das Assembléias de Deus e outros pentecostais nao adeptos do movimento holiness rejeitam essa experién- cia e defendem a santificacéo progressiva, que néo se comple- ta antes da glorificacao. Os autores das Assembléias de Deus, entretanto, podem concordar com Harold D. Hunter, autor pentecostal holiness, que escreve: Aperspectiva pentecostal = 147 O reconhecimento da dependéncia do crente com relacdo ao Espirito Santo para a santificacao nao o livra de sua responsabili- dade. Asseverar que o homem esta envolvido no processo, entre- tanto, nado é concordar com a idéia de que a santificagao é uma questao de aprimoramento moral realizado pelo préprio homem. £ extremamente dificil encontrar uma forma adequada de expres- sar arelag&o entre Deus e o homem na santifica¢ao [...] a resposta humana é importante, mas assim também é a atuagao do Espirito nessa pessoa. As ordens biblicas para agir corretamente (Rm 6.13,19; 8.13; 2Co 7.1; G1 5.16,25) podem ser interpretadas apenas como se ocrente estivesse ativo no processo [...] No AT, o Senhor santificava seu povo [...] Mas as pessoas também devem santifi- car-se a si mesmas.*" Hunter prossegue, chamando atengao para o fato de que essa dupla responsabilidade também é ensinada no NT. Ele trata desse assunto valendo-se de Filipenses 2.12, em que o apdstolo nos exorta a continuar exercitando nossa salvacao, mantendo o temor e o tremor. Esse assunto nao trata apenas da salvacao coletiva, mas implica a individual: a comunidade na&o pode melhorar se cada crente nao progredir individual- mente. O autor também ressalta que alegar a possibilidade de abster-se completamente do pecado nesta vida “sé pode ser verdade quando se toma por base uma definicado incorreta de pecado”. Conclui: “A santificacéo é parte da experiéncia inicial de salvacao e também é um processo de purificacdéo que dura a vida toda’.*? Portanto, ao que parece, alguns pentecostais da corrente holiness e alguns de correntes nao-holiness con- cordam muito mais atualmente do que no inicio do século XX. Todos concordariam também que a santificacgao resulta numa pureza que resiste as tentagdes e as supera (Tg 4.7; 1Co 10.13; Rm 6.14; Ef 6.13,14). A santificagéo também produz uma vida vitoriosa que glorifica e louva a Deus, e revela os frutos de justiga (1Co 10.31; Cl 1.10). Produz uma vida reple- ta da graca e do poder do Espirito, vivida em comunhéo com Deus e com Cristo (Gl 5.22,23; Ef 5.18; Cl 1.10,11; Io 1.7). E uma vida de servico a Deus, desfrutada no poder do Espirito, que nos batiza, enche e preenche novamente. £ uma vida que recebe o amor de Deus e de Cristo e passa a ser canal desse amor. Também é uma vida de oracao e estudo piedoso da Pa- lavra de Deus. Por fim, como jé observamos em E. S. Williams, 148 = 5 perspectivas sobre a santificagao a santificagdo capacita-nos a viver acima do pecado, do egofs- mo e da anarquia espiritual do mundo e, ao contrario de tudo isso, viver para Deus.® BIBLIOGRAFIA Carison, G. Raymond. Our Faith and Fellowship. Springfield, Mo., Gospel, 1977. . Salvation: What Bible Teaches. Springfield, Mo., Gospel, 1963. Fyorpsak, Everitt M, Sanctification. Dallas, Wisdom House, 1982. Harris, Ralph W. Our Faith and Fellowship. Springfield, Mo., Gospel, 1963. Horton, Stanley M. What the Bible Says About the Holy Spirit. 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As duas principais raizes da teologia pentecostal sao expostas logo no comego de seu artigo: a teologia da se- gunda bénc4o, do movimento metodista holiness, e 0 ensino da santificagéo progressiva, proveniente da larga tradi¢do ba- tista independente, esta fortemente influenciada pelo ideal da vida elevada do Instituto Biblico Moody, representado por R. A. Torrey. Este Ultimo movimento ressaltava a atuacdo especial do Espirito no Pentecoste como a base para receber poder para testemunhar, enquanto os pentecostais holiness pregavam a crise de santificagdo e o revestimento de poder que a acompa- nhava. E de esperar, portanto, que a teologia pentecostal da santificacdo que as Assembléias de Deus e outros grupos pentecostais defensores do batismo adotam seja mais eclética que qualquer outra posicao representada neste estudo. Na verdade, as vezes parece que ela se esforca para encontrar expressdo coerente. Essa teologia formou-se a partir de deter- minadas reacées a teologia do pentecostalismo holiness, que marcou grande parte do movimento pentecostal pioneiro, e caminhou na dire¢ao calvinista mais apropriada a teologia originaria de muitos ex-batistas que haviam sido conquista- dos para o pentecostalismo durante o reavivamento. Contu- 150 = 5 perspectivas sobre a santificacéo do, fica bem claro no ensaio de Horton que 0 movimento foi apenas parcialmente bem-sucedido no que diz respeito a li- bertar-se do ensino pentecostal holiness sobre santificacdéo e a implantar seu proprio entendimento doutrinario. E muito importante manter a distin¢do entre a santificacao @ 0 novo nascimento como obra da graca no coracgaéo, embora a primeira comece no ato de regeneracdo, pois nossa nova vida em Cristo deve ser santificada completamente para a von- tade e os propdsitos de Deus. Temos de admitir que nao existe raz4o para o momento de purificacéio completa do coracéo e a perfeicéo em amor nao poderem ocorrer imediatamente apdés a justificagdo e a regeneracdo. A verdadeira pergunta, entre- tanto, é: Esse é o padrao comum do encontro entre Deus e 0 ho- mem? Wesley afirmou que nao achava que o caminho fosse esse e nao conhecia ninguém que achasse. Em outras palavras, as verdadeiras quest6es concernentes 4 santificacdo referem- se ao tempo posterior ao novo nascimento. Além disso, a luz de textos como lJodo 2.1-5, precisamos perguntar, a todos desta série, por causa da teologia reforma- da, quem acha dificil reconhecer a libertagéo do pecado aqui retratada como o padrao normal de vida crista, e de que for- ma essa pessoa lidaria com textos biblicos como esses e ou- tros que geram a expectativa de santidade crista. Esse tipo de vida cristaé também é definido em outras passagens que indi- cam que a santificacéo implica uma atitude definitiva, toma- da em determinado momento e que continua como realidade no presente. Desses textos, Romanos 12.1,2 talvez seja o mais repleto de exemplos, o mais explicito na linguagem e o que melhor define o fato de que a entrega total a Deus é a atitude que os cristaos nascidos de novo devem tomar e que nao pode ser parte do novo nascimento nem ocorrer antes dele. Essa atitude ndo encerra o desenvolvimento da vida santificada, apenas prepara o crente para a vida de crescimento na gra¢a e em maturidade, para alcancar seu propdésito. Pode-se observar também o grande vigor com que a teolo- gia pentecostal holiness ainda permeia o pensamento das As- sembléias quando Horton fala das formas em que a expressdo santificagdo plena & empregada nos circulos assembleianos. Os wesleyanos concordariam com Menzies, por exemplo, quan- to ao fato de que a santificagdo plena “nado deve ser entendida de modo nenhum como um patamar estatico de perfec- Réplica wesleyanaa Horton ® [51 cionismo alcangado por meio de uma experiéncia critica’. Tam- bém concordariam que os crentes que andam na plena luz alcangaram um nivel mais elevado de graca e que podem des- frutar dessa vida de vitoria sobre o pecado e as tentacgées. Concordariam com Pearlman em que é uma perfeicao relativa “que cumpre o proposito para o qual foi designada” (p. 136). E apoiariam Horton na declaracao de que “por meio do Espirito Santo somos capazes de ndo pecar, ainda que jamais chegue- mos ao estado de ser incapazes de pecar” (p. 137) — até a chegada dessa perfeicdo final, quando seremos libertos das tragicas consequéncias da Queda no novo céu e na nova ter- ra, onde apenas os justos habitam. Esses conceitos todos sao definigdes bem conhecidas para a vida resultante da segunda experiéncia critica, como entendem os wesleyanos e mesmo os adeptos da posicéo de Keswick. Os wesleyanos podem concordar também com muitos ar- gumentos de Horton acerca da experiéncia crucial do batismo com o Espirito, além da obra inicial do Espirito. Mas seria difi- cil para os wesleyanos entender como alguém pode ser cheio do Espirito e nao ter 0 coracdo totalmente purificado (ou seja, aperfeicoado em amor) pela plenitude de sua presenca e seu poder. Paulo diz aos Tessalonicenses que nao foi a toa que Deus nos deu seu Espirito (1Ts 4.7,8). Finalmente, Horton e todos os pentecostais continuam lem- brando poderosamente toda a igreja — especialmente o mo- vimento wesleyano holiness — de que os dons e os frutos do Espirito sfo essenciais para a edificacéo e o testemunho do corpo de Cristo. Reagindo ao desafio da teologia pentecostal, a tradic¢éo wesleyana muitas vezes tem salientado a natureza ética da santificacéo, exaltando os frutos do Espirito 4 custa da negligéncia do ensino precioso e essencial acerca dos dons do Espirito. Os lideres pentecostais fundadores desafiaram corretamente o movimento holiness a nao ficar tao preocupa- do com a vida interior de pureza a ponto de perder o teste- munho dinamico do Espirito, que s6 a ministragdo de dons em amor pode prover. Réplica REFORMADA a Honron Anruony A. HoeKena Concordo com a maior parte do que Horton diz sobre a santificagdéo. Concordo com a defini¢ao da santificag¢éo como “posicional” e “progressiva” — embora eu prefira chamar o aspecto inicial da santificacdo de “definitivo”. Estou de acor- do também que a santificagéo progressiva é obra de Deus e responsabilidade nossa. Reconhe¢o que as trés pessoas da Trindade estado envolvidas na santificagdéo, que é um aspec- to de nossa uniao com Cristo, e que o fato de o Espirito nos encher e tornar a nos encher é uma necessidade. Valorizo ainda a observacdo dele quanto ao fato de os meios de santificacéo serem o sangue de Cristo, o Espirito Santo e a Biblia. Concordo também que é impossivel nesta vida viver sem pecado. Fico feliz pelo fato de Horton mostrar que 0 proposito da santificagéo — a perfeicéo — nao sera alcanca- do antes da vida futura. Todavia, encontro certa dificuldade com relacéo ao empre- go que ele faz da palavra cooperar para designar a relacéo entre a nossa tarefa e a de Deus na santificacdo (p. 129 e 134-5). Dizer que devemos cooperar com Deus no que tange a nossa santificacéo implica que parte da tarefa é realizada por nés e parte, por Deus. Mas a atuacaio de Deus em nés no se inter- rompe enquanto estamos atuando e, da mesma forma, néo paramos de realizar a tarefa porque Deus esta operando. E preferivel dizer que a santificacgao é uma obra de Deus em nos que envolve nossa participacao responsavel. Réplica reformada a Horton = 153 Também tenho dificuldade quanto ao uso que Horton faz da expressdo “perfeicdo relativa” (p. 136). Parece-me uma con- tradicdo de termos. Se é “perfeigdo”, nado pode ser “relativa”; se é “relativa”, nao é “perfeicao”. Contudo, o problema principal que encontro no capitulo é o ensino de Horton sobre o “batismo com o Espirito Santo”, definido como uma experiéncia distinta e subseqiiente a re- generacdo e a conversdo (p. 140-1). Ele faz supor que o batis- mo com o Espirito é algo que todo o crente deve buscar (im- plicito no capitulo, mas encontravel na “Declaracao de Verdades Fundamentais” das Assembléias de Deus no artigo 7°.: “Todos os crentes tém direito 4 promessa do Pai, o batis- mo com o Espirito Santo, e devem busca-la com sinceridade”). Quando o crente passa por essa experiéncia, torna-se apto para o servico pelo enchimento do Espirito. O falar em lin- guas é considerado a evidéncia inicial desse batismo (p. 142). Outras evidéncias desse batismo séo maior reveréncia para com Deus; uma consagra¢do mais intensa; um amor mais ativo por Cristo, pela Palavra e pelos perdidos; e progresso na mani- festacao do fruto, dos dons e ministérios do Espirito (p. 143). A essa altura, devo fazer uma objecao. O ensinamento aqui diz respeito ao fato de apenas as pessoas que falaram em lin- guas serem aptas para o servico por meio do enchimento do Espirito e desfrutarem de mais quatro provas do batismo com o Espirito, acima mencionadas. Em outras palavras, a grande maioria dos cristéos do mundo atualmente nao pode ter es- sas béncdos. Que prova biblica Horton oferece para apoiar essa perspec- tiva referente 4 doutrina do batismo com o Espirito Santo? Nada muito consideravel. A segunda metade de 1Corintios 12.13 € citada para provar que o batismo no Espirito é “uma experiéncia distinta que ocorre apos a conversao” (p. 141) — embora se admita que na primeira metade desse texto Paulo esteja falando de algo diferente. Na pagina 142, sdo apresen- tados os textos de Lucas 24.49; Atos 1.8; 2.4, mas nenhum deles menciona a expressdo “batismo com o Espirito Santo”. Na pagina 141, 0 autor menciona “seis ocorréncias no NT em que se compara 0 batismo em agua de Jodo com o batismo com o Espirito”, mas nao da as referéncias. Na pagina 142, Horton faz alusao ao dia de Pentecoste e 4 conversdo de Cornélio como exemplos do batismo com o Espirito Santo. 154 = 5 perspectivas sobrea santificacéo Eu respondo: nao ha fundamento biblico para a doutrina pentecostal do batismo com o Espirito Santo como experién- cia distinta da regeneracdo e subseqtiente a ela. Embora a ex- pressdo “batismo com o Espirito” néo ocorra no NT, ha sete provas em que o verbo batizar é usado em referéncia ao Espi- rito. A expressdo “batizar com” ou “ser batizado com o Espiri- to Santo” encontra-se seis vezes no NT: quatro nos evange- lhos e duas no livro dos Atos. (Embora muitos pentecostais falem de batismo “no” Espirito, as versdes ARA, ARC e NVI traduzem a preposicéo grega en nesses textos por “com”.) Nas quatro ocorréncias da expressdo “batizar com o Espiri- to Santo” nos evangelhos (Mt 3.11; Mc 1.8; Le 3.16 e Jo 1.33), ela designa o fato histérico futuro do derramamento do Espi- rito no dia de Pentecoste. Na primeira referéncia, em Atos 1.5, a expressdo, dessa vez na voz passiva, também se refere a esse evento: “mas dentro de poucos dias vocés serao batizados com o Espirito Santo”. Portanto, nesses cinco exemplos 0 “ba- tismo com o Espirito Santo” nado se refere a uma experiéncia pela qual os crentes devem passar apés a conversdo, mas a um acontecimento histérico que ocorreu no Pentecoste, acon- tecimento que, assim como a ressurreic¢ao de Cristo, nado ocor- rera novamente. O que significa, entéo, a expresséo em Atos 11.16, mencio- nada pela segunda vez no livro? Pedro esta em Jerusalém re- latando aos crentes da Judéia o que ocorrera na casa de Cornélio, em Cesaréia, alguns dias antes. O que ocorreu ali foi de fato um “batismo com o Espirito Santo”, mas nao uma ex- periéncia distinta da conversdéo e subseqiliente a ela; ocorreu simultaneamente a conversao. O significado do batismo com o Espirito que Cornélio recebeu é exposto no versiculo 18: “Entéo, Deus concedeu arrependimento para a vida até mes- mo aos gentios!”. Isso significa a concessdo do Espirito para a salvagéo de pessoas que anteriormente nao eram cristas. Outra passagem que menciona os termos Espirito e batis- mo é 1Corintios 12.13. Nesse texto, a preposicao en é traduzi- da pela preposicao “por” na maioria das versées: “Pois em um s6 corpo todos nds fomos batizados em (“por’, cf. nota de rodapé NVI) um unico Espirito [...] E a todos nés foi dado beber de um unico Espirito”. A primeira metade do versiculo nos diz que todos os cristaos foram batizados no Espirito. O ba- tismo no Espirito @ o ato de Deus mediante o qual nos torna- Réplica reformada a Horton = 155 mos um com Cristo. Nao é necessario buscar esse batismo como uma experiéncia posterior 4 conversdo, é o que Paulo esta di- zendo nesse texto. Uma vez que estamos em Cristo, ja fomos batizados no Espirito. Mesmo admitindo que a primeira metade desse texto se refira a algo que ocorre a todos os cristéos, Horton afirma que a segunda metade fala do batismo no Espirito, no sentido pentecostal comum. Argumenta que, enquanto os outros tex- tos que falam do batismo no Espirito dizem que Cristo nos batiza no Espirito, a primeira metade do versiculo de Corintios afirma que somos batizados pelo Espirito e, portanto, esta fa- lando de coisa diferente (p. 141-2). A segunda frase do versiculo, porém, é semelhante 4 pri- meira metade, pois ambas ressaltam a unidade de todos os crentes. Além disso, como basear a argumentacaéo numa dis- tingdo entre o batismo pelo Espirito e o batismo por Cristo? Se algo é realizado por Cristo, ndo seria também realizado pelo Espirito? E, se realizado pelo Espirito, nao é também realizado por Cristo? Réplica de KESWICK a Honron J. Rosertson McQuiuain Devemos muito a Horton pelo panorama histdrico sucinto e preciso do movimento pentecostal e pelas distingdes teoldgi- cas apontadas entre os diversos ramos. Foi ttil, por exemplo, tomar conhecimento das diferencas entre as trés experiéncias criticas defendidas pelos grupos pentecostais originados no movimento wesleyano holiness, bem como das duas crises defendidas pelos de origem batista (como as Assembléias de Deus). Essa distincaéo tem muito que ver com a doutrina da santificagdo, embora nao nos tenham sido apresentadas suas implicagées. A parte histérica da apresentac¢do teria sido ain- da mais proveitosa se houvesse incluido 0 movimento evan- gélico de renova¢ao carismatica, surgido na década de 1960. Além disso, teria sido muito proveitoso para os estudos comparativos se os ensaios das posicdes reformada, wesleyana e pentecostal tivessem tratado das implicacées da doutrina da seguranca eterna para o processo de santificacao. Ha ain- da outras quest6es menores, como a distin¢gao entre o batis- mo pelo Espirito (no corpo de Cristo, que ocorre no momento do encontro inicial de salvacaéo) e o batismo no Espirito (“en- chimento” num encontro posterior e necessario). A doutrina é importante demais para ser apoiada num tmico argumento lexical extremamente debatido, como faz Horton. Surpreendi-me ao descobrir que, nos primeiros dois ter- cos da exposicao sobre santificacéo, ndo ha nenhum ensino relevante caracteristico da vertente Assembléias de Deus do Réplica de Keswick a Horton = 157 movimento pentecostal (distinta de outras vertentes) que nado fosse elogiado pelo programa de Keswick. A divergéncia se torna patente apenas nas Ultimas paginas da apresentacao. S6 quando Horton parte — aparentemente quase como um p6s-escrito — para o ensino sobre o falar em linguas como o sinal indispensdvel de uma segunda obra da graca, também teologicamente necessaria, é que a enorme divergéncia se torna patente. Todavia, uma vez que ele afirma de forma surpreen- dente (para alguém de fora do movimento) que o batismo no Espirito Santo (enchimento) nao é propriamente uma experién- cia de santificagdo (p. 144), sinto-me inclinado a indagar se essa experiéncia é necessdria para o processo de santificagéo e se, por isso, pode haver menos divergéncia do que se pode- ria supor. Essa corrente de pensamento é€ refor¢ada posterior- mente pelo fato de a santificacgéo, ou a busca pela santidade, nao ser levada em consideragaéo por muitos lideres do movi- mento renovado carismatico atual, nem no que diz respeito ao aspecto distintivo nem quanto 4 principal énfase do movi- mento. Para eles, a experiéncia carismatica presta-se mais a adoracao, a intensificagéo do relacionamento com Deus, a li- bertacado individual para conseguir o enchimento e, para al- guns, ao revestimento de poder para © servico. Sera que os grupos pentecostais historicos e os movimentos de renova- ¢ao carismatica contemporaneos nado ajudariam os outros e a si mesmos se tratassem da relacdo entre o batismo e a santi- ficagao de forma mais plena e publica? O espaco nao me permite fazer uma andlise adequada das duas questées relacionadas: se a segunda experiéncia critica é necessaria para a santificagdo e se o falar em linguas é ensina- do nas Escrituras como a evidéncia necessaria desse “batismo” ou “enchimento”. Oficialmente, entretanto, quero registrar mi- nha preocupacéo de que essa perspectiva careca de funda- mento biblico adequado, tanto da perspectiva hermenéutica quanto da histéria da Igreja. A segunda experiéncia critica nado é defendida em nenhum lugar nas Escrituras. Mesmo que fosse, teria importancia ape- nas secundaria no ensino da salvacao. As Escrituras indicam aos crentes que pecam ou falham a volta a experiéncia inicial da gracga de Deus. Alguns pentecostais e adeptos do movi- mento renovado dizem que esse ensinamento nao foi expos- tO porque as pessoas a quem 0 NT se dirigia ja haviam passa- 158 = 5 perspectivas sobre a santificacao do por essa experiéncia. Essa resposta traz 4 tona muitas per- guntas. A Biblia foi escrita para quem? Quantas outras doutri- nas essenciais teriam sido omitidas por ja estarem sendo vi- vidas? Além disso, a salvagdo sem duvida ja era conhecida dos destinatarios das cartas do NT; ainda assim, é doutrina ensinada constantemente, e os mandamentos para buscar essa experiéncia sdo freqtentes. Por que entdo nao ocorreu o mes- mo com a segunda experiéncia? Além disso, se os crentes de Corinto, por exemplo, nao precisavam de uma experiéncia de santificagéo, quem precisaria? Quem somos nds para inter- pretar a omissdo completa desse ensinamento nas epistolas do NT, escritas originariamente com o evidente propdsito de capacitar os crentes para exercer a vida crista? Uma vez que a experiéncia nao é ensinada nas Escrituras, boa parte do debate doutrinario baseia-se no que ocorreu no livro de Atos. Sem entrar em detalhes, defendo como princi- pio geral que uma doutrina baseada em historia sem a corro- boracéo de um ensino apostolico nao é segura. A historia nao interpretada por outro texto das Escrituras nado pode ser con- siderada normativa, visto que as Escrituras nao tratam dados histéricos dessa forma e, se nao se observa esse principio hermenéutico, nao ha limites para os potenciais abusos. Sem mencionar a falta de provas biblicas do batismo no Espirito como a segunda (ou terceira) experiéncia necessaria € do falar em linguas como sinal, e ndo dom, reunir as duas experiéncias como sinal indispensdvel representa um proble- ma ainda maior e mais critico. Essa unido de experiéncias nao sd carece de prova biblica, mas também de um bom prece- dente historico. Embora o ensino da segunda obra da graca e o da experiéncia da glossolalia tenham surgido periodicamente ao longo da histéria da Igreja, eles ndo apareceram juntos antes de 1901, no episddio aludido por Horton (p. 115). Em nenhum lugar das Escrituras ensina-se que as linguas sao um sinal necessario (distinto do dom de linguas concedido a al- guns). A idéia de que essa manifestacdo é a evidéncia indis- pensavel de uma segunda experiéncia teologicamente neces- saria foi uma “nova” revelacao feita a primeiranistas de um instituto biblico enquanto o professor estava ausente da es- cola no primeiro — e unico — ano de existéncia da instituicdo. Para os que nao aceitam a revelacgéo pés-biblica como autori- Réplica de Keswick a Horton = 159 dade normativa para a igreja, o fundamento dessa doutrina crucial deve continuar sendo considerado incorreto. Depois de esbocar breve e insatisfatoriamente meus pro- blemas a respeito desse ensino, devo voltar a minha conclu- sao anterior, isto é, a de que, glossolalia a parte, quando o debate se limita estritamente ao modo em que o novo conver- tido ou o crist&o faltoso pode crescer na semelhanga a Cristo, a posicao de Stanley Horton, porta-voz das Assembléias de Deus, e a de muitos do movimento de renovacéo carismatica atual, nado esta tao distante da perspectiva de Keswick. Réplica AGOSTINIANO- DISPENSACIONALISTA a Hoxton Jouw F. Wawvooro Stanley Horton documenta bem o progresso doutrinario ob- servado no movimento pentecostal, além de registrar o refi- namento e a estabilizagéo da verdade pentecostal nas Assem- bléias de Deus de seu tempo. Sao louvaveis os argumentos referentes a muitas provas biblicas em favor da verdadeira espiritualidade e santificacao. Os ngo-pentecostais notam que as primeiras conviccdes pentecostais basearam-se mais na experiéncia que propriamen- te na exegese compativel das Escrituras. O falar em linguas foi erroneamente considerado prova de espiritualidade e poder espiritual, enquanto 1Corintios 12.8-10,28-30 assinala que o dom de linguas é o menor na escala de dons espirituais. O conceito de segunda obra da graca, que em certa medida se perpetuou no movimento holiness contemporaneo, também é considerado pelos ndo-pentecostais injustificavel e carente de terminologia biblica. Muitos também se opdem ao ensino de que os crentes devern crucificar a natureza pecaminosa, o que nao encontra apoio nas Escrituras e, na verdade, é impossivel. A crucificagéo de nossa velha vida (e nao da velha natureza) ocorreu quando Cristo morreu em nosso lugar. Galatas 2.20, que a NVI traduz adequadamente, afirma: “Fui crucificado com Cristo”. Essa verdade deve ser reconhecida pela fé. Além disso, visto que a justificagao e a santificagao posicional ocorrem na regeneracao, e as trés juntas, como atos de Deus, sao irrever- Réplica agostiniano-dispensacionalista a Horton * 161 siveis, nao podemos aceitar o ensino de que se perde a salva- ¢ao quando ocorre pecado depois da segunda obra da graca. O ensino atual das Assembléias de Deus corrigiu a maior parte desses erros de interpretacdo, mas seria bom mais al- gum esclarecimento. Muito se ganharia distinguindo entre batismo no Espfrito e enchimento do Espirito, ainda que essa confusao nao se limite ao movimento pentecostal. A Biblia fala de apenas um batismo no Espirito. Ainda que os crentes pos- sam ser cheios pelo Espirito repetidas vezes, ndo existe ne- nhum registro de alguém que tenha sido batizado mais de uma vez. Além disso, todo crente verdadeiro é batizado pelo Espirito no momento da regenera¢do, como se ensina nas pré- prias Assembléias de Deus e se encontra em 1Corintios 12.13. O enchimento do Espirito ocorre muitas vezes (cf. At 2.4; 4.8,31; 7.55), embora no primeiro exemplo do livro de Atos tenha ocorrido simultaneamente com o batismo no Espirito Santo. Falar em linguas nao é prova de espiritualidade nem de poder espiritual, fato que deve ficar claro quando se recor- da a igreja de Corinto, que na definicéo de Paulo era carnal (1Co 3.1), nao espiritual, e nao obstante especializou-se no falar em linguas e necessitou da correcao (1Co 12—14). Reconhecidamente o movimento pentecostal abrange pers- pectivas muito divergentes sobre santificagéo, e sua fonte de informacdo mais precisa s4o as Assembléias de Deus. Assim como Horton destacou em sua apresentacdo, 0 crente em Cristo é regenerado no momento inicial da salvacdo, batizado pelo Espirito, justificado e santificado inicialmente (santificacao posicional). Os membros das Assembléias de Deus deixam cla- ro que essa santificacdo inicial nado é completa. Ou seja, é se- guida da santificagéo progressiva na experiéncia posterior. Também ensinam corretamente que a santificacdo final, ou separagado completa da natureza pecaminosa e de todos os atos pecaminosos, ocorrera quando estivermos aperfeicoados no céu. Horton resume esse ensinamento no seguinte para- grafo, com o qual muitos ndo-pentecostais devem concordar. Os primeiros escritores das Assembléias de Deus também con- cordam que a santificagao é uma via de mao dupla. Por um lado, tem uma posi¢ao determinada e instantanea; por outro, é praticae progressiva. Nelson, Pearlman e Williams chamam a aten¢do paraa referéncia que Paulo faz aos crentes de Corinto, denominando-os santos e santificados em Cristo (1Co 1.2; 6.11). Contudo, ao mes- 162 = 5 perspectivas sobre a santificacao mo tempo, estavam longe da perfeicao. Muitos nao estavam an- dando a altura do chamado recebido, e alguns estavam envolvidos abertamente com o pecado (p. 124). Embora o movimento pentecostal tenha, no inicio, prega- do conceitos teolégicos rejeitados pelos nao-pentecostais, Deus abencoou o movimento por causa da busca sincera da santidade e do poder espiritual. Na refinada definicdo atual das Assembléias de Deus, a forma de tratar a doutrina da santificacdéo assemelha-se muito 4 do movimento wesleyano e mesmo 4a dos adeptos de outras posigées teoldgicas. A perspectiva WESLEYANA MELVIN E. DIETER ry z A perspectiva REFORMADA ANTHONY A, HOEKEMA 2 oO A perspectiva PENTECOSTAL STANLEY M. HORTON 4 A perspectiva de KESwick J, ROBERTSON McQUILKIN 5 A perspectiva AGOSTINIANO-DISPENSAGCIONALISTA JOHN F. WALVOORD A perspectiva de KESWICK Jd, ROBERTSON McQUILKIN Média nao significa necessariamente normal. Por exemplo, a temperatura média dos pacientes de um hospital pode ser 38°C, mas nao é a temperatura normal. A média de pontos de um grupo de amigos no campo de golfe pode ser 85 determi- nado dia, mas o normal pode estar nos 72 pontos. O mesmo se da com a vida crista. A experiéncia média dos membros da igreja é bem diferente das normas do NT para a vida crista. O cristéo normal caracteriza-se por reagir com amor 4 in- gratidao e a indiferenca, e mesmo 4 hostilidade, por ter ale- gria em meio a circunstancias infelizes e paz quando tudo da errado. O cristaéo normal vence a batalha contra as tentacdes, obedece firmemente as leis de Deus e vé aumentar seu auto- controle, contentamento, humildade e intrepidez. Seu pro- cesso mental é téo controlado pelo Espirito Santo e instruido pelas Escrituras que o cristéo normal reflete as atitudes e o comportamento de Jesus Cristo com autenticidade. Deus esta em primeiro lugar na vida desse cristéo, e o bem-estar dos outros tem precedéncia sobre os desejos individuais. O cris- tao normal tem poder nao s6 para viver piedosamente, mas para realizar o servi¢o da igreja com eficiéncia. Acima de tudo, ainda desfruta a companhia constante do Senhor. E a experiéncia média do cristéo, como é? Os membros da igreja pensam e comportam-se de modo muito semelhante aos nao-cristéos de conduta moral reta. Sao respeitaveis, mas nado existe nada de sobrenatural neles. O comportamento de- les é explicavel pela hereditariedade, o ambiente em que fo- ram criados e as circunstancias presentes. Pendem-se as ten- tacdes com mais freqiiéncia que resistem, entregam-se aos 166 = 5 perspectivas sobre. santiticagao desejos quando o corpo tem necessidade, cobicam o que nao tém, e gostam de receber crédito pelas conquistas. O que motiva suas escolhas é o interesse proprio e, embora sintam amor por Deus e pelos outros, esse amor nado |hes domina a vida. Melhoram pouco; alias, a maioria dos membros de igre- ja nao espera que haja grande mudanga e preocupa-se bem pouco com isso. A Biblia nao provoca entusiasmo, a oragao é superficial, e o culto na igreja néo revela quase nada de so- brenatural. A vida dos membros da igreja, acima de tudo, parece essencialmente vazia, pois nao gira em torno de um companheirismo pessoal e constante com o Senhor. PARA RESOLVER 0 PROBLEMA Quando se analisa qualquer problema espiritual, a maioria deve convir que ha iniciativas humanas e iniciativas divinas. O papel de Deus é prover a salvacao, e a responsabilidade humana é€ recebé-la. Se a salvacéo abrange tudo o que Deus faz para redimir o pecador, do contato inicial até a transfor- macao final na perfeita semelhanga de Cristo, certamente a provisdo da capacidade para viver uma vida cristé normal faz parte da obra salvifica de Deus. Assim como nos outros ele- mentos da salvacdo, o individuo é responsavel por apropriar- se, por meio da fé, da provisdo de Deus. Quando exploramos essa relacdo entre o papel de Deus ea responsabilidade humana, e principalmente quando coloca- mos em pratica essa solugdo na vida, tendemos a salientar um lado e a negligenciar o outro. Grande parte da polémica a respeito da santificacéo, ou de como viver com éxito a vida cristé normal, provém de enfatizar o papel de Deus e negli- genciar o papel do homem, ou de ressaltar a responsabilidade humana e minimizar a iniciativa divina. A postura de Keswick, entretanto, procura encontrar um meio-termo e uma solucdo equilibrada da perspectiva biblica para o problema da subex- periéncia crista. A POSIGKO DE KESWICK A historia e a mensagem de Keswick Keswick (pronuncia-se sem o “w”) é o nome de uma cidade de veraneio na regido dos lagos da Inglaterra, onde se reali- Aperspectiva de Keswick = 167 zam, desde 1875, convencées anuais para “a promocdo da santidade pratica”. Ao longo dos anos, diversos outros cen- tros de conferéncia foram criados com o propésito de difun- dir essa mensagem de esperanca — centros como, por exem- plo, o Keswick dos Estados Unidos e 0 extinto Keswick do Canada. A maior influéncia, porém, séo as convencées anuais realizadas em varias partes do mundo seguindo o padrdo ori- ginario de Keswick. A iniciativa partiu dos americanos, mas, desde a primeira convencao de Keswick, a liderancga é britanica. Sem excecdo, esses lideres eram pessoas que estavam muito frustradas com seu baixo nivel de experiéncia cristé (embora estives- sem na média) e ansiavam por uma vida baseada no poder do Espirito Santo. Eles encontraram essa vida em Keswick e juntaram-se a outros “crentes normais” para levar aos de- mais as boas-novas de que é possivel desfrutar essa experién- cia. A lideranca compunha-se de varias denominagées, com muitos lideres anglicanos, batistas, presbiterianos e outros, que dirigiam as convenc6es de Keswick na virada do século XIX para 0 XX. Keswick nao é um sistema doutrindrio, muito menos, uma organizacgaéo ou denominacado, o que talvez explique por que a participacao tem sido téo ampla. Embora muitos clérigos e intelectuais célebres tenham dirigido 0 movimento, nenhum lider Keswick escreveu um unico tratado sobre os ensinamen- tos de Keswick. Visto que nao existe nenhum tratado teoldgi- co oficial, alguns de fora do movimento interpretaram mal seus ensinamentos, sustentaram e ensinaram varias perspec- tivas doutrindrias em nome dos que se associaram ao termo Keswick. Apesar disso, é correto falar de uma mensagem ou postura comum em Keswick. Estamos em débito para com Steven Barabas por ter oferecido um tratamento seguro da historia e da mensagem das convencées de Keswick.! Embora nao tenha sido lider do movimento, sua andlise erudita e en- tusiastica recebeu a anuéncia da lideranga de Keswick. Barabas concluiu que o melhor resumo da mensagem de Keswick se expressa na “convocacaéo” da primeira convencdo — “Convencao para o Fstimulo a Santidade Pratica”.2 Também da uma definicéo mais extensa: No primeiro ponto do The Christian Pathway to Power [O cami- nho cristao para o poder, o redator declarou o que concebia como 168. = 5 perspectivas sobre a santificacao possibilidades praticas da fé. “Cremos que a Palavra de Deus ensi- na que a vida crista normal consiste em obter regularmente vitéria sobre o pecado conhecido; e que nenhuma tentacao nos é permiti- da sem que Deus providencie uma forma de escape para que pos- samos suporta-la.” Keswick jamais se afastou dessa conviccao. Desde 0 comeco até os dias de hoje, tem ensinado que a vida de vitoria e fé, de paz e descanso, é um direito que todo filho de Deus tem por heranca e pode usufruir [...] ‘ndo com longas oracées e esforco diligente, mas por um ato de fé deliberado e decisivo". Keswick ensina que “a experiéncia normal do filho de Deus deve ser de vitéria, ndo de frustracao constante, de liberdade, nao de escravidao, de ‘paz perfeita’, nao de preocupacao incansavel. Mos- tra que em Cristo ha providéncia para vitdria, libertacdo e descan- so docrente, e isso ndo se pode obter pela luta de uma vida inteira em busca de um ideal impossfvel, mas pela entrega pessoal a Deus e por intermédio do Espirito Santo que habita o crente”.? Numa das reunides da convencado de 1980, H. W. Webb- Peploe apresentou a diferenca entre o ensino comum e este numa frase concisa. “Antes, eu esperava errar e me surpreen- dia quando ocorria a libertacdo; agora, espero a libertacgédo e me surpreendo quando ocorre um erro”.* Embora essas afirmacdes tenham uma base teoldgica co- mum e haja possibilidade de considera-las um resumo da men- sagem, a teologia de Keswick é sobretudo a principal tendén- cia da teologia protestante. Dessa forma, foi possivel extrair lideranca de praticamente todas as principais correntes de pen- samento teolégico. Portanto, os variados destaques de Keswick, que podem ser mais bem entendidos com base no préprio mé- todo de realizacéo da conferéncia, sio essenciais para o en- tendimento da mensagem. 0 método de Keswick Uma convencdo de Keswick tradicional adota um tema es- pecifico a cada dia. O primeiro dia ressalta o pecado. O pa- drao divino de santidade e o fracasso humano sao considera- dos com os ouvintes visando abertamente promover uma profunda conviccao de pecado e necessidade espiritual. No segundo dia, apresenta-se a proviséo divina para a vida cristé vitoriosa. A obra completa de Cristo traz mais do que Aperspectiva de Keswick = 169 justificagéo — concede identificagéo. Na verdade, a uniaéo com Cristo é considerada o centro da teologia paulina. O capitulo 6 de Romanos é 0 capitulo do NT que expée de forma mais clara a doutrina da identificagao do crente com Cristo em sua morte e ressurreicdo. E impossivel exagerar, creio eu, a importan- cia desse capitulo paraa doutrina da santificacdo. E ucertadamente chamado de Carta Magna da alma e Lei Aurea do cristao.5 A proviséo de Deus para a vida cristé vitoriosa pode ser encontrada na obra perfeita e presenca viva de Cristo e na obra interior que o Espirito Santo realiza. Dos membros da Trindade, é o Espirito que santifica o crente. Ele age contra- pondo-se a atrac&o para baixo exercida pelo pecado. Nao eli- mina a suscetibilidade ao pecado, nem substitui a responsa- bilidade humana de crer e escolher. Antes, o Espirito exerce uma forga contraria que permite ao crente que confia e se entrega a Deus resistir com éxito a atracdo “para baixo” que sua disposi¢ao natural exerce. Keswick nao ensina a perfeicdo do ser humano antes do estado eterno, mas a possibilidade real de éxito na resisténcia a tentacdo de violar deliberada- mente a vontade revelada de Deus. O terceiro dia é absolutamente decisivo. O tema é a consa- gracdo, e as pessoas sao desafiadas, a luz dos préprios erros e incapacidades e diante da proviséo completa de Deus, a en- tregar-se incondicionalmente a Deus. A maxima de Keswick, “Sem crises antes da quarta-feira”, tem origem na conviccdo de que as pessoas devem perceber sua total rufna e a abun- dante proviséo de Deus para poder aceitar corretamente o desafio da entrega incondicional. “Vida no Espirito” é o tema do quarto dia. Esse topico é mui- to importante, pois o ensinamento mais caracteristico de Keswi- ck diz respeito ao direito adquirido por todo o cristaéo de viver uma vida plena no Espfrito.® Ser “cheio” aqui tem o sentido de ser “controlado por”. As pessoas de coragao obediente experi- ‘Ao de ser cheias com o Espirito’. As vezes, faz- se distincdo entre o estado normal de ser “cheio”, ou controlado pelo Espirito, e a experiéncia da “plenitude”, entendida como um revestimento para uma ocasiao especial. O Espirito Santo é a proviséo de Deus para a vida santa ¢ o servico eficiente. No inicio, as convengées tinham esses quatro destaques consecutivos: pecado, provisdo de Deus, consagracao e estar 170 = 5 perspectivas sobre a santificagao cheio com o Espirito. Muito cedo, porém, acrescentou-se um quinta tema: servico. A idéia desse ultimo destaque era fazer que os santos recém-preparados se voltassem para fora, para sua responsabilidade de servir a Deus e aos outros no poder do Espirito. Praticamente desde o inicio, porém, surgiu uma énfase especial no servico, que logo se tornou a marca regis- trada da Convencao de Keswick, isto é, misses, ou a evange- lizagéo mundial. Os voluntarios para o servico missionario em pouco tempo eram milhares, e a convencdo-mae susten- tou pelo menos financeiramente os que responderam ao cha- mado divino na convengao e recebeu relatorios correspon- dentes nos anos seguintes. Equivocos secundarios Pelo fato de Keswick ser uma grande sociedade e abranger pessoas de diferentes conviccdes teolégicas, nado surpreende que tenham surgido diferencas entre os lideres, mesmo quanto as doutrinas relacionadas a vida cristé. Contudo, em compa- racéo com os destaques do programa principal exposto ante- riormente, essas diferencas siéo secundarias. No que diz res- peito aos aspectos obscuros, nao se deve procurar estabelecer uma posicado oficial de Keswick, pois ela nao existe. Capacidade de nao pecar Keswick tem sido sistematicamente acusado de ensinar a perfeicdo crista, a idéia de que é possivel viver sem pecado. B. B. Warfield, por exemplo, em “The Victorius Christian Life” [A vida crista vitoriosa], capitulo final da obra Studies in Perfec- tionism [Considerag6es sobre perfeccionismo], afirma que essa éa postura de Keswick.* Os lideres de Keswick desmentem essas declaracdes de modo veemente, oficial e enfatico.® As informacées, entretanto,.nem sempre sao claras. Alguns ora- dores de Keswick falam sobre o estado espiritual em que o crente é capaz de nao cometer pecado, posicao normalmente considerada “perfeicao crista’. Parece que o problema esta na definicéo de pecado, como muitas vezes é o caso das diferencas existentes entre tedlo- gos no que diz respeito 4 perfeicaéo humana. O pecado é defi- nido como a violacéo deliberada da vontade revelada de Deus? Aperspectivade Keswick = 171 Em caso afirmativo, a capacidade de nado cometer esse tipo de pecado esta ao alcance de todo cristao, nao como a capacida- de extraordinaria de um “supersanto”, mas como a expectati- va normal — na verdade, a prova indispensavel — do cristia- nismo genuino. Keswick ensina que os cristaos, pelo poder do Espirito que habita neles, tém a capacidade de escolher nao violar deliberadamente a vontade conhecida de Deus. Mas sera que pecado também significa qualquer caréncia da gloria de Deus? E errado o crente deixar a desejar quanto a manifestar o glorioso carater de Cristo na disposi¢ao e na ati- tude? Sera que cometo pecado quando nao consigo amar como Deus ama, quando nao consigo ter dominio proprio, ser ale- gre, humilde e corajoso como Jesus foi? Se a vida de Jesus € 0 modelo da vida crista, quem podera alcanc¢a-lo, ainda que por um instante? Se a definicéo de pecado incluir essa deficiéncia involuntaria, entéo Keswick nado ensina que ninguém tenha nesta vida a capacidade de nado cometer pecado. No entanto, uma vez que muito da énfase na “vitéria” se concentra no campo da disposicdo, os preletores muitas vezes dao a jm- pressdo de que a vitéria compativel é possivel, tanto a vitéria contra a tentagdéo de cometer atos pecaminosos conscientes e deliberados, quanto a vitoria contra a deficiéncia nas atitudes inconscientes. Contudo, 0 ensino “oficial” afirma que todo crente nesta vida permanece com a tendéncia natura! ao pe- cado e cometera o pecado se o Espirito Santo nao exercer sua influéncia de equilibrio. Avelha natureza Outra area de confusaéo secundaria diz respeito ao incé- modo problema da relacdo entre as inclinagées naturais hu- manas e a nova vida em Cristo. Alguns palestrantes de Keswick defenderam a concepcao de que a vida cristaé é um campo de batalha entre a velha e a nova natureza do individuo. O “velho homem” e 0 “novo homem’” da analogia biblica sao usados para indicar a velha natureza, transmitida no nascimento, e a nova natureza, recebida no novo nascimento. Essa interpre- tacdo, todavia, nao representa a posicdo principal do ensina- mento de Keswick. Ha um consenso de que a velha natureza, denominada “carne” nas Escrituras, significa a disposi¢aéo na- tural para o pecado.'® O “homem natural” comporta-se dessa (72 = Sperspectivas sobrea santificacao forma, assim como muitos cristéos. Afirma-se que esses cris- téos estéo sob o jugo da escravidao, quando deveriam ser livres pela unido com Cristo na morte e ressurreicdo. Deveri- am, desse momento em diante, reivindicar a liberdade e viver de maneira condizente! Acredita-se em geral que a “velha natureza” é incapaz de melhorar,’ embora essa posicao nao seja defendida por todos. O antidoto para a vida conformada com a disposicdo natural é o poder de contraposi¢ao do Espirito.'? Por isso, ocorre uma batalha. Além do “descansar na fé”, existe o “lutar na fé”. Nao se trata de um conflito entre a velha e a nova natureza, mas entre a velha natureza e o Espirito Santo que habita o crente.’’ O ensinamento de Keswick, portanto, abrange estas duas areas de equivoco secundario: 0 que significa dizer que “o crente cheio do Espirito é€ capaz de nao pecar’? E 0 que acon- tece as velhas inclinagdes naturais do individuo na sua nova vida? As respostas do movimento de Keswick nao séo nem uniformes, nem claras. Por falta de um sistema detalhado da teologia de Keswick, pode se expressar a chamada perspecti- va de Keswick sobre santificacéo na medida em que ela for compativel com os destaques fundamentais do movimento. As secées a seguir representam essa tentativa. SANTIFICACAO Santificar significa literalmente separar, e no contexto bi- blico significa separar para Deus. Originariamente, essa sepa- rac4o era tanto moral quanto ritual. Um objeto, como um vaso, por exemplo, podia ser separado do uso comum para uso exclusivo no ritual do templo. Era portanto considerado san- to, Mas, por um lado, havia um significado mais profundo e mais duradouro na separacdo do individuo do pecado e, por outro, sua consagracado a Deus. Alguém que seja separado do pecado (santificado) é corretamente chamado de santo. E esse sentido moral e teolégico de santificagdéo que esta sendo estu- dado neste livro. Ser santificado é de extrema importancia, pois, sem santifi- cacao, ninguém vera a Deus (Hb 12.14). Isto é, enquanto nao se tratar do problema do pecado, ninguém esta apto a associar-se com um Deus santo, um Deus completamente isento de peca- do e que, além disso, nao pode tolerar nenhum tipo de pecado. Aperspectiva de Keswick = 173 Contudo, Deus nao é apenas santo; acima de tudo, ele é um Deus de amor, e portanto seu maior desejo para com o ser humano é trazé-lo de volta 4 comunhao plena e amorosa consigo. Mas existe uma barreira: o pecado. Para que haja com- pleta uniéo de coragao, é necessario que duas pessoas este- jam em harmonia de espirito. Devem ter os mesmos propéosi- tos, as mesmas perspectivas e o mesmo estilo de vida. Se um for pecaminoso e o outro santo, que tipo de unidade pode existir? A viséo que eles tém do mundo esta totalmente em conflito. Por isso, para que o propdésito maximo da existéncia seja alcancado, isto é, viver em unidade amorosa com Deus, temos de eliminar a barreira do pecado. O processo de elimi- nacgdo se chama santificag¢éo e ocorre em trés estagios, que sdo obra da graca do préprio Deus. OQ primeiro passo é a santificacgéo posicional [inicial], em que o pecador é separado do pecado para tornar-se proprie- dade exclusiva de Deus. A separacao do pecado ocorre de trés formas: a) Em primeiro lugar, a pessoa é perdoada, de forma que a conseqiiéncia do pecado, a punicao eterna, é eliminada. b) Em segundo, a pessoa é justificada para remocdo da culpa, da lembranga pecaminosa. Deus nao vé mais essa pessoa como um pecador fraco, obstinado, falho, mas como alguém puro e imaculado como seu Filho Jesus. Esses dois aspectos da santificagéo posicional sao ju- diciais, ou seja, um acordo entre o Pai e o Filho que declara o perddo ao pecador e o torna justo diante de Deus. c) Em terceiro lugar, a pessoa perdoada e justificada é re- generada, ou libertada da autoridade controladora de uma disposicdo pecaminosa. Alguns consideram essa etapa parte da santificacdo pratica, ja que se trata mais de uma condicdo a ser vivida que da concessdo de um ato legal, como no caso do perdao e da justificagao. Eu a incluo na santificagdo posicional, uma vez que faz parte do processo inicial da salvacaéo e resulta numa posigdo que é a condi¢ao de todo crente verdadeiro. A mudanga é tao radical que se compara ao nascimento Vo 3) ou a morte (Rm 6), Ainda que se mantenha a mes- ma personalidade humana, como no caso do nascimen- to ou da morte, na regeneracdo ocorre uma passagem 174 = Sperspectivas sobre a santificagéo para uma dimensao totalmente diferente da vida hu- mana, com caracteristicas totalmente diversas para o ser humano. O pecado é a caracteristica predominante dos que vivem separados de Deus. Eles nao tém vonta- de nem forca para escolher o certo ou para mudar sua condicao. Pela unidéo com Deus, o processo é contrari- ado, e o certo comeca a prevalecer. O poder da nova vida pode triunfar sobre a disposicaéo pecaminosa. Os cristéos podem até nao viver dessa forma, mas essa é sua verdadeira posicao e potencial. Nesses trés aspectos, todo crente foi santificado por meio da morte expiatoria de Cristo (Hb 10.10), foi feito santo (Ef 4.24) e, por isso, é chamado legitimamente de santo (1Co 1.2; 6.11). Nem todos os crentes vivem de forma santa, como é eviden- te, mas todos os crentes verdadeiros sao santos, foram liber- tados oficialmente da condenac4o resultante do pecado, da culpa imposta e da tirania da disposicao pecaminosa. Esse primeiro elemento da santificagdéo é chamado de “santificacéo posicional”, pois é a condicao desfrutada por todo filho ver- dadeiro de Deus. O segundo elemento da santificacaéo chama-se “santifica- Gao pratica”, que é a manifestacdo exterior da posicao oficial do crente no dia-a-dia. A santidade é mais que uma condicao legal; significa ser salvo de atitudes e agées pecaminosas. Os filhos sao disciplinados para experimentarem um pouco da santidade de Deus (Hb 12.10). Somos convocados a comple- tar, ou aperfeicoar, o nivel de santidade que temos (2Co 7.1). Esse processo de santificagdéo é disponivel a todos os que se acham, pela graca de Deus, na posicgaéo de separados do peca- do para serem propriedade de Deus. Finalmente, existe a santificagéo completa e permanente, que ocorrera quando o crente for transformado a semelhanca de Jesus — quando “o veremos como ele é” (lJo 3.2). Essa condi¢ao final, comumente chamada ‘“glorificagéo”, € um es- tado de santificacéo completa em que o crente nao é mais tentado pelo pecado nem é suscetivel a ele. Embora existam esses trés sentidos, no projeto divino de transformar pessoas imperfeitas em santos, a doutrina da santificacéo concentra-se no segundo: como o crente pode se libertar dos pensamentos e atos pecaminosos? Por que 0 cris- téo médio nao é muito consagrado, nao reflete nitidamente o Aperspectiva de Keswick = 175 carater de Cristo, leva uma vida muito parecida com a de qual- quer pessoa n&o-crista de bons principios e faz uso de prati- camente 0s mesmos recursos que 0 nao-crente para isso? A CAUSA DA SUBVIDA CRISTA: INCREDULIDADE A Biblia reconhece uma diferenga basica entre os cristaos. Ha distingao entre os crentes carnais, que agem como pesso- as nao-convertidas, e os crentes espirituais, cuja vida é domi- nada pelo Espirito de Deus (1Co 3.1-3). Todo cristao é habita- do pelo Espirito Santo (Rm 8.9), mas apenas alguns sao “cheios do Espirito”. As Escrituras falam de cristéos imaturos (ou in- fantis) e de cristéos maduros (Hb 5.11—6.3). Mais do que ma- nifestar apenas diferencas no nivel de crescimento espiritual, a vida do crente revela diferengas qualitativas: alguns tém um padrao de vida marcado por derrotas, enquanto outros tém um padrao caracterizado pelo sucesso espiritual. Certa vez, um aluno me perguntou: “Por quanto tempo al- guém pode ser carnal?”. Uma pergunta muito interessante! Talvez ele quisesse dizer: “Por quanto tempo alguém pode viver no pecado sem perder a salvacao?” ou “Por quanto tem- po alguém pode viver no pecado até que comprove que nun- ca pertenceu a familia de Deus?”. Ou sera que ele tinha a espe- ranca de poder escolher uma estrada inferior e seguir por ela o tempo todo e ainda assim chegar ileso a casa? Essa questéo deixa perplexos crentes sinceros, fascina tedlogos e divide o cristianismo. As Escrituras, entretanto, nao nos dao opinido sobre o assunto. Embora a questao da seguranca eterna seja importante, sou estimulado pela abordagem biblica do pro- blema do cristéo que vive em pecado a supor que, para fins pastorais (ou evangelisticos), na busca de recuperar o indivi- duo atolado na lama da subexperiéncia crista, pode ser legiti- mo deixar de lado a questao, por enquanto. A Biblia trata das pessoas na condicao em que estao e sé raramente da resposta aos problemas tedéricos que nos afli- gem. Por exemplo, para animar os santos que desejam arden- temente agradar a Deus, a Biblia renova-lhes a confianca de maneira abundante. Nada podera separa-los de Deus (Jo 10.28,29; Rm 8.31-39) e eles certamente completarao seu ca- minho com sucesso por meio da graca (Fp 1.6). Porém, para os que constante e deliberadamente rejeitam a vontade reve- 176 = 5 perspectivas sobre santificagao lada de Deus, as Escrituras apresentam nado confirmacdo, mas adverténcias terriveis. Vocés os reconhecerdao por seus frutos. Pode alguém colher uvas de um espinheiro ou figos de ervas daninhas? Semelhante- mente, toda arvore boa da frutos bons, mas a arvore ruim da frutos ruins. A arvore boa nao pode dar frutos ruins, nema arvore ruim pode dar frutos bons. Toda arvore que nao produz bons frutos é cortada e langada ao fogo. Assim, pelos seus frutos vocés os reco- nhecerao. “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrara no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que esta nos céus. Muitos me dirao naquele dia: ‘Senhor, Senhor, nao profetizamos em teu nome? Em teu nome nao expulsamos deménios e nao realizamos muitos milagres?’ Entao eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocés, que pra- ticam o mal! (Mt 7.16-23). Todo aquele que nele permanece nao esta no pecado. Todo aque- le que esta no pecado nao o viu nem o conheceu. [...] Aquele que pratica o pecado é do Diabo [...]. Desta forma sabemos quem sao os filhos de Deus e quem sao os filhos do Diabo: quem nao pratica a justica nao procede de Deus, tampouco quem nao ama seu irmao. [...] Sabemos que ja passamos da morte para a vida porque amamos nossos irmaéos. Quem nao ama permanece na morte (1 Jo 3.6,8,10,14). Essas e muitas outras passagens (e.g., Mt 23; 25.31-46; Jo 15.2,6; Hb 3.6-19; 6.1-8; 10.26-31) mostram claramente a po- sicdo das Escrituras ao dirigir-se ao pecador: o arrependimento é a tnica opcao. Como, entao, conciliar as duas correntes de ensino? Os membros da igreja que vivem no pecado estao salvos ou per- didos? Sera que ja foram salvos? Eu tenho minhas opiniées — mesmo conviccdes — quanto a resposta a algumas dessas per- guntas, mas, ja que o Espirito Santo nao achou necessario res- ponder-lhes diretamente nas Escrituras, néo me sinto obriga- do a fazer isso em relacéo ao debate do problema de cristaos declarados que vivem no pecado. Em vez de brincar de Deus e tentar especular sobre a questao, é melhor responder a per- gunta basica que precisa ser levantada: O que devo fazer para ser salvo? Qualquer que seja a condicaéo da pessoa diante de Deus, se, nesse momento, ela néo tem um bom relacionamento com ele, deve passar a ter. Se continuar rejeitando a vontade Aperspectivade Keswick = 177 revelada de Deus e sentindo-se bem nessa posi¢ao0, posso ga- rantir-Ihe, com base na autoridade das Escrituras, que nao ha base biblica para ter nenhuma garantia de salvacdo. Sua unica opc¢do é o arrependimento. Assim como uma pessoa perdida pode fazer o certo (At 10.4,35), mas nado pode escolher fazer o certo (Rm 8.7,8), do mesmo modo uma pessoa salva pode fa- zer o que é errado (Tg 3.2; 1Jo 1.8), mas nado pode escolher fazer o errado (1Jo 3). Juntamente com essas verdades, entretanto, fica evidente nas Escrituras que existem crentes pecadores (1Co 8.12; 15.34; 1Tm 5.20; 1Jo 5.16), muitos dos quais levam uma vida pareci- da com a das pessoas do mundo e que optaram por uma vida crista inferior. Ndo sei por qué, o quadro retratado pelo NT de uma qualidade de vida sobrenatural alcancada pelo poder do Espirito parece frustra-los. Quais os motivos para isso? Ignorancia Paulo protesta: “Vocés nado sabem?” (Rm 6.16). Seus leitores deviam saber o que ocorreu quando se aproximaram de Cris- to e deveriam saber viver de forma piedosa — mas talvez nao soubessem, Entdo, Paulo explica. Na verdade, o grande nu- mero de ensinos biblicos referentes 4 santificagao implica que é possivel ser ignorante sobre o tema, e que é preciso apren- der o que é certo e o que é errado, e como fazer o certo. Entretanto, existe pouco ensino direto sobre o problema da ignorancia, principalmente como motivo para alguém dei- xar de levar uma vida cristé normal. Talvez esse problema ocorra por haver responsabilidade moral para a ignorancia. O novo convertido pode ser desculpado pelo desconhecimento e pelo comportamento espiritual infantil (Hb 5.11—6.3), mas manter-se nessa condicaéo nao somente é desnecessario, como também é errado (2Pe 1.5-9,12,13,15; 3.1,2). Em outras pala- vras, até certo ponto os crentes sao responsaveis pelo desco- nhecimento de sua condic¢ao crista inferior, da provisaéo divi- na da vida crista vitoriosa e da propria responsabilidade de apropriar-se dessa provisdo. Se esses crentes reagirem a luz que tém, Deus lhes provera todas as informacées necessarias para continuarem progredindo na vida cristaé normal. Contudo, ao afirmar isso reconhecgo que muitos cristaéos nunca tiveram acesso ao ensino sobre a possibilidade e a 178 = 5 perspectivas sobre a santificagao necessidade de viver em triunfo. Tais pessoas precisam de instrugéo. No momento em que recebem esclarecimento so- bre esse assunto, a raiz do fracasso fica explicita. Se a raiz do problema for a ignorancia, havera resposta imediata a nova informacdo, que sera aceita e posta em pratica. Por outro lado, se durante todo o tempo a verdadeira razdo foi a deso- bediéncia ou a incredulidade disfargada na desculpa do des- conhecimento, haverd resist@ncia a qualquer exortacdo ao ar- rependimento, ou a confiar em Deus para alcancar uma qualidade de vida radicalmente diferente. Pelo fato de a ig- norancia das possibilidades e dos recursos ser uma razao comum de expectativas frustradas na vida cristé, 0 povo de Deus necessita de instrucdo constante. Entretanto, a causa mais comum e mais fundamental para o fracasso é a incre- dulidade. Incredulidade Quando falo de incredulidade, refiro-me 4 falta da unica resposta aceitavel para Deus. A fé biblica tem dois aspectos, um é o mais passivo, que implica confianga e fé, e o outro, mais ativo, implica obediéncia. No AT, fé podia ser traduzida com mais precisdo por fidelidade na maioria dos casos, uma vez que 0 objetivo a ser alcancado era a resposta obediente a Deus. A palavra mais comum era temor, ou temor reverencial — 0 amém incondicional da alma a Deus, a expressdo da mes- ma exigéncia fundamental para qualquer relagdo aceitavel entre criatura e Criador. No NT, 0 aspecto subjetivo da confianga é predominante nos escritos de Jodo e de Paulo, mas a idéia primordial de obediéncia jamais se perdeu. Na verdade, foi esquecida por alguns, mas Paulo os admoestou contra essa interpretacdo equivocada. Tiago, principalmente, explorou profundamente a relagdo entre obediéncia e confianga como aspectos da fé salvadora. Embora sejam dois aspectos de um unico ato res- ponsivo, as vezes um deles sobressai pela auséncia (ou pre- sen¢a) de um em rela¢ao ao outro. Entretanto, na procura da origem da vida crista de atitudes e de conduta aquém do nor- mal, muitas vezes é util fazer distinguir entre desobediéncia e falta de confianga. Aperspectiva de Keswick = {79 Desobediéncia Rebeldia ativa. Essa causa de fracasso na vida crista é facil de identificar. Deus ainda é acessivel, ele néo mudou, e é ca- paz de vencer o conflito. Mas “suas maldades separam vocés do seu Deus” (Is 59.2). Ninguém que rejeite deliberadamente a vontade de Deus em determinada area pode esperar receber capacitacéo para viver de forma sobrenatural em outras are- as, e isso é uma verdade que a maioria dos cristdos que estado em rebeldia ativa conhecem. Desvio passivo. A segunda forma de desobediéncia é bas- tante comum e nao muito facilmente identificavel. Pelo insu- cesso em atingir os altos padrées divinos, pela negligéncia da meditacao, da oracdo e do envolvimento ativo na igreja, ou pelo acumulo de pequenas desobediéncias, quase inconsci- entes, que se transformam num tipo de insensibilidade espi- ritual, o crente pode abandonar o “primeiro amor” (Ap 2.4) e tornar-se indiferente e até hostil a Deus (Ap 3.15,16). O desvio passivo afasta o individuo de Deus tanto quanto a rebeldia ativa, mesmo que de forma mais demorada e mais dificil de identificar. Visto que essa condigéo de desvio passivo nao é reconhecida com facilidade, principalmente pela pessoa que a experimenta, esse estado é mais perigoso que a rebeldia ati- va. A relagao inicial de alianca com Deus foi violada, e o indi- viduo nao consegue mais experimentar a promessa divina de uma vida cristé normal, capacitada pelo Espirito. Acredito que o desvio passivo, um estado de desobediéncia, seja a razdo mais comum de fracasso na vida crista. Falta de fé As almas zelosas e temerosas podem ser culpadas de in- credulidade de outra forma. Anseiam pela vida santa, pela rendicado incondicional 4 vontade de Deus, pelo trabalho e pela luta, mas deixam a desejar. Esse insucesso pode dever-se em parte a expectativas ndo-biblicas, que analisaremos mais adian- te, mas em geral a origem do problema esta na falta de confianca de que Deus fara o que prometeu. As vezes, as pessoas demonstram essa falta de fé apoian- do-se em sua propria devocdo religiosa ou no empenho mo- ral para viver de forma agradavel a Deus (GI 3.3). A propésito, 180 = 5 perspectivas sobre santificacao essa autoconfianca é uma falta comum na maioria dos mem- bros sinceros das igrejas. Tiveram um comeco “pelo Espiri- to”, como diz Paulo, mas agora tentam tolamente viver a vida crista segundo seus proéprios esforcos. Entretanto, assim como é inutil buscar a salvacdo pelos préprios esforcos, também é impossivel obter piedade sozinho. Se foi necessario iniciar por intermédio do poder do Espirito, “pelo poder do Espirito perseveramos em nossa jornada de peregrinos” (GI 5.25, pa- rafrase do autor). “Portanto, assim como vocés receberam Cris- to Jesus, o Senhor, continuem a viver nele” (Cl 2.6). O primei- ro passo em direcdo 4 normalidade para muitos cristdos é abandonar o esforco proprio como caminho para o sucesso e€ reconhecer que s6 Deus pode realizar essa tarefa. Identificamos a desobediéncia e a falta de confianga como os motivos por que a maioria dos cristaos permanece na sub- condicao de derrota e miséria espiritual. Esses motivos refle- tem a enfermidade comum da incredulidade, para a qual é necessaria a cura da fé. ACURA PARA A DERROTA ESPIRITUAL: FE Em primeiro lugar, é importante reafirmar que existe cura. Existe de fato libertacéo do estado deploravel de servidio ao pecado e do fracasso: ela procede de Cristo, o Senhor (Rm 7.24,25). E possivel viver no Espirito e nao satisfazer a dispo- sicéo para o pecado, ser mais do que vencedores em Cristo e, dessa forma, participar “de toda a plenitude de Deus” (Ef 3.19). Aquele que é poderoso para impedi-los de cair e para apresen- ta-los diante da sua gloria sem macula e com grande alegria, ao tmico Deus, nosso Salvador, sejam gléria, majestade, poder e auto- ridade, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor, antes de todos os tempos, agora e para todo o sempre! Amém (Jd 24,25), Quando a Biblia aborda o problema de cristaéos fracassados € propde um caminho melhor, indica 0 momento em que a pessoa encontrou a graca salvadora. “Da mesma forma, con- siderem-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6.11). Na verdade, o principal texto biblico sobre o assunto, Romanos 6, indica repetidamente a experién- cia inicial, a santificacdo original, quando o pecador foi salvo do pecado. Reconhe¢a e apdie-se no que ja aconteceu, diz Paulo. Aperspectiva de Keswick = 181 O problema dos cristéos que se comportam de forma se- melhante aos incrédulos é apresentado em 1]Corintios 3. Qual é a solucdo? Paulo menciona o momento do “plantio”, quando 0 alicerce foi originariamente estabelecido: “Vocés nado sabem que s&o santuario de Deus e que o Espirito de Deus habita em vocés?” (v. 16). Paulo repreende os crentes de Corinto que viviam em pecado, mas no os exorta a procurar nenhum tipo de experiéncia que ainda nao tivessem vivido. Em vez disso, chama aten¢ao para a salvacao: “Examinem-se para ver se vo- cés estéo na fé; provem-se a si mesmos. Nao percebem que Cristo Jesus esta em vocés? A nao ser que tenham sido repro- vados!” (2Co 13.5). Pedro exulta com o fato de Deus ter-nos dado, por meio de Cristo, todos os recursos necessarios para a vida e a piedade. Depois de falar da maravilhosa vida que 0 cristao tem, o apés- tolo reconhece que nem todos os cristaos desfrutam essa vida. O que fazem, entao? “Todavia, se alguém nao as tem, esta cego, s6 vé o que esta perto, esquecendo-se da purificacéo dos seus antigos pecados” (2Pe 1.9). Nao conhego nenhuma excec¢ao a solugao provida no ensi- no dos autores neotestamentiarios para os cristéos que vivem no pecado, derrotados e fracassados. Essa solucdo € 0 retor- no ao que ocorreu no momento da salvacdo. Esses crentes foram levados da morte para a vida, unidos a Cristo e habita- dos pelo Espirito. As Escrituras tratam desse modo o fracasso porque 0 suces- so na continuidade da vida cristé, assim como o sucesso ao inicia-la, néo depende do dominio de algum sistema doutrina- rio complexo nem do recebimento de alguma experiéncia eso- térica extra, mas do relacionamento com uma pessoa. Esse relacionamento é tao simples que até uma crianca pode enten- der e experimentar. (Talvez apenas as criancas consigam fazer isso!) A fé simples é 0 segredo, seja para a salvacao inicial, seja para a libertacdo posterior, ou mesmo para a santificacao posi- cional ou a pratica. A relagao de alianga (ou contratual) de fé éa solucdéo para o problema do pecado — para o pecador nao- redimido e também para 0 redimido. Embora a doutrina correta e a experiéncia de transforma- ¢ao de vida sejam extremamente importantes, a chave para solucionar o problema da subvida crista encontra-se no rela- cionamento pessoal. Aqueles que estaéo confusos pelas con- 182 = 5 perspectivas sobrea santificagao trovérsias doutrinarias que dao voltas em torno de um as- sunto, bem como os que se sentem inseguros quanto as ex- periéncias passadas, ou frustrados pela incapacidade de re- produzir a experiéncia de outros, devem téo-somente avaliar sua relacdéo atual com Deus. Jesus Cristo é o Senhor de sua vida? Se for, ele assumira a responsabilidade de transformar 0 cristéo fracassado num individuo vitorioso. Se, porém, esse contrato inicial de fé foi violado, néo ha necessidade de bus- car uma experiéncia nova ou diferente. A alianga inicial preci- sa ser confirmada. E assim como no arrependimento, em que crentes pecadores receberam vida pela graca de Deus, o cren- te confiante que se entrega a Deus recebera vida em abundan- cia pela gracga de Deus. A fé é necessaria porque Deus é necessario. As pessoas nao podem salvar nem santificar a si mesmas. Deus é necessario para libertar do pecado e para dar o éxito na vida crista. Sabe- doria e poder, entretanto, ndo se recebem automaticamente. Deus nao impée suas béncdos as pessoas que nao as dese- jam. Logo, se alguém deseja receber algo de Deus, deve confiar nele para isso (Tg 1.6,7). As pessoas autoconfiantes podem conseguir tudo o que seus recursos s40 capazes de produzir, mas esses recursos nao podem produzir reconciliagéo com Deus nem vida piedosa. A pessoa que confia em Deus, por outro lado, tem 4 sua disposi¢ao os recursos sao capazes de divinos. O objeto de nossa fé, portanto, é de extrema importancia. Algumas pessoas perdem-se por confiar em experiéncia ou sentimento pessoal. Naturalmente, a resposta amorosa a Deus e a conseqiiente experiéncia genuina sdo essenciais, mas nem a experiéncia passada, nem a emocdo presente devem substituir 0 objeto da fé. Outras pessoas tém fé na fé — o que importa, dizem, nao é aquilo em que vocé cré, mas se vocé cré. Esses deuses sao falsos. O proprio Deus deve ser 0 objeto da fé se quisermos receber suas béncaos. Portanto, a fé é o segredo para tomar posse da proviséo divina para a vida cristaé bem-sucedida. Nao se pode viver a vida cristé sem essa provisdo. Por meio da fé, somos perdoa- dos e recebemos a vida do Espirito. Depois disso, enquanto continuamos confiando em Deus Espirito Santo, os meios de graca tornam-se ativos em nossa vida. Embora o Espirito nos tenha dado a Biblia, temos de nos aproximar dela com fé, de outra forma ela se transforma num A perspectiva de Keswick = 183 meio de destruicdo, ndo de béncao. Repito: nado sabemos orar como convém, mas, quando confiamos no Espirito e oramos confiantes em sua capacitacdéo, esse meio de graca passa a ser eficaz. O mesmo ocorre com a igreja e os outros meios de graca. A fé aciona o interruptor, libera a corrente de poder divino. Sem fé nao existe corrente elétrica, nado existe poder. O que éa fé Freqtientemente distingue-se entre a fé do coragao (emoci- onal) e a da mente (racional), Diz-se que a pessoa pode crer racionalmente em fatos a respeito de Deus e, apesar disso, se nao tiver confianca no coracdo, estara a meio metro de dis- tancia da salvagao. Essa distin¢ao, todavia, nao é biblica. Fe- lizmente. Afinal, como se pode distinguir teologicamente — sem falar na perspectiva psicologica e anatémica — entre as atividades racionais e emocionais da mente? A Biblia faz dis- tincdo, sim, mas apenas entre a fé do coragdo e a confissao dos labios (e.g., Mt 15.7-9), entre o que se pode chamar de fé verdadeira e fé falsa. Fé falsa A fé falsa pode ser a que se deposita num objeto errado. Se confio nas experiéncias do passado, em meus recursos, ou nas promessas de que me aproprio de forma errada, nao te- nho a fé salvadora e santificadora. Mais uma vez, algumas pessoas podem enganar-se crendo que confiam em Deus, quando na verdade confiam em sua propria bondade. Por exemplo, se a motivacdo de alguém é sua propria gloria em vez da gloria de Deus, essa “fé” é na verdade presuncosa (Jo 5.44), e presuncaéo é uma forma de fé falsa. Outro tipo de fé falsa é a incompleta, parcial. A fé salvadora e santificadora envolve todo o ser, incluindo intelecto, emo- ges e vontade. Ou seja, a verdadeira fé envolve entendimen- to, amor e decisdo. Se faltar algum desses elementos, é uma fé inadequada. Muitos crentes vivem uma vida de fracasso por- que, embora creiam nos fatos e tenham entusiasmo pelo Se- nhor Jesus e pesar pelos erros que praticam, nado fazem as escolhas exigidas por Deus. 184 = 5 perspectivas sobre a santificagao Definigéo de fé Alguns acham que fé é um dom miraculoso do Espirito Santo que contraria as provas. Outros adotam a posicao con- traria de que a fé é induzida por provas convincentes, como, por exemplo, a Biblia, provas filosoficas ou a experiéncia. Se- gundo Charles Hodge, chamado por alguns de “o principe dos tedlogos”, fé é a persuasdéo da verdade fundamentada no testemunho." Ele usa a palavra persuasdo, e nado prova. Tam- bém emprega a palavra testemunho. Provas histéricas sao di- ferentes de provas matematicas ou de fatos cientificamente observaveis. A persuasao baseia-se em provas, naturalmen- te, mas é a prova do testemunho — no caso das Escrituras, 0 testemunho dos profetas e dos apéstolos. Ha muitas raz6es para considerar esse testemunho completamente digno de confianca: o carater dos que o prestaram, a unidade do tes- temunho, seu contetido e assim por diante. Contudo, a pro- va, por si s6, néo induz a aceitacdo. A obra do Espirito Santo é necessaria e, dessa forma, a fé 6 um dom miraculoso que confirma as provas e até leva o individuo para além das pro- vas, se necessdrio. A obra do Espirito nao contradiz as evi- déncias, nem é uma “opiniao” baseada em provas cientificas irrefutaveis. A fé @ ao mesmo tempo dom de Deus (Ef 2.8) e responsabili- dade nossa. De que maneira a soberania de Deus, a autoridade auténoma e nossa responsabilidade de crer se relacionam en- tre si, as Escrituras nao esclarecem. O que a Biblia deixa claro, entretanto, é que devemos responder com fé obediente para receber as promessas da salvacdo. Em resumo, a fé é a decisao de dedicar-nos total e incondicionalmente a4 pessoa de Deus, revelada na Biblia e testemunhada pelo Espirito Santo (1Co 2.14; Rm 10.17). Niveis de fé Existem niveis de fé? A fé deve ser absoluta para ser eficaz? Ao que parece, as Escrituras respondem tanto sim quanto nao a essas perguntas. Quando os discipulos pediram que Jesus Ihes aumentasse a fé, este respondeu que até a menor fé seria suficiente (Lc 17.5,6). Nesse aspecto qualquer medida de fé é suficiente, uma vez que nao é a fé em si que salva, mas o Aperspectivade Keswick = 185 objeto a que ela se dirige. Alguém pode ter muita fé em cima de uma camada de gelo fina e cair na agua, mas pode ter uma fé fraca sobre uma grossa camada de gelo e salvar-se. Por outro lado, Paulo fala de medidas de fé, o que indica que existem diferentes niveis de fé (Rm 12.3-8). O pai do menino endemoninhado exclamou: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade!” (Mc 9.24). A medida de fé necessaria para que o poder de Deus opere relaciona-se com os trés aspectos da fé apresentados anteriormente. O entendimento intelectual dos fatos pode ser inadequado. Determinada pessoa pode nao sentir a emocao da seguranca confiante, nem a paz no cora¢ao, sobre essa questao. No entanto, se essa pessoa decidir agir em obe- diéncia a Deus e comecar a responder a vontade conhecida de Deus, essa decisdo é fé salvadora, ou fé santificadora. Essa pes- soa pode sentir-se um pouco insegura, ficar com medo e ser incapaz de prever o resultado do passo de obediéncia. A ques- tao principal, porém, é: “Qual é a resposta da vontade?”. Provas de fé e de incredulidade A pessoa que vive pela fé pode ter — na verdade, deve ter — paz interior, comportamento semelhante ao de Cristo, uma profissaéo de fé doutrinariamente correta, conviccéo e segu- ranca inabalaveis. Nenhuma dessas caracteristicas, porém, € a prova principal da fé suficiente. £ possivel sentir paz interior com a confianga dirigida para 0 objeto errado — como ocorre com os seguidores de falsos deuses e também com alguns cris- téos que confiam em certas promessas biblicas das quais se apropriam indevidamente. Repito o que foi dito anteriormen- te: o estado emocional pode variar segundo as mudancas ocor- ridas no estado de satide e das circunstancias. O carater semelhante ao de Cristo é resultado da fé verda- deira. Por outro lado, nem todo carater resulta da fé biblica. E perfeitamente possivel alguém em circunstancias ideais cul- tivar um grau admiravel de integridade pessoal e bom com- portamento sem o poder regenerador de Deus. Quanto a dou- trina correta, até os deménios conhecem a verdade. A prova mais importante de fé, como vimos, é 0 compro- misso irrestrito de fazer a vontade de Deus. A obediéncia pode nao evidenciar fé madura nem completa, mas certamente é prova da existéncia de alguma fé. Abrado provou ter fé pela 186 = 5 perspectivas sobrea santificaéo obediéncia (Tg 2.21-24) e Israel provou a incredulidade pela desobediéncia (Hb 3.18,19). Decidir obedecer é absolutamen- te necessario para aproximar-se da familia de Deus e para cres- cer como filho dele, uma vez que Deus nao impée a ninguém a obediéncia. A fé da liberdade para que o Espirito Santo atue. A incredulidade, ou a desobediéncia, interrompe essa obra. Note-se que é perfeitamente possivel para a vontade con- trapor-se as emoc¢ées, como Jesus demonstrou no Jardim do Getsémani, quando primeiro clamou, angustiado, por liberta- ¢do, mas por fim escolheu fazer a vontade do Pai. Em geral, os outros dois elementos da fé, a saber, resposta emocional e entendimento, acompanham a escolha de obediéncia (Jo 7.17). Como vimos, é possivel ser um cristéo que nao se entre- gou completamente, embora nao haja apoio biblico legitimo para a seguranca de salvacdo dos que rejeitam deliberada- mente a vontade revelada de Deus. “Pois se vocés viverem de acordo com a carne, morrerao” (Rm 8.13). De qualquer modo, sem essa confianca fundamental no relacionamento de salva- cdo com Deus, o crescimento da vida crista torna-se impossi- vel. Se houver rejeicdo duradoura da vontade revelada de Deus, essa pessoa certamente nao esta vivendo pela fé. Além disso, a Biblia ensina claramente que Deus salva quem tem fé. Por- tanto, o elemento essencial da fé para 0 desobediente é a obe- diéncia. A pessoa obstinada deve render-se. As Escrituras apresentam varias provas de um coracdo que nao se rendeu: relacées pessoais irreconciliadas, espiri- to nado perdoador, queixumes, criticas destrutivas, persis- téncia no erro mesmo quando se descobre que isso é peca- do, mais angtistia pela mdgoa pessoal que por entristecer a Deus, decisdes em beneficio proprio em vez da promocao dos propositos divinos, e busca da exaltacdo por parte de outras pessoas. Mesmo que alguém nao demonstre rebeldia consciente, comportamentos como esses indicam que a essa pessoa precisa decidir entregar-se incondicionalmente a von- tade de Deus. O retorno a normalidade, a vida crista sobrenatural, para aqueles que tém uma subvida cristé deve ocorrer mediante a entrega. Mesmo que essas pessoas concentrem os esforcos na busca de um entendimento mais apurado ou na experiéncia de libertacéo emocional ou na sensa¢do de bem-estar, esses es- forcgos se mostrarao infrutiferos se elas ndo decidirem sujeitar-se. Apperspectiva de Keswick = 187 Dependendo da intensidade do conflito, do tempo vivido sem comunh§fo e da personalidade do individuo, essa deci- s4o pode representar uma grande crise emocional. Contudo, mesmo que nao haja emogGes, por se tratar de um ponto de transformacado, de um acontecimento decisivo, essa decisdo é corretamente chamada de crise, Para essa pessoa, a experién- cia cristé normal, a vida vitoriosa, nao é produto de um pro- cesso gradativo de crescimento espiritual, muito menos de um progresso automatico. E preciso um momento decisivo. E necessario haver esse momento critico na vida de todo cristéo? Como se demonstrou, as Escrituras conduzem o cris- tao fracassado de volta ao momento em que ele firmou uma relacdo de alianca com Deus. O ideal, portanto, é o individuo que entrou nesse tipo de relacionamento de salvacéo poder conserva-lo — na verdade ele tem esse dever. Nao ha nenhu- ma exigéncia teologica da segunda crise espiritual. Na prati- ca, porém, a maioria dos crentes néo cumpre suas responsa- bilidades nessa alianga, seja por rebeldia explicita, seja por fraqueza espiritual. Portanto, esses crentes tém de decidir abandonar aquilo em que se transformaram e voltar para o que podem e devem ser em Cristo. Em resumo, o proprio Deus é a chave para a vida cristé bem- sucedida; ele, como também seus recursos, estéo disponiveis a todo aquele que tem fé. S6 por meio da fé iniciamos e mante- mos o relacionamento que libera o fluxo infinito de graca. Essa fé biblica é uma escolha e um atitude. A escolha é obedecer, e a obediéncia comeca com o arrependimento, conserva-se com 0 espirito submisso e comprova-se fazendo uso dinamico dos meios da graca e da zelosa acdo afirmativa de ser tudo o que Deus deseja que sejamos. O ato é crer, como uma crian¢a, que deposita a confianca amorosa somente em Deus. RESULTADOS DA RELACAO DE FE COM DEUS A fé produz a salvacdo por meio da graga de Deus. Como, porém, definir essa salvagdo? Alguns advogam que a “salvacdo completa” significa uma vida moralmente perfeita. Como vimos, a unica forma de definir qualquer mortal como moralmente per- feito é definir o pecado como violacdo deliberada da vontade revelada de Deus e a perfeicao como a condi¢ao em que se deci- de agir em obediéncia. Examinemos essas defini¢ées. 188 = 5 perspectivas sobre a santificacao Em primeiro lugar, a distingéo entre pecado deliberado e involuntario é biblica? Ainda que os ensinamentos biblicos que tratam diretamente do assunto sejam limitados, eles exis- tem e sdo uteis para resolver alguns dilemas fundamentais relativos as doutrinas do pecado e da santificagéo. O AT faz nitida distingao entre pecado deliberado (ou consciente), por um lado, e involuntario (nao-intencional), por outro (e.g., Ex 21.12-14; Nm 15.27-31). E feita grande diferenca entre o pro- prio pecado, a culpa dele decorrente e a punicdo imposta. A distincao entre pecado deliberado e pecado involuntario ajuda a resolver o problema do ensino sobre o pecado de 1Joao, por exemplo, em que o apéstolo afirma: (1) aquele que diz que ndo tem pecado esta mentindo (1.8-10) e (2) aquele que pratica o pecado nao é nascido de Deus (3.6,8-10)! A con- tradic&o aparente é ao menos minimizada quando observamos que o tempo verbal (em 3.6,8-10) pode ser tranqiiilamente in- terpretado como atividade continua de pecado, que por defini- cao é pelo menos consciente, se nao certamente deliberado. A atividade pecaminosa continua, afirma Joao, é sinal certo da condigaéo de nao-convertido. Ao mesmo tempo, se alguém afir- ma que nao tem pecado algum, inclui, por defini¢ao, todo tipo de pecado, 0 involuntario e o deliberado. Ninguém pode dizer- se livre de pecado, diz Jodo. Portanto ninguém é absolutamen- te isento de pecado, segundo a Biblia, uma vez que é, no mini- mo, continuamente culpado por nao alcangar a perfei¢ao divina, mesmo inconsciente dessa insuficiéncia. Por outro lado, conti- nuar praticando deliberadamente o pecado é sinal de um esta- do de alienac&o de Deus. Logo, a distin¢ao entre pecado delibe- rado e involuntario é valida da perspectiva biblica. Ainda que a distinc¢ao entre pecado deliberado e pecado involuntario seja sdlida da perspectiva doutrindria e ferra- menta util para desvendar alguns mistérios da salvacdo, na vida cotidiana a linha divisoria entre esses tipos de pecado é muito ténue e nem sempre pode ser identificada com preci- sao ou facilidade. Por exemplo, quando alguém se ira, essa atitude é considerada deliberada e consciente ou seria invo- luntaria? Talvez o inicio seja involuntario, mas a continuida- de do estado de ira passa a ser atitude voluntaria. Qual seria entado 0 momento exato em que o pecado comega e a perfeicdo sai de cena (para os que acreditam em perfeicdo)? Ninguém quer perder uma condi¢ao tao privilegiada, por isso é muito Aperspectiva de Keswick = 189 mais facil dar a essa atitude o nome de “indignacao justa’. Pode até ser, naturalmente, mas, se as pessoas acreditam vi- ver em estado de perfeicado, a tentacdo é redefinir as reagdes inferiores e considerda-las validas. O grande risco da distingao entre pecado deliberado e pecado involuntario é a infinita ca- pacidade humana de apresentar justificativas. Além disso, de- vemos classificar pecados habituais como a embriaguez e a glutonaria como voluntarios ou involuntarios? Depois de reconhecer que ha dificuldades para distinguir pecados conscientes e voluntarios de pecados inconscientes e involuntarios, principalmente no ponto em que ha intersec- ¢do entre eles, temos de convir que para a maior parte dos comportamentos essa distingdo é clara e pode ser identifica- da de imediato: as pessoas decidem deliberadamente fazer 0 que sabem ser errado ou, por outro lado, estaéo verdadeira- mente inconscientes da incapacidade de alcancar a perfeicaéo de Deus. Entretanto, o problema em questado é muito mais elementar: acredito que nem a definicao de pecado (restrita a escolhas deliberadas), nem a definicdo de perfeic¢ao (auséncia de pecado voluntario) sejam biblicas. Como ja vimos, de acordo com a Biblia, pecado é qualquer caréncia da gloriosa perfeicéo do proprio Deus (e.g., Rm 3.23). Essa caréncia é tratada nas Escrituras néo como prova da li- mitagéo amoral do ser humano, mas como pecado. De acordo com essa definicao, ninguém é perfeito, nem por um instante sequer. Dessa forma, a perfeicdo impecavel nado é conseqtién- cia do encontro inicial com Deus, nem de nenhum encontro posterior. Alimentar essa expectativa pode ser profundamen- te frustrante para os que nao alcancarem esse estado e extre- mamente perigoso para os que pensam ja té-lo atingido. A Biblia de fato fala de perfeicao crista (e.g., Mt 5.48; Fp 3.15; Tg 1.4), mas a palavra grega é a que se emprega comumente para maturidade, termo mais condizente com o ensino biblico da santificacao que a idéia de infalibilidade; maturidade é a pala- vra preferida na maioria das traducdes contemporaneas. Embora nem todos concordemos com essas defini¢ées, tal- vez no interesse de trabalhar juntos para resolver o problema da subvida crista, outras pessoas aceitem a hipotese de traba- Ihar a idéia de pecado tanto como a violacdo deliberada da vontade conhecida de Deus quanto como a incapacidade de chegar a perfeicéo moral de Deus. Tomando por base essas 190 = 5 perspectivas sobre santificagao definicées, surge a pergunta: O que uma relacao de alianca de fé produz? Uma nova pessoa Como vimos, as pessoas que estado unidas a Cristo pela fé estéo perdoadas e justificadas. Também foram transforma- das em pessoas novas. Pelo poder regenerador do Espirito Santo, nao estéo mais sujeitas a tirania da inclinagdéo para o pecado; ainda que sujeitas a sua influéncia, ndo estéo mais sob seu controle. Os crentes, portanto, tém a capacidade de escolher o certo. Entretanto, ainda nao alcancaram a disposi- cdo perfeita de Deus no que tange a amar como ele ama, a ter o mesmo dominio préprio que Jesus, a ser tao felizes, humil- des e abnegados quanto ele. Quando, porém, o pensamento ou a atividade se refere a escolha consciente, os crentes sdo capazes de escolher o caminho de Deus, mesmo que nao o facam por forca propria, nem sequer pelas forcas do seu “novo homem”. Um novo relacionamento As pessoas que passam a viver essa relacdo pactual com Deus entram numa relagéo em que Deus nao sé as adota como filhas, mas também passa a viver com elas de forma especial, tornando-se companhia constante delas. Esse relacionamen- to é o segredo da vida crista bem-sucedida, No momento em que alguém se volta para Deus com a fé salvifica, o Pai, o Filho e o Espirito Santo comecam a viver com essa pessoa de um modo singular, novo (Jo 14.16,17,20,23; Rm 8.9; Gl 2.20; Ef 3.16-19; Cl 1.26-29). Essa presenca é a ex- celéncia de seu maravilhoso poder operando em nds (Ef 3.20), presen¢a que nos fortalece — nao se trata de nenhum poder abstrato, mas do seu Espirito em nos (v. 16), Cristo no coragao (v. 17), € 0 préprio Deus enchendo-nos com toda a sua pleni- tude (v. 19). O segredo para a vida vitoriosa, portanto, ndo é lutar inutilmente nem tentar resolver as coisas pelas préprias forgas, mas “Cristo em vocés, a esperanca da gloria” (Cl 1.27). Qualquer esperanca que temos de demonstrar seu glorioso carater por meio de nossa vida baseia-se no fato de ele viver Aperspectiva de Keswick = 191 pessoalmente em nos e de nos prover todos os recursos do Deus do universo. De que modo, especificamente, Cristo nos ajuda a vencer, a crescer, a ser vitoriosos? De que maneira nos ajuda a ter como modelo o sucesso em vez do antigo padrao de fracas- so? Sera que Deus anula nossa personalidade em pro] da sua? A beleza e a gloria da vitoria divina na natureza humana é que Deus nao nos ignora nem substitui. Em vez disso, ele nos renova a semelhanca do proprio Deus (Cl 3.10). Como vere- mos, essa obra de renovacao realiza-se primeiro mediante os varios meios da graca que Deus nos da e, fazendo uso desses meios, cooperamos com ele. Todavia, pelo fato de Deus nao ser uma forca impessoal que habita em nés nem uma influéncia em nossa vida, mas uma pessoa, a nova vida é uma companhia pessoal! muito apra- zivel. Como um bom amigo, sua presenca produz coisas ma- ravilhosas. Ele nos conforta quando estamos desanimados e torna nosso julgamento moral sensivel, dando-nos o enten- dimento das Escrituras. Sua presenga constante estimula-nos quando estamos fracos, seu conselho nos elucida dilemas quando estamos confusos. Ele opera em nosso intimo para transformar nossos padrées de pensamento e opera em nos- so exterior para controlar nossas circunstancias visando ao bem duradouro. As Escrituras falam de cada uma das pessoas da Trindade vivendo em nds, mas por ser o Espirito Santo o agente reali- zador dos propositos de Deus neste mundo, a maior parte do ensino do NT a respeito da vida cristé normal concentra-se na obra do Espirito Santo. O NT afirma que quem vive uma relagaéo de alianca com Deus foi batizado pelo Espirito no cor- po de Cristo, nasceu do Espirito, é habitado por ele, caminha no Espirito, experimenta o fruto do Espirito e recebeu seu selo. De todas essas analogias, a mais comum é a idéia de ser cheio do Espirito. Mas o que significa essa linguagem figurada? O tanque de um carro pode estar cheio, pela metade ou vazio, e alguns professores de Biblia referem-se a estarmos “cheios” do Espirito quase em termos materiais. Mas estamos falando de uma pessoa, nao de uma forca, muito menos de ido. Outros usam idéias ffsicas, figuradas como, por exemplo, ter 0 sangue geneticamente puro ou té-lo cheio de alcool, querendo dizer que se pode ter tanto alcool no orga- 192 = 5 perspectivas sobre a santificagao nismo a ponto de ser quase totalmente controlado por ele, Essa idéia é melhor que o conceito material de “estar cheio” e tem a vantagem de estar de acordo com a aparente analogia biblica: “Nao se embriaguem com vinho, mas sejam cheios pelo Espirito” (Ef 5.18, parafrase do autor). Ha, sem divida, muitas analogias dos efeitos do alcool com a plenitude de Deus, mas ainda permanecemos no aspecto figurado e ndo sabemos o que a expressao significa de fato. Nao pode ser fisica, uma vez que o Espirito Santo néo tem aspecto fisico, ainda que em determi- nado aspecto habite o corpo fisico dos crentes. Alguns falam de ser cheio com o Espirito como uma expe- riéncia ou um fato espiritual, e até podem perguntar: “Vocé foi cheio com o Espirito?”. Sem dtvida, os discipulos foram cheios do Espirito no dia de Pentecoste (At 2), apds a reuniao de oracéo algumas semanas depois (4.31), e Paulo foi cheio do Espirito em Atos 9.17 e 13.9; foram experiéncias momen- taneas e acontecimentos especificos. No entanto, pelo fato de sermos orientados pelo tempo, a resposta a pergunta “Vocé foi cheio com o Espirito?” sé pode nos informar de algo que ocorreu no passado. A pergunta mais importante diz respeito ao presente — “Vocé esta cheio do Espirito?”. Parece que nesse sentido a ex- pressao indica um estado ou uma condicao. Esse emprego da expressdo também deve ser valido, pois nos é ordenado ser continuamente cheios pelo Espirito (Ef 5.18). Um dos proble- mas que essa idéia acarreta é o fato de muitas pessoas toma- rem a idéia de estado para referir-se principalmente a um sen- timento subjetivo, talvez semelhante a expressdo “cheio de alegria”. Se a condi¢ao se limita ao estado subjetivo de alguém, ela pode ser mal-interpretada ou considerada instavel. As Es- crituras, entretanto, prometem-nos uma vida na qual temos ciéncia da presenca de Deus, Dessa forma, alguém que é cheio do Espirito pode ter a percepc4o continua da presenca divi- na, um dom que deve ser o ponto mais elevado das boas da- divas de Deus. Porém, ainda nao estamos perto de identificar o sentido dessa expressdo figurada. A expressado também é usada de outra forma na Biblia: refe- rindo-se a uma caracteristica pessoal. Quando dizemos que determinada pessoa esta cheia de orgulho, cheia de pecado ou mesmo “cheia de si”, isso quer dizer que ela se caracteriza pela soberba, pelo pecado ou pelo orgulho, respectivamente. Aperspectiva de Keswick # 193 Se usada nesse sentido, a expressao “cheio do Espirito” signi- fica que a vida da pessoa se caracteriza pela semelhanga com Deus, pela predominancia dele ou pela sua ampla influéncia. Esse deve ter sido o sentido empregado nas Escrituras quan- do elas tratam das pessoas cheias do Espirito (e.g., At 6.3). Os outros podem olhar para essas pessoas e dizer que elas tém uma vida caracterizada sobretudo pela associagdo com Deus e pelos resultados dessa uniao. Ha ainda outro significado possivel para a expressdo. Quan- do as Escrituras dizem que uma pessoa tem um deménio, isso quer dizer mais do que ser ela apenas perversa ou estar caracterizada pelo comportamento e pela forma de pensar dia- bélicos. Significa que Satanas e suas potestades sao a influén- cia predominante na vida dessa pessoa, pelo menos naquele momento. Uma vez que o Espirito Santo, assim como os espi- ritos impuros, ¢ pessoal, o emprego da expressao “cheio do Espirito” parece muito apropriado. A expressdo figurada sig- nificaria que o Espirito Santo domina, tem controle total, pos- sui, exerce fortemente o direito de posse do ser inteiro, em- bora essa dominacdo seja graciosa, s6 ocorra mediante convite e, diferentemente da possessdo demoniaca, nado anule nem acabe com 0 arbitrio individual. No principal texto biblico so- bre o Espirito Santo, Romanos 8, esse conceito de controle é claramente exposto (e.g., v. 9). Pelo menos, esse sentido da expressdo 6 o ponto de partida, pois, sem o relacionamento de entrega incondicional 4 vontade de Deus, a pessoa nao pode receber o Espirito Santo inicialmente, nem os beneficios de sua preseng¢a continua. Essa definicaéo da expressao “cheio do Espirito” é defendida pelos mestres de Keswick, pela Cru- zada Estudantil e por muitos outros grupos. Alguém que tem em mente a idéia de que o Espfrito Santo é a caracteristica dominante de sua vida talvez hesite em alegar que é uma pessoa assim. Pode achar mais apropriado afirmar juntamente com Paulo que é “o principal dos pecadores”. Os outros é que devem fazer esse julgamento. Talvez apenas os outros estejam aptos a julgar a piedade de alguém. Contudo, se alguém tem em mente a idéia do controle do Espirito, uma relacgéo de obediéncia confiante, essa pessoa com certeza esta apta a julgar e talvez possa sozinha ter certeza. Muito da confusa&o acerca de como se interpreta “ser cheio do Espirito” reside no fato de as Escrituras usarem a expres- 194 = Sperspectivas sobre a santificacao sdo de diversas formas, assim como nds usamos a palavra cheio. Como harmonizar essas diversas formas? O mais pro- ximo que consigo chegar talvez seja: “Cheio do Espirito” 6 uma expressdo figurada e poética que se refere principalmente a relacéo entre duas pessoas na qual uma delas esta no coman- do. Uma relacéo que come¢a como um acontecimento especifi- co planejado para ser o ponto de partida de um estado cons- tante. Esse relacionamento normalmente resulta na percepcéo gloriosa da presenca divina e com certeza tem por conseqiién- cia uma mudanca de vida. Alguém nessas condi¢ées pode dizer com legitimidade que esta cheio do Espirito. Para complicar ainda mais o problema, parece que existe outro sentido em que a expressdo também é empregada. As pessoas designadas pela Biblia como “cheias do Espirito”, em ocasides especificas, receberam a graca de estar “cheias” (como, por exemplo, em At 4.8,31; 13.9). Mais uma vez aqui é util que a énfase recaia sobre o relacionamento. Quando usamos a fi- gura estar cheio nao nos referimos a ser inspirados por al- gum poder espiritual, mas por um relacionamento pessoal. Podemos falar de uma relacéo normal que tem continuidade e de um ato especial que ocorre em determinada ocasiao tam- bém especial. Usando outra analogia, um automovel que este- ja funcionando na poténcia maxima pode, entretanto, mudar para marcha reduzida numa emergéncia. As velas de um bar- co em geral séo suficientemente cheias com o vento para a embarcacdo chegar a seu destino, mas ha momentos em que uma brisa bem-vinda sopra e a vela se enche ainda mais. A vida cristé normal, portanto, pode ser de fato cheia do Espiri- to, mas ha momentos em que é necessario um poder especial que nos auxilie num problema ou numa oportunidade tam- bém especiais. Os crentes cheios do Espirito podem confiar em Deus para ser novamente “cheios”, numa mudanga para marcha acelerada que os guie de maneira triunfante. Dissecar um animal significa mata-lo. Entretanto, espero que o mesmo nfo aconteca com a analise teologica. Contudo, se essa analise pareceu por demais analitica, voltemos a sim- ples e bela seguranga que a Pessoa mais maravilhosa do Uni- verso nos oferece, melhor do que verdades doutrinarias, me- lhor do que experiéncias estimulantes: Deus nos oferece a si mesmo numa relacdo de intimidade que s6 pode ser definida corretamente pela palavra cheio. Quando respondemos a Deus Aperspectiva de Keswick = 195 com uma fé simples, sem reservas, o Espirito Santo nos da juntamente consigo a verdade para saber tudo o que ele quer que saibamos, 0 fruto, para sermos tudo quanto ele quer que sejamos, e dons, para fazer tudo o que ele planejou que fizés- semos. Esse novo relacionamento com Deus inicia um pro- cesso e resulta em novo potencial. Um novo potencial Falando de maneira simplificada, 0 novo potencial pode dar vitéria e crescimento. Como vimos antes, 0 novo homem em Cristo tem capacidade para escolher o certo e coloca-lo em pratica. Esse homem nao precisa mais — nem deve — vio- lar deliberadamente a vontade conhecida de Deus. Essa experién- cia é vitoriosa, e o novo potencial fica disponivel imediata e completamente com 0 inicio da nova vida. Quando nao é atin- gido devido a violacéo de contrato, pode ser renovado pela confirmacdo da alianga de fé inicial. Uma vez que essa vitoria comeca com uma deciséo num momento especifico, alguns se concentram tanto nessa experiéncia critica que desprezam ou subestimam o importantissimo ensino biblico sobre cres- cimento. Por outro lado, outros ressaltam tanto o processo de crescimento que negligenciam ou excluem a decisAo ini cial necessaria. As Escrituras, porém, sao claras quanto 4 cri- se e ao processo, Ja analisamos a decisdo pela fé, e agora, com mais detalhes, nos voltaremos para 0 processo de cres- cimento. A vida cristé normal caracteriza-se pelo crescimento espi- ritual na diregdo da semelhanca cada vez maior com Jesus Cristo. Essa verdade é fundamental na analise que o NT faz da vida cristaé. Aqueles que ensinam que nada muda na pessoa em si e aqueles que ensinam que determinada experiéncia pode transformar a pessoa de tal forma que ela se torna per- feita e néo precisa de mais transformacdéo devem responder nao s6 a textos demonstrativos isolados, mas a toda a estru- tura do ensino do NT, como mostram as seguintes passagens: N&o se amoldem ao padrao deste mundo, mas transformem-se pela renovacdo da sua mente, para que sejam capazes de experi- mentar e comprovar a boa, agradavel e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2). 196 = 5 perspectivas sobre a santificagao E todos nds [...] estamos sendo transformados com gléria cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é 0 Espirito (2Co 3.18). Antes, seguindo a verdade em amor, crescamos em tudo naque- le que é a cabe¢a, Cristo. Dele todo 0 corpo, ajustado e unido pelo auxilio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua funcao (Ef 4.15,16). Nao que eu ja tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfei¢oa- do, mas prossigo para alcanca-lo, pois para isso também fui alcan- cado por Cristo Jesus. Irmaos, nao penso que eu mesmo jéo tenha alcancgado, mas uma coisa fago: esquecendo-me das coisas que ficaram para tras e avancando para as que estado adiante, prossigo para 0 alvo, a fim de ganhar o prémio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus (Fp 3.12-14). [Vocés] se revestiram do novo, o qual esta sendo renovado em conhecimento, a imagem do seu Criador (Cl 3.10). Quanto ao mais, irmaos, ja os instruimos acerca de como viver a fim de agradar a Deus e, de fato, assim vocés estao procedendo. Agora lhes pedimos e exortamos no Senhor Jesus que crescam nisso cada vez mais. [...] Contudo, irmaos, insistimos com vocés que cada vez mais assim procedam (1Ts 4.1,10). Seu divino poder nos deu tudo de que necessitamos para a vida e paraa piedade, por meio do pleno conhecimento daquele que nos chamou paraa sua propria gloria e virtude, Dessa maneira, ele nos deu as suas grandiosas e preciosas promessas, para que por elas vocés se tornassem participantes da natureza divina e fugissem da corrup¢ao que ha no mundo, causada pela cobi¢a. Por isso mesmo, empenhem-se para acrescentar a sua fé a virtude; a virtude 0 co- nhecimento; ao conhecimento o dominio proprio; ao dominio pré- prioa perseveranca; a perseveranca a piedade; a piedade a fraterni- dade; e a fraternidade o amor. Porque, se essas qualidades existirem e estiverem crescendo em sua vida, elas impedirao que vocés, no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, sejam inope- rantes e improdutivos (2Pe 1.3-8). Com base nessa amostra de textos biblicos relacionados ao tema, quem é capaz de negar que Deus pretende que a vida cristé normal seja uma vida de transformacdo, de crescimen- to no conhecimento e na semelhanca com Jesus Cristo? Aperspeciva de Keswick © 197 Natureza do crescimento « Mente, O principal objetivo de Deus é remodelar nosso processo mental, nossos valores e intencées, nossa forma de ver as coisas, A mente é 0 primeiro campo de batalha do crescimento. Um cristaéo normal ama cada vez mais como Deus ama; tem cada vez mais autocon- trole, contentamento, humildade e coragem; entende cada vez mais os caminhos de Deus; e é cada vez mais voltado para os outros e menos voltado para si mesmo nas escolhas que faz na vida. * Comportamento exterior. A transformacao interior é visivel na conduta externa. O carater da pessoa muda, e€ mesmo os tracos da personalidade que refletem pa- drées pecaminosos de pensamento sao transforma- dos, Observe que esse comportamento cada vez mais semelhante ao de Cristo ocorre em areas de pecados inconscientes ou omissivos. Ndo existe um padraéo de crescimento gradual no pecado deliberado. As pesso- as nao reduzem seus assaltos ao banco anualmente quando “crescem na graca”. Nao mentem nem trapa- ceiam com menos freqténcia. No AT nao havia reden- ¢ao para pecados voluntarios (e.g. Ex 21.14; Nm 15.30, 31), e no NT esse tipo de escolha deliberada ocorre em listas que identificam seus praticantes com pessoas nado-redimidas que estao sob juizo (e.g. 1Co 6.9,10; Gl 5.19-21; Ap 21.8). Em questdes que implicam uma escolha deliberada, 0 cris- téo normal opta pelo caminho de Deus. Muito do nosso com- portamento, entretanto, fica aquém da semelhanga de Cristo involuntaria e até inconscientemente. Nessas areas ¢ que o cristéo normal cresce constantemente para refletir com niti- dez cada vez maior a semelhanca com Cristo. Meios de-crescimento Deus influencia diretamente nossos pensamentos, mas 0 seu método principal de promover o crescimento é o que chamamos “meios de graca” ou canais da energia divina. Nao somos passivos nesses meios; temos de participar ativamen- te. Embora Deus, de fato, efetue em nds o querer e o realizar 198 » 5 perspectivas sobrea santificagao de acorda com sua boa vontade, devemos pér em acaéo nossa salvacéo com temor e tremor (Fp 2.12,13). Oracdo. Por meio da orac4o, nossa associacéo com Deus che- ga ao nfvel de intensidade mais elevado. Crescemos mais na se- melhanga com ele ao desfrutar sua companhia e descobrimos que a oracdo é o grande meio de vitéria no momento da tentacao. Escrituras. A Biblia € 0 meio de revelacdo do carater divino e, portanto, de seu propdsito para nossos pensamentos e acdes. Quanto mais conhecemos a Palavra, mais potencial te- mos para conformar-nos a4 vontade divina. Ela é 0 leite, o pao, o alimento da alma. Além disso, Jesus provou no momento da tentacdo que as Escrituras sdo uma grande arma na bata- Tha espiritual. Quando estudamos a Biblia com diligéncia para compreendé-la e meditamos nela constantemente a fim de coloca-la em pratica na vida, ficamos preparados para usa-la com eficacia e vencer a tentacdo. Igreja. A reuniao da familia de Deus é indispensavel para 0 crescimento espiritual. A combinacdéo de adora¢ao e observan- cia dos mandamentos, ensino, comunhio, disciplina, servico e testemunho na estrutura responsavel da igreja séo os meios determinados por Deus para o crescimento de cada membro. Sofrimento. O sofrimento pode ser o grande atalho de Deus para o crescimento espiritual. E claro que nossa rea¢do ao so- frimento determinara se ele ira ou nao nos beneficiar, pois a mesma adversidade pode ser destrutiva ou edificante. A res- posta de fé, isto é, a certeza de que Deus permitiu a provacaéo para sua gloria e para nosso proprio bem, transforma uma circunstancia potencialmente ruim em um meio de nos tor- nar mais parecidos com o préprio Servo Sofredor. Esses quatro “instrumentos do Espirito” sao indispensa- veis ao crescimento cristéo. Contudo, embora estejam igual- mente disponiveis a todos, nem todos os crentes parecem ter o mesmo nivel de maturidade. Nivel de crescimento Medida positiva. Alguns cristéos usam os meios da graca com mais diligéncia que outros. Apesar de, no sentido passi- vo, todos os crentes estarem igualmente “sujeitos” 4 vontade de Deus, a vida crista é uma guerra. Alguns cristéos sao mais agressivos e parecem ter mais desejo de lutar. Ainda que a fé Aperspectiva de Keswick » 199 implique descansar, confiar que Deus fara o que nao pode- mos fazer, ela também deve lutar, combater na batalha. Sata- nas é o grande adversario e destruidor, e procura sem cessar imobilizar, se néo puder destruir, 0 povo de Deus. Além dis- so, os cristéos vivem em um mundo oposto a tudo o que an- seiam ser. Alguns parecem mais conscientes desses adversa- rios e mais persistentes em opor-se a eles. Em certo sentido, a incapacidade de lutar agressivamente pode ser considerada um defeito espiritual que necessita de correc¢éo. Ao mesmo tempo, essas diferencgas entre os cris- taos podem ser apenas mais um sinal de diferentes niveis de maturidade. Nessas questées, alguém é capaz de tratar a si mesmo com rigor e ser generoso quando julga outra pessoa; ambas as atitudes sao o oposto das inclinagées naturais. Mais aparente que real. Em primeiro lugar, nado me cabe julgar meu irmao (Rm 14.3-12). Além disso, néo posso julgar com preciséo nem mesmo a mim, muito menos aos outros (1Co 4.4), Outra razdo para se ter cautela ao fazer tais julga- mentos é que as diferencas podem ser mais aparentes que reais. Qual é 0 padréo de comparacaéo? E preciso ter a perspectiva de Deus para fazer uma avalia- ¢do correta. Quem dentre nos a tem? Portanto, somos tolos de fazer comparagées entre nds mesmos (2Co 10,12), pois jamais teremos a perspectiva divina. Para fazer uma compa- racdo, temos de nos comparar com 0 nosso modelo, Jesus Cristo. Por outro lado, é correto fazer comparacgdes com o que ja fomos e com o que poderiamos ser longe da graca de Deus. Comparacées que implicam essa linha de tempo dao o crédi- to a Deus e nos aproximam de sua perspectiva. Por varias razées, é tolice nos compararmos com outras pessoas. Em primeiro lugar, cada um inicia 0 crescimento a partir de um nivel diferente de dessemelhanca com Deus. Por esse motivo um nAo-cristaéo cortés, criado em um bom ambiente, pode ser alguém muito melhor de se estar perto que um crente veterano verdadeiramente cheio do Espirito. A questao, entretanto, é 0 que esse crente seria se Deus nao tivesse operado e o que o nao-cristéo bem-educado seria se Deus estivesse no controle. Em segundo lugar, cada cristaéo normal esta num estagio de crescimento diferente, ainda que todos estejam envolvidos num relacionamento de completa aceitacdo da autoridade do Espirito na vida. Comparar uns 200 = 5 perspectivas sobre a santificacao com os outros é ter uma base de comparacdo equivocada. Em terceiro lugar, os dados para fazer um julgamento preci- so s6 s&o acessiveis a Deus. Portanto, somos sabios em dei- xar esses julgamentos com ele, principalmente quando o desenvolvimento espiritual de outra pessoa n&o é responsa- bilidade nossa. CONCLUSAO Que boas noticias! Nao importa o que aconteceu ou deixou de acontecer no passado, muito menos o grau em que o meu entendimento é incorreto. Se o meu relacionamento com Deus baseia-se na entrega incondicional e na esperanca confiante de que ele cumprira sua palavra, posso levar uma vida de vitérias sobre a tentacdo e de mais semelhanga com Deus; posso ver seu propésito ministerial cumprido de maneira sobrenatural e, acima de tudo, posso sentir diariamente a com- panhia amorosa do meu Salvador. Embora Keswick nado tenha uma teologia sobre santifica- gdo expressa por escrito, a declaragaéo doutrinaria que apre- sentei aqui é completamente compativel com a sua mensa- gem. Procurei evitar a constante tentagdéo de desenvolver algumas facetas da verdade divina partindo para extremos e procurei ficar no centro de equilibrio da tensao biblica. No que obtive sucesso, essa abordagem pode fornecer uma posicdo intermediaria entre as diferentes concepcées acer- ca da santificacéo. Todos nés certamente buscamos honrar a Deus pondo em evidéncia no corpo mortal seu glorioso carater. BIBLIOGRAFIA Barasas, Steven. So Great Salvation. Londres: Marshal, Morgan & Scott; Grand Rapids: Eerdmans, 1952. O estudo definitivo do movimento de Keswick (historicamente) e da mensagem de Keswick (teologicamente). Uma bibliografia abrangente de 13 paginas sobre Keswick foi incluida. McQuitkin, Robert C. The Life of Victory. Chicago: Moady, 1953. Tipica expo- sic¢éo devocional do ensinamento de Keswick, no formato de testemu- nho pessoal de alguém que ajudou a levar o movimento aos EUA na primeira metade do século XX. Aperspectiva de Keswick = 201 Dois autores que criticaram 0 movimento e sdo considera- dos pelos oradores da Keswick do mundo todo pessoas que nao interpretaram corretamente o ensinamento sao: Packer, J. I. Keep in Step with the Spirit. Old Tappan, N. J., Revell, 1984 [Na dindmica do Espirito: uma avaliacdo das praticas e doutrinas, Edigées Vida Nova, 1991]. Warrie.o, B. B. Studies in Perfectionism. Nova York, Oxford, 1931. Réplica WESLEYANA a McQuiunin Mevvin E. Dierer O artigo de J. Robertson McQuilkin demonstra a realidade de dois fatos a respeito das perspectivas incluidas neste li- vro: 1) as tradicgées evangélicas, que apelam vigorosamente para a autoridade das Escrituras, definem biblica e notavel- mente a concepcao da santidade cristé em termos semelthan- tes; podemos nos surpreender mais com as correspondén- cias do que com as diferencas; 2) de todas as concepcées apresentadas, o padrado de vida elevado de Keswick e a pers- pectiva wesleyana de santidade séo os que mais se parecem ao expressar as perspectivas. A doutrina de Keswick encara com mais seriedade certos elementos essenciais da teologia evangélica-arminiana que fundamentam o wesleyanismo. Keswick toma a perspectiva wesleyana da possibilidade, e mes- mo da necessidade, da invasdo da vida crista pela plenitude de Deus, e a incorpora a perspectiva da vida em santidade, mantendo ao mesmo tempo tracos fundamentais da teologia reformada a fim de adaptar-se a suas definicdes. A histéria fornece alguns momentos de entendimento a tur- bulenta relagdéo entre 0 movimento wesleyano e o de Keswick. Um dos pontos mais importantes do intercdmbio continuo entre © reavivamento americano e o britanico foi o afluxo a Inglaterra de propagadores americanos da fé depois da Guerra Civil Ame- ricana. Nesse periodo, a influéncia dos evangelistas da santi- dade americanos é secundaria quando comparada 4 influéncia de Dwight L. Moody, principal evangelista do momento. A men- Réplica wesleyana a McQuilkin = 203 sagem desses evangelistas gerou um destaque renovado so- bre a doutrina wesleyana da santidade crista no lugar em que mais se podia esperar — sua terra natal, o metodismo britani- co. Mais importante ainda é que, mediante a influéncia de Charles G. Finney, Asa Mahan e de outros evangelistas de Oberlin que adaptaram o ensino da “segunda béncao” a tradi- ¢ao reformada, a mensagem conseguiu penetrar de forma mais ampla nos circulos evangélicos calvinistas da Inglaterra e do continente europeu. A teologia desse movimento, que aprego- ava um padrao de vida superior, mais propriamente um calvinismo “arminianizado”, fez que o meio evangélico inglés e europeu se interessasse pela santidade e pelo ensino do pa- drao de vida superior, apesar da forte aversdo que o calvinismo tradicional nutria por tudo que lembrasse o perfeccionismo. Fora desse contexto, surgiu 0 movimento de Keswick, por intermédio do ministério de Robert Pearsall] Smith, William Boardman e outros, em 1870, Uma coalizdo em prol da vida crista superior deu apoio ao notavel ministério de Smith en- tre os evangélicos britanicos de todas as correntes, apesar da forte associacdo com o ensino metodista (perfeccionista) da “segunda béncao”. A dissolugdo prematura da coalizao deveu- se ao fato de Smith ter caido da graca em 1875, momento de maior sucesso do movimento. O fato de os evangélicos brita- nicos terem precipitadamente abandonado Smith, que ja es- tava impaciente por causa do elemento wesleyano em sua mensagem, estabeleceu 0 tom para o futuro. O progresso do movimento de Keswick, que se reergueu a partir das ruinas da queda de Smith, era de tendéncia calvinista, na medida em que fixou os padrées de distincdo que procuravam afastar o maximo possivel o entendimento que o movimento tinha da obra do Espirito da experiéncia mais profunda da vida, pro- pria do movimento americano da santidade, de onde se origi- nou. Portanto, o conflito que tem marcado as relacées entre Keswick e 0 movimento da santidade tem raizes historicas e teoldgicas significativas. Pela excelente declaragéo de McQuilkin sobre uma posicao classica de Keswick, sempre ficou clara a influéncia do movi- mento wesleyano holiness. A regeneracéo passa a ser reco- nhecida como o inicio de um padrao processo-crise-processo de crescimento em santidade. A vida de vit6ria diaria contra 0 pecado comega pela total entrega do individuo a Deus em ple- 204 = 5 perspectvas sobres santificagio na consagracdo. Isso é a participacado efetiva na santidade de Deus por meio da fé na obra redentora de Jesus Cristo pela habitagao do Espirito Santo. Trata-se de uma vida, nao de qual- quer tipo de perfeicaéo pura, mas de estar apto, por meio da graca de Deus, a nao pecar. O destaque nao esta em olhar para © passado, para o momento de crise em que houve um com- promisso completo, mas em olhar para a frente e perguntar: “O que mais, Senhor?”. Essa atitude é essencialmente a mensa- gem wesleyana que Smith e outros pregaram em termos nao- wesleyanos a evangélicos arraigados a tradigdo reformada. A conseqtiéncia é que, apesar dos nitidos paralelos entre a perspectiva de Keswick e os wesleyanos, as diferencas com que eles depararam historicamente surgiram em conformi- dade com os conceitos estabelecidos quer no ambiente refor- mado, quer no ambiente wesleyano. Uma vez que a perspecti- va wesleyana da mais lugar 4 responsabilidade humana, ela considera a santificacdo mais uma questdo de correcéo das opinides, da vontade e das inclinagées na perfeicdo do relaci- onamento do homem com Deus do que uma questao de algu- ma idéia de impecabilidade; como o cumprimento de um co- digo de conduta moral. Em conseqiiéncia, ao definir a vida de perfeito amor e o que pée a pessoa na condicdo de culpada diante de Deus, é perfeitamente possivel definir pecado nos termos wesleyanos como a “religiaéo deliberada da vontade re- velada de Deus”. E possivel dizer, portanto, que conhecemos a gracga de Deus em uma experiéncia de entrega absoluta na qual os desejos distorcidos que herdamos a partir da Queda sdo libertados para obediéncia, ao invés de desobediéncia, e para amarmos plenamente a Deus. Ter uma vontade tao cor- rompida é a esséncia do que significa estar na carne; ser puri- ficado de todo residuo que poderia escravizar a alma ao peca- do é a esséncia da santidade e da perfeicdo crista. A libertagdo do pecado nao é a libertagao da tentacdo e da decadéncia da condigéo humana, mas a libertacéo da necessi- dade de reagir com condescendéncia as muitas tentacdes a que somos expostos pelo estado de Queda. Visto que Keswick pre- feriu explicar essas verdades 4 luz de uma teologia que inclui definig¢ées mais amplas sobre a natureza da relacéo entre Deus eo homem e uma definicado diferente de nossa situacéo huma- na, sempre existira essa diferenca no entendimento do modo em que a santidade crista se constitui no coragaéo do crente e Réplica wesleyana a NcQuilkin = 205 no modo de definir sua dindmica. Essas diferenc¢as entre os ensinamentos de Keswick e os dos wesleyanos sao também o centro das divergéncias entre a perspectiva wesleyana e as Perspectivas expressas neste livro. Contudo, as outras opini- 6es muitas vezes sdo mais rigidas na comparacao que fazem. Um Ultimo aspecto preocupante na perspectiva de Keswick éa dificuldade de oferecer, no entender de algumas pessoas, uma teologia suficientemente abrangente para os aspectos social e ético da vida de plenitude e perfeicdo. O ensino tende a dar mais atencao a piedade interior como o propésito final da vida de santidade. Na pratica, entretanto, o movimento tem ido além desse conceito. Por exemplo, o grande impeto missionario do movimento é amplamente reconhecido. Flui com naturalidade de pessoas totalmente comprometidas com a vontade de Deus, mas encontra pouca explicagéo ou apoio na teologia do movimento. Réplica REFORMADA a McQuinn Awtnony A. Hoexena Concordo com muito do que J. Robertson McQuilkin apre- senta em seu Capitulo. Valorizo a énfase que ele da a vitoria — o NT define a vida cristaé como uma vida de vitéria (Rm 8.37; 1Jo 5.4). Também gosto quando ele insiste que a uniao com Cristo é o cerne da teologia paulina e ressalta a importancia de ser cheio do Espirito. Concordo que a vida de santidade é 0 propésito da salvacdo. Estou de acordo com a afirmacao de McQuilkin de que o crente ainda tem tendéncia ao pecado e que nao lhe é possivel viver sem pecado nesta vida. Também concordo quando McQuilkin afirma que alguns cristaos, talvez muitos, precisam renunciar 4 propria vonta- de entregando-se totalmente ao Senhor algum tempo depois da conversao. Os corintios que estavam vivendo na carne (1Co 3.1-3) certamente tinham essa necessidade, assim como a igre- ja de Efeso (Ap 2.4). Discordo, entretanto, que uma experién- cia critica especifica como essa e posterior 4 conversao deva ser programada na vida da maioria dos crentes (p. 187). Tenho mais problemas neste capitulo em duas areas. A primeira é a definicdéo de pecado. Na pagina 168, McQuilkin cita, como uma verdadeira representacdo da posi¢gdo de Keswick, a seguinte afirmacao: “Cremos que a Palavra de Deus ensina que a vida crista normal consiste em obter regular- mente vitoria sobre o pecado conhecido”. Na pagina 189, en- tretanto, “de acordo com a Biblia, pecado é qualquer caréncia da gloriosa perfei¢éo do proprio Deus (e.g., Rm 3.23)". Com Réplica reformadaa McQuilkin = 207 base nessa segunda definigaéo de pecado, o autor prossegue, dizendo: “Ninguém é perfeito, nem por um instante sequer’. Estimo o repudio a possibilidade de atingir a condicdo de to- tal auséncia de pecado, mas tenho algumas perguntas sobre a possibilidade de “obter regularmente vitéria sobre o pecado conhecido”. £m primeiro lugar, se, “de acordo com a Biblia”, o pecado é © que foi definido na pagina 189, sera que essa definicao é desconhecida? Deus nao requer em sua lei que 0 amemos de todo o cora¢do, alma e entendimento e que amemos ao proxi- mo como a nés mesmos (Mt 22.37-39)? Sera que algum de nés pode cumprir um mandamento desses com perfeicdo? McQuilkin reconhece que “qualquer caréncia da gloriosa per- feicdéo do proprio Deus” (Rm 3.23) nesse sentido é pecado. Mas esse também nao é um pecado contra a vontade revelada de Deus? Em segundo lugar, o autor trabalha com duas definicées de pecado. Uma trata do pecado “de acordo com a Biblia”. A outra trata da “violacdo deliberada da vontade revelada de Deus”. Sera que Keswick esta trabalhando com uma concep- cdo aquém da definicdo biblica de pecado? £m terceiro lugar, até a expressdo “pecado conhecido” tem seus problemas. Como é terrivel nado reconhecer o pecado como tal! Muitas vezes, o que denominamos “ira pecaminosa” nos outros, consideramos “justa indignacdo” em nds mesmos. Os pecados, como disse alguém, sao como bilhetes pregados em nossas costas: outras pessoas podem ver, mas nés nao. Davi nao disse: “Quem pode discernir os proprios erros” (SI 19.12)? E Paulo nao afirma que “embora em nada minha cons- ciéncia me acuse, nem por isso justifico a mim mesmo” (1Co 4.4)? Como podemos, entdo, estar certos de que, evitando o que acreditamos ser pecados conhecidos, estamos de fato fa- zendo a vontade de Deus? Por fim, 0 que dizer do problema da motivacao? Alguma vez fizemos algo por motivo perfeitamente puro? Sera que realizamos as “boas obras” sozinhos, sem o amor a Deus e ao proximo? Sera que nao ha nem um pouco de egoismo? Isaias protesta: “Todos os nossos atos de justica sao como trapo imundo” (Is 64.6). Herman Bavinck nao estava certo quando disse que “em toda a ponderacdo e em todo o ato do crente 208 = 5 perspectivas sobre a santificagao L..] existe o bem e o mal, e estes permeiam um ao outro?”!5 Como é que os crentes podem dizer, entdo, que eles obtém “regularmente vitoria contra 0 pecado conhecido”? O segundo grande problema diz respeito a distingaéo que McQuilkin faz entre dois tipos de cristéos. Essa diferenga foi expressa de varias formas: “carnal” e “espiritual”; os que “tém um padrao de vida de fracasso” e os “que vivem uma vida de sucesso espiritual”; os “que tém uma subvida” e os “normais”; € os crentes que se “entregaram” e os que “nao se entregaram”. Reconheco que os cristéos tenham niveis diversos de ma- turidade, que alguns se aproximem mais de Deus que outros e que alguns sejam mais firmes na vida cristé do que outros. Mas sera que é€ certo dividir os crentes em duas categorias? Primeiramente, néo existe fundamento biblico para fazer a distincao entre crente “carnal” e “espiritual”. O NT distingue entre os que nasceram de novo e os que nao renasceram (Jo 3.3,5), entre os que “créem em Cristo” e os que “nao créem” (v. 36), entre os que “vivem segundo a carne” e os que “vivem segundo 0 Espirito” (Rm 8.5) e entre o homem que “nado tem o Espirito” e o “homem espiritual” (1Co 2.14,15), mas nunca fala de uma terceira classe de pessoas chamadas “cristaos carnais”. O texto de 1Corintios 3.1-3 nao trata dessa terceira classe de pessoas, mas de cristéos imaturos, as “criancas em Cristo” (v. 1). Embora ainda criangas, estéo “em Cristo”. A condicao carnal é um problema de comportamento, que deve ser supe- rado pelo crescimento. Uma vez que estdo em Cristo, eles séo verdadeiramente “nova criacdo” (2Co 5.17), séo santificados (1Co 1.2; 6.11) e espiritualmente ricos (3.21,23). As diferencas em questéo parecem abrir caminho a duas reagées equivocadas e espiritualmente prejudiciais: a depres- sdo e o desanimo dos que pertencem a “classe mais baixa” de crentes; orgulho ou possivel complacéncia dos crentes da “clas- se alta” (v. 1Co 10.12). Além disso, essas distingées séo apresentadas de forma muito radical, Sera realmente verdade que a “maioria dos cris- taos permanece na subcondicao de derrota e miséria espiri- tual” (p. 180)? Sera verdade que o “cristéo médio” cede a tenta- cao “com mais freqtiéncia que resistem” (p.165)? Por outro lado, a definicao da vida do “cristao normal” na mesma pagina pare- ce boa demais para ser verdadeira. Sera verdade que um crente assim “reflete autenticamente as atitudes e 0 comportamento de Jesus Cristo” e “obedece firmemente as leis de Deus”? Réplica reformadaa McQuilkin » 209 Acredito encontrar mais apoio nas Escrituras para afirmar que nds que vivemos em Cristo, estamos em variados pontos na caminhada da santificagdo. Nao experimentamos nem 0 fracasso total nem a vitoria completa no que tange ao pecado. Estamos em Cristo, mas precisamos crescer cada vez mais na direcao dele. Somos habitados pelo Espirito Santo, mas preci- samos estar cheios do Espirito. NOs nos submetemos a Cristo como o Senhor, mas precisamos entregar-nos de forma mais completa. Tentamos resistir ao pecado conhecido, mas nem sempre somos bem-sucedidos no discernimento do que é pecado ou nao. Continuamos lutando contra a “cobica da car- ne” pelo poder do Espirito, mas 4s vezes nos damos por ven- cidos. Vivemos uma vida de vitoria, mas de vitéria qualitativa. Ainda néo somos o que seremos um dia. Ainda néo somos totalmente semelhantes a Cristo (1Jo 3.2). Vivemos a tensao entre o “ja” e o “ainda nao”. Somos genuinamente novos, mas ainda nao completamente novos. Réplica PENTECOSTAL a McQuinn Stanvey M. Horton Muitos autores pentecostais dizem ter uma divida com a postura classica de Keswick. Tenho ouvido muitos sermées que incentivam uma vida de vitoria sobre o pecado conheci- do. As vezes, isso leva as pessoas a perguntar umas as outras (como forma de incentivo): “Vocé obteve a vitéria?”. Enfatizamos igualmente toda a obra de Cristo e a uniao com ele, Reconhecemos a obra do Espirito na santificagao pro- gressiva do crente e esperamos que ele nos ajude a resistir a tentagéo. Concordamos que para isso é necessario consagra- ¢ao total, entrega incondicional 4 vontade e ao propésito de Deus, como foi revelado em sua Palavra. No entanto, nao concordamos em nossa definicgaéo de en- chimento do Espirito e plenitude do Espirito. Reconhecemos que a plenitude esta disponivel aos que a pedem (Lc 11.13), e identificamos o enchimento inicial com 0 batismo com o Es- pirito Santo (com a evidéncia externa inicial do falar em ou- tras linguas). A maioria dos pentecostais concordaria, entre- tanto, que ha enchimentos especiais disponiveis para suprir necessidades especiais, como quando Pedro esteve perante o Sinédrio (At 4.8) e quando Paulo encontrou Elimas, 0 magico (At 13.9). Reconhecemos também que 0 batismo no Espirito Santo nao é 0 ponto maximo. Ocorre quando estamos em uma vida de relacionamento com o Espirito e torna-se permanen- te. Ele esta conosco continuamente, estejamos ou nao cientes Réplica pentecostal a McQuilkin = 211 de sua presen¢a. Contudo, ele nao nos retira o livre-arbitrio. Ainda cabe a nés decidir se nos sujeitaremos ao seu controle. Também é importante reconhecer que “o espirito dos pro- fetas esta sujeito aos profetas” (1Co 14.32). Quando o Espirito nos impulsiona a ministrar por meio de um dos dons, é nos- sa responsabilidade fazé-lo com amor e delicadeza, adaptan- do-nos ao fluir do Espirito sem interromper o ministério de outros. De acordo com minha experiéncia, néo perdemos nada em permanecer calados até que surja a oportunidade de mi- nistrar um dom do Espirito para edificar as pessoas. Na reali- dade, se esperamos e o dom é de fato apropriado aquela oca- sido, o Espirito aprofundara e intensificara a manifestacao desse dom quando for ministrado. O destaque de Keswick ao servico e as misses foi assimi- lado por todo o movimento pentecostal. Toda a nossa énfase diz respeito ao fato de o proposito principal do batismo com o Espirito Santo ser o recebimento de poder para o servico. Percebeu-se a eficacia dessa atitude pelo fato de o numero de membros das Assembléias de Deus fora dos EUA ser 15 vezes maior do que os membros da AD norte-americana. Assim como os lideres da Keswick, negamos a possibilida- de da “impecabilidade” nesta vida. Também ensinamos que o cristéo, em vez de esperar cair em pecado, deve esperar nado pecar, assim que se identifiquem os atos pecaminosos. Reco- nhecemos, entretanto, que ainda estamos na batalha e deve- mos nos manter atentos, uma vez que a tendéncia para o pe- cado ainda reside em nés. Concordamos que devemos pedir diariamente a ajuda do Espirito Santo e mortificar os atos da velha natureza. Todavia, como no movimento de Keswick, a relacdo entre a velha e a nova vida em Cristo nem sempre é definida com clareza pelos pregadores do movimento. Uma vez que admitimos que todos os crentes sao santos, nossa definicao de santificacao posicional e de santificacdo pratica e a disting¢éo que fazemos entre elas sao semelhantes as de Keswick. Reconhecemos também que alguns cristaos sdo carnais e que todos os crentes tem momentos carnais, mas dirfamos que os crentes que continuam pecando correm o risco de nao obter a salvacéo. Como a posicao de Keswick, também enfatizamos muito as adverténcias biblicas, as quais nado fariam sentido se nao fosse possfvel aos cristaéos professos perder-se. Em outras palavras, somos mais abertamente arminianos do que parece ser o dr. McQuilkin. 212 = S perspectivas sobre a santificagao Concordamos que a fé implica conhecimento e obediéncia e que é necessdrio buscar ativamente uma vida santa median- te a pratica da oracao e a leitura da Palavra. A fé também deve ter Deus por objeto. Entre os pentecostais nado existe concordancia quanto a necessidade da experiéncia de crise. Contudo, a maioria con- cordaria com McQuilkin quando ele diz que, na pratica, a ocor- réncia de uma crise (entrega e consagracdo) muitas vezes é necessaria para a pessoa usufruir uma vida crista vitoriosa. Discordamos, entretanto, da perspectiva de Keswick com relacdo a ser cheio pelo Espirito. Ao que parece, os membros de Keswick acham que uma vida cheia do Espirito é essencial- mente uma questao de maturidade. Entendemos o batismo com o Espirito como uma experiéncia de poder que nao pro- duz maturidade automaticamente. A maturidade é um pro- cesso gradual obtido pelo crescimento 4 medida que nos apro- ximamos do Espirito e colocamos em pratica na vida a verdade da Palavra de Deus. No entanto, Deus nao espera que esteja- mos maduros para nos usar, nem o Espirito nega seus dons enquanto nado atingimos a maturidade. Contudo, devemos aceitar que as declaracgées do dr. McQuilkin a respeito da na- tureza espiritual do crescimento estéo de acordo com as Es- crituras. De fato, os pentecostais nado negam que muitos cristaos alcancgaram um elevado indice de vitéria na vida sem ter pas- sado pelo batismo pentecostal. Todavia, afirmamos que 0 Es- pirito Santo os ajuda reconhecendo que a verdade da expe- riéncia pentecostal foi negligenciada durante muitos séculos. O padrao biblico refere-se em primeiro lugar a uma nova vida no Espirito, em seguida a experiéncia de poder do batismo no Espirito Santo e depois a uma vida de crescimento espiritual que traz progresso para a santificacao e para 0 servico cristao. Réplica AGOSTINIANO- DISPENSACIONALISTA a McQuinan Joun F. Watyooro Quem defende a perspectiva agostiniano-dispensacionalista sobre a santificagdo encontrara pouco questionamento na apre- sentagao de J. Robertson McQuilkin sobre a perspectiva de Keswick. Assim como nas concep¢ées pentecostal, wesleyana e reformada, nos circulos de Keswick existe grande variedade de perspectivas em relacdo a doutrina da santificagao. Ainda que cada autor apresente a perspectiva pessoal neste simpésio sobre santificagao, existe conformidade de opinides no reco- nhecimento da justificagéo como o ato decisivo de Deus, com a santificacdo inicial ocorrendo no mesmo momento. Todos rejeitam a idéia de que ha alguma experiéncia pela qual se atin- gem a impecabilidade e a libertagao do pecado deliberado e do pecado involuntario. Todos chamam a atenc¢ao para a santi- ficagaéo final nos céus e, ao mesmo tempo, cada um ressalta a responsabilidade do crescimento na santificagéo na experién- cia crista na terra. Na opiniao de alguns, o problema do ensino de Keswick é que ele parece dar a entender que, por um ato da vontade, o cristéo pode atingir um nivel elevado de perfeicdo espiritual. Praticamente todos os mestres da Keswick afirmarao aberta- mente que esse individuo pode pecar no curso de sua deci- sdo inicial. O “remédio” apresentado por McQuilkin é o mes- mo adotado pela perspectiva agostiniano-dispensacionalista e por algumas outras, a saber, que a santificagao pratica de- pende de uma vida diaria de obediéncia aos conselhos das 214 = 5 perspectivas sobre a santificagao Escrituras e da confianga constante de que o Espirito Santo provera o poder necessério — poder transformador que sé pode vir do préprio Deus. Embora haja em todas as correntes algumas opinides radicais que contradizem a tendéncia da corrente principal, quando se aplica o julgamento sébrio e moderado, é notavel como as perspectivas sobre santificacaéo sdo semelhantes. O tratamento de McQuilkin deve ser elogiado principalmen- te pelo tom entusiasmado e compreensivo, o que reflete a obra do Espirito no proprio autor. Observam-se o encanto é a atra- cao que a vida cristé exerce, que Deus deseja e que as Escritu- ras prescrevem. Embora a vida crista de vitoria completa em Cristo ndo seja normal, certamente deve ser o alto padraéo que todo o crente deveria perseguir, reconhecendo plenamente que tudo o que Deus proporcionou por meio de Cristo, das Escrituras e da habitagdo do Espirito produz a santificacaéo progressiva, que é legitima e honra ao Senhor. De acordo com a perspectiva agostiniano-dispensaciona- lista, todas as concepcdes aqui apresentadas se esclareceriam se 0 batismo com o Espirito, assim como a justificacdo, fosse definido como o ato realizado de uma vez por todas no mo- mento da conversao. Além disso, seria bom se o “estar cheio” do Espirito fosse ressaltado como o meio divino empregado para transformar a vida crista e se delineasse com mais aten- ¢&0 o modo em que se pode ser cheio pelo Espirito. O propd- sito final da santificagado da igreja é “apresenta-la a si mesmo [Cristo] como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e inculpavel” (Ef 5.27). A perspectiva WESLEYANA MELVIN E. DIETER 7 2 A perspectiva REFORMADA ANTHONY A, HOEKEMA 3 A perspectiva PENTECOSTAL STANLEY M. HORTON 4 A perspectiva de KESWICK Jd. ROBERTSON McQUILKIN 5 A perspectiva AGOSTINIANO-DISPENSACIONALISTA JOHN F. WALVOORD A perspectiva AGOSTINIANO- DISPENSACIONALISTA JOHN F. WALVOORD O CARATER MORAL DO INDIVIDUO ANTES E DEPOIS DA SALVACAO Desde o tempo dos primeiros pais da igreja, os tedlogos tém lutado para tracar o carater moral do individuo antes e depois da salvacéo. Ha um consenso de que antes da salvacdo o individuo esta em pecado, mas o que se discute diz respei- to ao grau de transformacao que ocorre depois do novo nas- cimento. Alguns salientam a grande mudanga que ocorre com © novo nascimento e citam 2Corintios 5.17: “Portanto, se al- guém esta em Cristo, é nova criacdo. As coisas antigas ja pas- saram; eis que surgiram coisas novas!”. Outros imaginam a transformacéo como algo gradativo que culmina com a per- feicdo celestial, Outros ainda propdem a possibilidade da eli- minacao total do pecado — pelo menos do pecado intencio- nal. Ha os que afirmam que as pessoas tém duas naturezas depois da salvacao: a velha natureza, ou pecaminosa, que ti- nham antes da salvagao, e a nova natureza, semelhante a na- tureza divina de Deus, que inclui a vida eterna. As discuss6es teolégicas em lingua inglesa se batem com a palavra natureza, pois “poucas palavras sdo mais perigosa- mente ambiguas do que ‘natureza”.'! O problema de termino- logia existe porque na Biblia pelo menos uma palavra hebrai- ca e trés palavras gregas sdo traduzidas por “natureza”. Tanto no original grego quanto no hebraico a mesma palavra é em- pregada em sentidos diferentes. Essa falta de definicdo clara da palavra natureza tem gerado grande parte do debate teo- logico relativo a transformacdo que ocorre com a regenera- 218 = Sperspectivas sobre. santificagio cao. Estranhamente, muitos escritores iniciam 0 debate do tema sem se preocupar com nenhum dos varios significados da palavra em inglés ou das palavras correlatas das linguas bibli- cas. Muitos tedlogos evitam o vocabulo natureza e procuram outra palavra que indique um tipo de pecado interior. Os primeiros pais da igreja ensinavam que os cristéos tém duas naturezas distintas. Agostinho particularmente tratou da questéo com alguma amplitude. T. A. Hegre prop6ée que “se Ambrésio (340-430) introduziu a idéia de natureza peca- minosa, foi Agostinho (354-430) que criou a idéia das duas naturezas do crente e a apresentou como uma doutrina res- peitavel do cristianismo”.? Depois de questionar se Agostinho deduziu esse ensino das Escrituras, Hegre se engana tentan- do basear a posicdo agostiniana na experiéncia que esse pai da igreja teve com o maniqueismo.’ Agostinho, entretanto, nao se referia tipicamente a duas naturezas, mas a carne, que é um conceito biblico. Ao longo da historia da igreja, os cristéos continuaram dis- cutindo o conceito das duas naturezas. Os reformadores pro- testantes acompanharam Agostinho, Alguns calvinistas do século XIX, como Charles Hodge, por exemplo, também ado- taram o conceito de velha e nova natureza no crente. No sé- culo XX, calvinistas como Anthony A. Hoekema seguiram es- sencialmente 0 mesmo conceito de dupla natureza nos cristaos. Hoekema afirma na introdugdo de seu proveitoso estudo sobre o tema: Quase todos nds ficamos indignados diante da idéia de que guardamos alguma semelhanca com o famigerado protagonista de O Médico e 0 Monstro — 0 famoso romance de Stevenson —, 0 homem que era considerado um médico respeitavel durante o dia, mas que cometia crimes perversos a noite. Entretanto, por mais que nao gostemos de admitir esse fato, ha um aspecto em que todo o convertido é um tipo de combinacao de médico e monstro. Pois as Escrituras afirmam explicitamente que existe uma luta continua no intimo do convertido entre a velha e a nova natureza. Embora possamos crescer na graca e no conhecimento de nosso Salvador Jesus Cristo, nao existe trégua nessa guerra, nado ha pausa nas hos- tilidades — até a nossa morte.‘ No debate que segue, Hoekema associa a doutrina a esco- lastica, a Calvino e a Lutero. Examina importantes passagens Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 219 biblicas, como Galatas 5.16-24 e Romanos 7.14-25, e ent&o conclui com as inferéncias teolégicas da batalha.* C. 1. Scofield e muitos evangélicos do século XX, principal- mente os dispensacionalistas, adotaram a teoria das duas naturezas como conceito biblico. O principal problema des- sas perspectivas foi e continua sendo a extensdo e o poder do pecado nos cristéos apés a conversao e os meios de santifica- cdo, ou vida santa, 4 vista do pecado remanescente. O problema do significado da palavra natureza permeia o debate teologico. Um dos termos gregos para natureza é physis, empregado para a natureza pecaminosa do individuo antes da salvacao. Efésios 2.3 afirma: “Anteriormente, todos nés tam- bém viviamos entre eles, satisfazendo as vontades da nossa carne [gr. sarx], seguindo os seus desejos e pensamentos. Como os outros, éramos por natureza [gr. physis] merecedo- res da ira”. Com base nessa passagem biblica, ha pouca duvi- da de que somos por natureza pecadores antes da conversao, A palavra physis também é usada para “natureza divina” (2Pe 1.4), o que torna dificil emprega-Ja com referéncia 4 nova na- tureza de um pessoa apés a conversdo. A questéo que perma- nece sem resposta, portanto, diz respeito a qual é a melhor palavra para designar o carater pecaminoso continuado das pessoas, bem como o novo anseio por santidade depois da conversao. 0 CONCEITO AGOSTINIANO DE PECADO Em virtude da profunda consciéncia do carater pecamino- so do ser humano, Agostinho deu muita atengao a esse as- pecto do individuo, mesmo depois da conversdo. Raramente, porém, ele faz referéncia a algum aspecto do novo carater do individuo depois da converséo como natureza, preferindo fi- car palavra carne (gr. sarx). Nas Confissées, Agostinho compara suas préprias lutas contra o pecado as lutas relatadas por Paulo em Romanos 7.14- 25. Agostinho escreveu: Em vao, “no intimo do meu ser tenho prazer na Lei de Deus” quando “vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guer- reando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros”, Pois a lei do pecado é 0 220 = Sperspectivas sobre a santificagao ultraje do comportamento, pelo qual a mente é atraida e presa, mesmo contra sua vontade; merecendo ficar assim presa porque cai nessa situagao com tanto desejo. “Miseravel homem que eu sou! Quem me libertara do corpo sujeito a esta morte”, sendo sua graca, por meio de Jesus Cristo nosso Senhor?® Nesse ponto das Confissées, Agostinho nao deixa claro se estava falando da experiéncia anterior ou posterior a salva- cao. Nos escritos seguintes, entretanto, Agostinho assumiu definitivamente a posicdo de que essa passagem de Romanos refere-se a luta interior do cristao.” Charles Hodge apdia essa interpretacdo. Com referéncia a Romanos 7.14-25, comenta por fim que Agostinho e outros sustentavam que essa passagem se refere ao cristéo que ain- da esta sob a lei, néo a alguém que ainda no foi salvo. De acordo com Hodge, Parece que nos trés primeiros séculos os pais da igreja em geral concordavam que essa passagem era a descricdo da experi- éncia de alguém que ainda esta sob a Jei. Até Agostinho concordou a principio que essa perspectiva estava certa; porém, como a com- preensao mais profunda do préprio coracao e a investigacaéo mais acurada das Escrituras o levaram a mudar de opinido com relacdo a muitos outros assuntos, isso provocou também uma mudanga quanto ao tema. Essa alteracao da perspectiva doutrinaria nao pode ser atribuida a polémica com Pelagio, pois ocorreu muito antes de comegar a controvérsia. Deve ser atribuida a experiéncia religiosa e ao estudo da Palavra de Deus. Os escritores da Idade Média em geral concordavam com a perspectiva agostiniana posterior no que diz respeito a esse e a outros assuntos. Na época da Reforma, a diversidade inicial de opinides concernentes ao tema, assim como em todos os outros temas ligados a ele, rapidamente se tornou manifesta. Erasmo, Sécinos e outros fizeram renascer a opiniao dos pais gregos da Igreja, enquanto Lutero, Calvino, Melanchton, Bezae outros, aderiram a interpretacao oposta.® Hodge defendia que a perspectiva presente nessa passa- gem aplica-se de certa forma aos cristéos e observa que, de modo geral, os calvinistas assumiram essa posi¢do, enquanto os arminianos nado. Para Hodge, essa diferenca “é na verdade produto das diversas perspectivas da doutrina biblica do es- tado natural do homem”.® Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista * 221 Reconhecendo no cristéo o conflito entre pecado e justi¢a, Agostinho, escrevendo Palatinus, afirma: “Vigiem e orem para que nao caiam em tentacao.” Essa oracao é em si uma adverténcia de que a ajuda do Senhor é necessaria, de que nao se deve depositar a esperanca de viver bem apenas em si mesmo. Dessa forma, ora-se nado com o intuito de obter as rique- zas e honras do século atual, nem algum bem humano imaterial, mas para nao cair em tenta¢ao; 0 que nao se pediria em oracgdo seo homem conseguisse isso por vontade prépria.'° Em Cidade de Deus, Agostinho comenta a respeito da carne: Ao enunciar essa nossa proposicao, pois, isto é, a de que, por- que uns vivem segundo a carne e outros segundo o espirito, vie- ram a luz duas cidades diversas e conflitantes — por causa disso é que pudemos igualmente dizer: “porque alguns vivem de acordo com o homem e outros segundo Deus”. Pois Paulo diz claramente aos corintios, “porque, visto que ha inveja e divisdo entre vocés, nao est4o sendo carnais e agindo como mundanos?”. De modo que andar segundo o homem e ser carnal so a mesma coisa, pois pela “carne”, ou seja, por uma parte do homem, o homem é indigno."' No estudo sobre moderacao, Agostinho cita Galatas 5.16,17, dizendo: “Pois tampouco eram os outros membros da Igreja a quem ele ordenou ‘Vivam pelo Espirito, e de modo nenhum satisfaraéo os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrario ao Espirito; e o Espirito, o que é contrario a carne. Eles estéo em conflito um com o outro, de modo que vocés nao fazem o que desejam”.!? Notando que a palavra traduzi- da aqui por “carne” é entendida como “natureza pecaminosa” na NVI,* podemos ver que Agostinho percebe no cristao a con- tinuacdo do pecado de alguma forma e o conflito resultante da carne com a nova natureza e com o Espirito Santo. Se 0 cristao traz em si o pecado, designado nas Escrituras como “carne” — algo que nao é eliminado com o novo nasci- mento —, permanece a pergunta “Esse componente deve ser considerado ‘a natureza pecaminosa’?”. Para entender o pro- blema, temos de voltar ao conceito de Hodge da natureza coma substancia, o qual que deriva da sua idéia das duas naturezas “A NVI prefere a expressdo “natureza pecaminosa” em vez de carne [N. do T.]. 222 = S perspectivas sobre a santificacao em Cristo — a uniao hipostatica da natureza divina e da natu- reza humana. CONCEITO DAS NATUREZAS NA PESSOA DE CRISTO Comentando a unido hipostatica em Cristo, Hodge apre- senta sua posicao clara, a saber, que natureza é substancia. Existe uma uniao. Os elementos iniciais unidos sao a natureza humana ea divina. Por natureza, nesta ligacdo, entende-se substan- cia. Em grego, as palavras correspondentes sao [physis] e [ousia]; em latim, naturae substantia. A idéia de substancia é necessaria [...] 0 primeiro ponto importante com referéncia a pessoa de Cristo é que os elementos unidos ou combinados na pessoa de Cristo sao subs- tancias distintas, a humana e a divina; que Cristo se constitui da mesma substancia ou esséncia de que nos, homens, fomos forma- dos, e da mesma substancia que faz Deus infinito, eterno e imuta- vel em todas as suas perfeicées."? O problema para Hodge € que essa perspectiva é a da teolo- gia ortodoxa. B. B. Warfield diz algo muito parecido sobre a doutrina das duas naturezas de Cristo. Afirma que: Um dos mais graves sintomas de decadéncia da afinidade vital com 0 cristianismo histérico observavel nos circulos académicos atuais 6a amplamente difundida tendéncia, no recente debate cris- tolégico, de rebelar-se contra a doutrina das duas naturezas na pessoa de Cristo. A importancia dessa rebelido se torna patente quando refletimos que uma doutrina das duas naturezas é sim- plesmente outra forma de apresentar a doutrina da encarnacao; ea doutrina da encarnacao é o ponto de apoio em que se sustenta o sistema cristéo. Sem duas naturezas nao ha encarnacao; sem encar- nacao nao ha cristianismo em nenhum sentido. Apesar disso, tém- se levantado vozes em todaa parte declarando que a concepgao das duas naturezas em Cristo ja nao é mais admissivel; e repetidas ve- zes com valorizacao plena da importancia dessa declaracéo."* Pode-se concluir que o conceito de natureza humana em Cristo deve abranger tudo 0 que é genuinamente humano e nao esta associado ao pecado, e que o conceito de natureza divina deve abranger tudo 0 que é pertinente a Deus. Esse Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 223 conceito de natureza que implica uma existéncia substantiva em geral é aceito pelos que negam que o cristao ainda tem uma natureza pecaminosa e por sua vez provocou a luta para encontrar um termo substituto ou para negar tanto quanto possivel a presen¢a do pecado no cristaéo. Embora a perspec- tiva do carater substantivo da natureza na pessoa de Cristo seja reconhecida como ortodoxa, a maioria dos tedlogos que defende que os crentes tém a natureza pecaminosa e a divi- na, ou nova, usa o termo natureza em sentido mais brando nesse contexto. Ninguém defende que a natureza divina do cristéo chegou a existir em algum momento como pessoa dis- tinta, tal qual de fato ocorreu com Cristo, embora a natureza pecaminosa caracterize uma pessoa antes da salvacdo. O pro- blema esta em como definir natureza do modo que é usada com relacao ao cristao. A DEFINIGAO AGOSTINIANO-DISPENSACIONALISTA DE NATUREZA PECAMINOSA Charles Ryrie analisa 0 conceito de natureza no cristaéo: No momento em que a pessoa aceita Cristo como Salvador, ela se torna uma nova criacao (2Co 5.17). A vida interior recebida de Deus origina uma natureza que passa a existir juntamente coma antiga natureza por toda a vida. Entender a presen¢a, a posicdo ea relacao entre a nova e a velha natureza na vida do cristao é essen- cial para que o cristao tenha uma vida espiritual equilibrada e sau- davel. Algumas vezes, a natureza pecaminosa ¢ denominada car- ne. A propésito, o termo carne tem diversos significados. 1) As vezes, refere-se apenas ao corpo da pessoa (1Co 15.39). 2) Muitas vezes, refere-se 4 pessoa como um todo (Rm 3.20). 3) Freqiiente- mente, entretanto, é usado nas Escrituras para indicar a natureza pecaminosa (Rm 7.18). Mas o que significa quando empregado nesse sentido? Para responder a essa questao, é necessario buscar uma boa defini¢&o do termo natureza. Muitas vezes, quando se pensa em novae velha natureza, as pessoas imaginam duas pesso- as distintas vivendo no mesmo corpo. Uma é terrivel, horripilante, um ser decadente, enquanto a outra é elegante, jovem, uma pessoa vitoriosa. Nao é necessario descartar totalmente esse tipo de repre- sentacdo, embora muitas vezes ele nos leve a pensar que nao fui exatamente eu quem fez essas coisas, mas o “homenzinho” que vive em mim. Em outras palavras, muitas vezes esse tipo de repre- 224 = 5 perspectivas sobre a santificacao sentaco nos leva a uma falsa separacdo da personalidade de um individuo.'> Ryrie prossegue, definindo natureza como “capacidade”. E muito melhor definir natureza em termos de capacidade. Dessa forma, a velha natureza da carne é a capacidade que todo o homem tem de servir e agradar a si mesmo. Em outras palavras, pode-se dizer que é a capacidade de deixar Deus de fora da vida da pessoa. Nao seria suficientemente abrangente se definissemos natureza pecaminosa em termos da capacidade de fazer o mal, porque ela é mais do que isso. Existem muitas coisas que nao sao ruins em si, mas que derivam da velha natureza.'* Em Romanos 7,14-25, entretanto, parece que Paulo indica que a carne, ou natureza pecaminosa, representa mais do que capacidade. Ao que parece, mencionam-se muitos outros con- ceitos além desse, como depravacao da velha natureza ou sua tendéncia natural (ou predisposicdo) ao pecado. De acordo com as Escrituras, todos esses conceitos podem ser incorpo- rados corretamente ao conceito de velha natureza, Os caivinistas em geral reconhecem que 0 nao-cristaéo tem a natureza pecaminosa. Lewis Sperry Chafer, por exemplo, afirma: Ao tentar analisar mais especificamente 0 que é a natureza pe- caminosa, devemos nos lembrar de que ela é uma perverséo da criacao original de Deus e, nesse sentido, é algo anormal. Cada uma das faculdades humanas foi prejudicada pela Queda, e a inca- pacidade de fazer o bem e a estranha predisposicado ao mal veéma tona a partir dessa confusao interior..” Embora os dispensacionalistas em geral afirmem que os crentes ainda mantém a natureza pecaminosa, Chafer limita © conceito do termo natureza: NAo fosse por causa de um sentido secundario do termo natu- reza, ele nao seria uma designacao apropriada para 0 que se pre- tende especificar. Natureza é basicamente algo criado por Deus, como, por exemplo, a natureza humana antes da Queda, que refle- tia a imagem e a semelhanca divinas. Em sentido secundario, 0 termo natureza designa a perversao, que inclui as inclinagdes pe- caminosas que a Queda produziu.'* Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 225 Com base nos escritos de autores calvinistas como Hodge e de dispensacionalistas como Ryrie e Chafer, podemos con- cluir que a perspectiva agostiniano-dispensacionalista consi- dera a natureza pecaminosa uma entidade de carater menos duradouro do que as duas naturezas presentes na encarna- ¢ao de Cristo. Embora Ryrie prefira usar o termo capacidade, Chafer usa a palavra natureza num sentido que abrange a in- clinagao que mesmo o cristaéo, com uma nova natureza, tem para continuar em pecado. Embora C. I. Scofield tenha intimeras anotagées sobre o conceito de pecado, sua andlise a respeito da natureza peca- minosa € comparativamente mais breve. Com referéncia a ex- posicdo de Romanos 7.14, ele afirma: “Nesta passagem (v. 15- 25) de profunda sensibilidade espiritual e psicolégica, o apéstolo personifica a luta das duas naturezas no interior do cristéo — a velha natureza adamica e a natureza divina rece- bida mediante o novo nascimento (1Pe 1.23, 2Pe 1.4; cp. Gl 2.20; C1 1.27)".9 Embora possamos discutir as diversas outras definicdes, o conceito de natureza pecaminosa pode ser mais bem resumi- do como o conjunto de atributos humanos que demonstram o desejo pelo pecado e a predisposicao para ele. Ao mesmo tempo, a pessoa que recebeu a salvacdo divina tem uma nova natureza, que pode ser definida como um conjunto de atri- butos com predisposi¢ao e inclinacaéo para a justic¢a. Essas definicdes resumem razoavelmente o conceito agostiniano- dispensacionalista das duas naturezas do homem. A palavra natureza é usada pelos dispensacionalistas da atualidade em sentido menos completo do que o usado em referéncia as duas naturezas de Cristo. A tendéncia a limitar a caracteristica do pecado no crente @ percebida no uso que Ryrie faz do termo capacidade e no emprego por outros dispensacionalistas da expressdo “pecado interior” ou de qualquer outra expressao que evite o termo natureza. Quando se evita a palavra nature- za, entretanto, muitas vezes é dificil encontrar outra palavra que a substitua de maneira satisfatoria. Entretanto, alguns dispensacionalistas atuais foram muito além, redefinindo a natureza pecaminosa do cristo. David C. Needham, por exemplo, da tanto destaque a idéia do crente como nova criagdo que quase faz desaparecer o conceito de pecado no cristao. Afirma: “Creio que é completamente ilégi- 1226 = Sperspectivas sobre a santificagao co defender que Romanos 7.14-25 fala da experiéncia caracte- ristica do crente que encara a vida a luz de Romanos 6 e 8", Na exposi¢do, ele evita qualquer referéncia as duas naturezas em Cristo, como fazem muitos outros que negam a existéncia da natureza pecaminosa no cristaéo. Na teologia, o emprego do termo natureza para referir-se aos atributos humanos e divinos de Cristo enfraquece a possivel assercéo de que as duas naturezas do crente implicam conceber que a personali- dade humana é dividida e esquizofrénica. Jesus Cristo sem davida foi a tnica pessoa com duas naturezas. A definicdo de Needham do que permanece pecaminoso para 0 cristao con- sidera a nova natureza como o “homem interior” e 0 elemento pecaminoso no crente como “o eu mais superficial”.*! Sua ana- lise engrandece acima de tudo 0 conceito de nova criac¢éo em Cristo e diminui a presenca de qualquer forma de pecado. Embora escreva num contexto dispensacionalista, Needham nao pode ser considerado um representante tipico dessa ten- déncia. Ele parece nado estar ciente da posicdo historica de Agostinho e dos calvinistas, posicéo que é muito mais realista e clara com respeito ao pecado interior em uma pessoa do que sua descricdo. Ele também ignora a luz lancada sobre 0 assunto pelo conceito das duas naturezas de Cristo. A afir- macao que ele faz de que o conceito da natureza pecaminosa é “jlogico” nado é amparada por seus argumentos. OUTRAS PALAVRAS RELACIONADAS A NATUREZA PECANINOSA Como vimos, o conceito agostiniano de carne parece siné- nimo do conceito de natureza pecaminosa. Na analise ante- rior, observamos que nem todas as ocorréncias da palavra carne (gr. sarx) se referem a natureza pecaminosa. Fm Roma- nos 7.18, entretanto, ela é usada como sinénimo de natureza pecaminosa, ou seja, como aquilo que permanece na pessoa depois de tornar-se crista. Outras expressGes que carecem de definicao sao os concei- tos de velho homem e novo homem. Muitos dispensaciona- listas atuais seguem Scofield na definicgéo do velho homem como “tudo aquilo que o homem era em Adao, moral e judicial- mente, ou seja, o homem com a natureza velha, corrupta, a inclinagdo inata ao mal que todo o ser humano tem”.** Em con- Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 227 traste com essa definicdo, Scofield defende que “o ‘novo ho- mem’ regenerado distingue-se do velho homem (nota de Rm 6.6) e 6 um novo homem ao partilhar da natureza e vida divi- na (Cl 3.3,4; 2Pe 1.4) e de forma alguma o velho homem se renovou ou melhorou (2Co 5.17; Gl 6.15; Ef 2.10; Cl 3.10), 0 novo homem é Cristo sendo ‘formado’ no cristao (GI 2.20; 4.19; C11.27; 1Jo 4.12)". Existem alguns motivos para questionar a identificacdo do velho homem com a natureza pecaminosa e 0 novo homem com a nova natureza. Colossenses 3.9,10, por exemplo, afir- ma: “Néo mintam uns aos outros, visto que vocés ja se despi- ram do velho homem com suas praticas e se revestiram do novo, © qual esta sendo renovado em conhecimento, a ima- gem do seu Criador”. Obviamente, é impossivel despir-se do velho homem, assim como é impossivel pelo esforg¢o huma- no revestir-se do novo, se esses versiculos se referirem @ ve- Iha e & nova natureza. O velho homem mencionado em Ro- manos 6.6 e Colossenses 3.9,10 parece referir-se mais ao modo de vida anterior do que a velha natureza. Do mesmo modo, o novo homem, como indica Efésios 4,24, parece referir-se ao novo modo de vida que deriva da nova natureza e se mani- festa na experiéncia crista. A exortac¢4o aqui a “revestir-se do novo homem” significa que a nova natureza deve ter condi- ¢des de manifestar-se. Esse revestimento também pode ser entendido como algo que ja se realizou (como em Cl 3.9,10). Da mesma forma, o velho homem é retratado em Romanos 6.6 como crucificado no momento em que Cristo foi crucifi- cado. Por isso é que Paulo afirma: “Fui crucificado com Cristo. Assim, ja nao sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20). A morte de Cristo nao é suficiente apenas para retirar a culpa do pecado do crente, mas também possibilita ao indivi- duo libertar-se dos velhos habitos e da velha vida que o ca- racterizava antes da conversao. RESUMO DO ESTADO ESPIRITUAL DA PESSOA APOS A SALVACAO A luz da exposicao precedente, podemos concluir que, uma vez que a pessoa € salva, o seu estado espiritual inclui uma natureza nova e uma velha. Ou seja, o crente ainda conserva uma velha natureza — o conjunto de atributos com inclina- gdo e disposic¢éo para o pecado; e a nova natureza, que tam- 228 = 5 perspectivas sobre a santificagao bém possui um conjunto de atributos, mas esses atributos fa- zem 0 cristao inclinar-se para 0 novo modo de vida, que é santo aos olhos de Deus. Com base na perspectiva agostiniano-dis- pensacionalista, o problema fundamental da santificacdo refe- re-se ao modo que as pessoas portadoras desses aspectos dis- tintos em seu ser — a velha e a nova natureza — podem atingir pelo menos um nivel relativo de santificacdo e retidao nesta vida. As pessoas redimidas nao sao capazes de viver com santi- dade sem ajuda divina. A velha natureza tende ao pecado, ea nova, a agir com correcdo. Logo, essas duas naturezas estao em luta, como foi dito em Romanos 7.14-25. Além disso, uma vez que a velha natureza é incapaz de produzir uma vida de justicga, a nova natureza também é incapaz de fazer isso por si s6. Por isso, a perspectiva agostiniano-dispensacionalista afirma que a vida santa so é possivel por meio da graca e da capacitagéo de Deus a cada crente. A santificacdo final dos crentes no céu esta garantida, mas os cristéos nao vivem a santificacdo automaticamente na terra sO porque se tornaram novas criac6es em Cristo. Da parte de Deus, é necessario pro- visdo para a necessidade espiritual do cristéo; do lado huma- no, faz-se necessaria a apropriacao. A REGENERACAO DA PESSOA Um elemento essencial da mudan¢a drastica por que o in- dividuo passa na salvacao é a obra que o Espirito Santo realiza na regeneracao, a renova¢aéo que ocorre no momento da sal- vacao. A palavra regeneracao (gr. palingenesia) s6 é usada duas vezes no NT (Mt 19.28; Tt 3.5). Contudo, s6 em Tito 3.5 é que se fala da nova vida que o crente recebe no momento da sal- vacgao: “Nao por causa de atos de justica por nés praticados, mas devido 4 sua misericordia, ele nos salvou pelo lavar rege- nerador [gr. palingenesia] e renovador do Espirito Santo”. O conceito de regeneracao, entretanto, é proeminente na teolo- gia protestante, pois ao longo dos séculos a igreja tem discu- tido seu significado em relacéo a termos como conversdo, santificagdo e justificagdo. Na teologia reformada mais recen- te, regenera¢do esta associada a concessao da vida eterna. Charle Hodge afirma: Por consenso quase universal, a palavra regeneracao é empre- gada atualmente para designar nao o trabalho completo de santifi- Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista » 229 cacao, nem os primeiros estagios dessa obra, que est4o incluidos na conversdo, muito menos a justificacado ou alguma simples mu- danca exterior de estado, mas a passagem instantaénea da morte espiritual para a vida espiritual.”4 Nesse sentido, uma pessoa redimida é uma nova cria¢ao em Cristo Jesus, pois recebeu vida eterna. Nas Escrituras, regeneracéo abrange o sentido de trés figu- ras.?5 Primeiro, a regeneracdéo é 0 novo nascimento, ou “nas- cer de novo” (Jo 3,7). Assim como o nascimento natural é con- seqliéncia da paternidade humana, da mesma forma o nascimento divino diz respeito a vida eterna que esta em Deus Para o crente em Cristo. A segunda imagem usada na Biblia compara 0 novo nasci- mento com a ressurrei¢do espiritual (Jo 5.25; Ef 2.5,6; Cl 2.12; 3.1,2). Os cristéos sao designados como “quem voltou da morte para a vida” (Rm 6,13), Uma terceira imagem é€ mencionada na expressdo “nova criacdo”: “Portanto, se alguém esta em Cristo, é nova criacéo. As coisas antigas jé passaram; eis que surgiram coisas no- vas!" (2Co 5.17). Baseado no fato de que é uma nova criagdo e com essa nova perspectiva, o cristaéo é exortado a manifestar boas obras e uma vida transformada (Ef 2.10; 4.24). Por acompanhar Agostinho, a teologia reformada entende regeneracdo diferentemente, como uma obra de Deus conclul- da nao pelos meios, mas imediatamente pelo Espirito Santo ao mesmo tempo que a pessoa cré em Cristo. Embora produ- za uma experiéncia, a regeneracdo ndo é uma experiéncia em si nem pode ser separada da salvacao. Na medida em que a regeneracdo implica a concessdo da vida eterna, ela também é inseparavel da nova natureza dada A pessoa regenerada. Qualquer experiéncia espiritual que se se- gue ao ato de regeneracgado caracteriza a nova criacéo que se realizou. Na teologia reformada, 0 ato de regeneracdo é irre- versivel e resulta na seguranca eterna do crente em Cristo. Uma vez salva, a pessoa regenerada nao mais tem duvida so- bre sua salvacdo, mas esta preparada para defrontar-se com o problema da santificagéo pratica. Com base nas Escrituras, a regeneracdo nado produz perfeigdo de cardter nem libertagdéo da natureza pecaminosa. 20 = 5 perspectivas sobrea santificagao 0 BATISMO COM 0 ESP/RITO SANTO Conquanto haja consenso na teologia reformada acerca da doutrina da regeneracao, o significado do batismo com o Es- pirito Santo tem sido discutido com freqiiéncia.** Para os dis- pensacionalistas, a santificagdo baseia-se na teologia reforma- da, mas, com respeito 4 doutrina do batismo com o Espirito Santo, existe certo afastamento, ou pelo menos refinamento, da teologia reformada mais antiga. A doutrina do batismo com o Espirito Santo tem sido deixada de lado na teologia reforma- da, como exemplifica Abraham Kuyper em Work of the Holy Spirit [A obra do Espirito Santo]. Esse livro de mais de 600 paginas n&o apresenta nenhuma analise do tema do batismo com 0 Espirito.?” A confusado de entendimento do batismo com o Espirito Santo tem sido acompanhada pela confusao a respeito da natu- reza da igreja na época atual. Embora 0 batismo com o Espirito nao seja mencionado no AT, muitos ensinam que os santos de todas as épocas pertencem a igreja. Os dispensacionalistas, entretanto, defendem que a igreja é composta apenas pelos santos da época presente. Alguns estudiosos identificaram erroneamente o batismo com o Espirito Santo com a regene- racéo, com a habitacdo do Espirito, com o enchimento pelo Espirito ou com a manifestacdo de diversos dons do Espirito. Entretanto, a verdade vem a luz quando atentamos para 0 uso da expressao no NT. Nos quatro evangelhos, o batismo com o Espirito € sempre men-cionado como obra futura de Deus (Mt 3.11; Mc 1.8; Le 3.16; Jo 1.33). Mesmo em Atos 1.5, pouco antes da ascenséo de Cristo, o batismo do Espfrito ainda é considerado um aconteci- mento futuro. Em passagens biblicas posteriores, ele é apre- sentado (no que diz respeito aos crentes) como algo que tinha ocorrido (At 11,16; 1Co 12.13; cf. GI 3.27; Ef 4.5; Cl 2.12). Evita-se grande parte da confusao relativa a essa doutrina com a exegese correta de 1Corintios 12.13, o texto definitivo: “Pois em um s6 corpo todos nés fomos batizados em um tni- co Espirito: quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer li- vres. E a todos nos foi dado beber de um unico Espirito”. De acordo com esse versiculo, o batismo no Espirito Santo signi- fica inserir 0 crente “em um s6 corpo”, ou seja, na igreja. O corpo humano é usado como imagem para todos os crentes, Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 231 dos quais repetidamente se afirma que estaéo “em Cristo”. Essa relacdo cumpre a profecia de Jesus em Jodo 14,20: “Naquele dia compreenderéo que estou em meu Pai, vocés em mim, e eu em vocés”. O conceito de crentes que compdem um corpo vivo cuja cabega é Cristo (1Co 11.3; Ef 1.22,23; 5.23,24; Cl1.18) é uma verdade espiritual e teolégica peculiar 4 época atual. A forma que a revelacdo do NT apresenta o carater definiti- vo do batismo do Espirito produziu o conceito dispensacio- nalista de que igreja é um termo que designa apenas a época atual. Embora a palavra igreja [gr. ekklésia] se encontre com freqiiéncia na Septuaginta, nesse contexto ela diz respeito ape- nas a uma assembléia local relacionada ao ambiente geografi- co, e ndo a um grupo de crentes sem nenhuma relagao espa- cial entre si. Dessa forma, embora a palavra santo seja usada corretamente em referéncia a todos os que foram redimidos em qualquer época, os dispensacionalistas advogam que a pa- lavra igreja se refere especificamente aos crentes da época presente. Apesar de a doutrina do batismo do Espirito Santo ter sido negligenciada em grande parte nos circulos reformados, atraiu muita atencdo do ensino pentecostal e da teologia dispensa- cionalista. James D. G. Dunn, no livro Baptism in the Holy Spirit [Batismo no Espirito Santo], exemplifica a renovacaio da aten¢do ao tema. Seu estudo critica o pentecostalismo e a con- cepcdo da doutrina acerca dos dons espirituais no NT. Con- quanto o conceito de Dunn do batismo do Espirito muitas vezes nao seja definido com precisio, ele o entende como “uma forma figurada de descrever o ato em que Deus coloca 0 homem ‘em Cristo’ ".2 Apesar de Dunn em alguns aspectos hesitar em abracar totalmente a doutrina do batismo com o Espirito Santo de acordo com a perspectiva dispensacionalis- ta, ele chega muitissimo perto disso. Seu livro é notavel por causa da atencao dada a doutrina do batismo com o Espirito Santo por alguém ndao-pentecostal. A postura que afirma que a igreja esta em Cristo introduz um elemento importante para a concep¢ao dispensacionalis- ta de santificacéo, conceito que muitas vezes refere-se a “san- tificagdo posicional”. Na exposicao intitulada “Sete Figuras da Igreja", Lewis Sperry Chafer comenta com pormenores a posi- cdo do crente “em Cristo”. Chafer desenvolve o conceito de igreja como nova criacao e faz referéncia a diversas passa- BD « Sperspectivas sobrea santifcagéo gens do NT (2Co 5.17,18; Gl 3.27,28; 6.15; Ef 2.10-15; 4.21-24; Cl 3.9,10).” Pela igualdade de posicdo de todos os crentes em Cristo, relagéo que jamais mudou, esse estado vem a ser a base do uso neotestamentario da palavra santo. A grande maioria das alusGes a santificagéo no NT esta no uso do vocabulo santo, empregado indiscriminadamente em referéncia a todos os cris- tdos verdadeiros. Embora o termo se aplique aos redimidos de todas as épocas, no momento atual significa especifica- mente os que foram batizados pelo Espirito Santo no corpo de Cristo, e esse batismo nunca é mencionado como fato con- sumado antes do Pentecoste e nunca como fato futuro apés a segunda vinda de Cristo. O batismo do Espirito Santo, que ocorreu primeiramente no dia de Pentecoste (compare At 1.5 com At 11.16), identifica 0 crente com Cristo na morte, no sepultamento e na ressur- reicdo (Rm 6.1-4; Cl 2.12). Essa identificacéo nao é apenas um ajuste de contas com Deus, mas também esta ligada a nossa uniao com Cristo na vida eterna, incluida no conceito de rege- nerac¢ao. O batismo com o Espirito Santo nado deve ser confundido com o enchimento do Espirito, como comumente ocorre, so porque ambos ocorreram ao mesmo tempo no dia de Pente- coste, nem deve ser confundido com a habitacdo do Espirito, que também aconteceu no dia de Pentecoste. O ato do batis- mo com o Espirito Santo é uma obra que ocorre de uma vez por todas no momento da salva¢gao e permite ao crente esta- belecer uma uniao viva com todos os outros crentes e com Cristo. Essa nova unido é ingrediente essencial no programa divino de santificagaéo e prové de uma unica vez uma nova posicdo em Cristo, obra completa e acabada, e (ao mesmo tem- po) prové unidade com Cristo, o cabeca, e com a igreja, 0 Cor- po de Cristo. Dessa uniao surgem a comunhao espiritual, a capacidade de frutificar, o suprimento de poder espiritual e a direcgado que Cristo, o cabega da igreja, da aos membros de seu Corpo. Essa verdade, portanto, é fundamental e essencial para a doutrina da salvacdo e a da santificacao. Deixar de compre- ender o carater distintivo do batismo do Espirito é a principal causa de confuséo na compreensdo da obra do Espirito Santo no cristéo e da obra de Deus referente a santificacéo progres- siva e 4 maturidade dos membros do Corpo de Cristo. Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 233 A HABITACAO DO ESPIRITO SANTO Embora a obra do Espirito Santo possa ser identificada ao longo das Escrituras como um todo e seja intrinseca em cada obra de Deus, desde a eternidade passada até a eternidade futura, uma nova e distinta provisdo da presenca do Espirito tem sido percebida desde o dia de Pentecoste. O AT registra atuac6es especiais e ocasionais do Espirito Santo para capaci- tar pessoas a realizar alguma obra para Deus. Presume-se que o Espirito de Deus tenha agido nos profetas e nos autores biblicos bem como na santificagéo dos que eram salvos. A habitacéo universal do Espirito Santo, entretanto, nao havia ocorrido até o dia de Pentecoste, do modo que foi demonstra- do nas profecias de Cristo, que diziam que essa habitacéo ocorreria no futuro,*° Nos quatro evangelhos, assim como ha profecias que tra- tam do batismo do Espirito Santo no futuro, também Cristo profetiza um novo e diferente ministério para o Espirito Santo: No ultimo e mais importante dia da festa, Jesus levantou-se e disse em alta voz: “Se alguém tem sede, venha a mime beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirao rios de Agua viva". Ele estava se referindo ao Espirito, que mais tarde rece- beriam os que nele cressem, Até entao o Espirito ainda nao tinha sido dado, pois Jesus ainda nao fora glorificado, (Jo 7.37-39) Essa passagem faz distincdo clara entre 0 ministério pas- sado e o futuro do Espirito Santo. Na noite anterior a crucificacéo, Jesus anunciou mais uma vez 0 novo ministério do Espirito: “E eu pedirei ao Pai, e ele Ihes dara outro Conselheiro para estar com vocés para sem- pre, o Espirito da verdade. O mundo nao pode recebé-lo, por- que nao o vé nem o conhece. Mas vocés o conhecem, pois ele vive com vocés e estara em vocés" (Jo 14.16,17). Antes da as- censdo, Jesus também instruiu os discipulos com respeito a obra futura do Espirito, falando do futuro batismo do Espirito Santo (At 1.4,5) e do enchimento (v. 8), Depois do Pentecoste, a habitacdo do Espirito Santo é mencionada varias vezes (At 11.17; Rm 5.5; 8.9-11; 1Co 2.12; 6.19,20; 12.13; 2Co 5.5; Gl 3.2; 4.6; LJo 3.24; 4.13). Com base nessas referéncias, fica cla- ro que a presenca interior do Espirito Santo é uma das provas da salvacdéo da pessoa e também significa o meio pelo qual Bd = 5 perspectivas sobre a santificacdo Deus pode efetuar a santificacdo no aspecto pratico e pro- gressivo. E impossivel superestimar a importancia da habitacéo do Espfrito no novo convertido. Sua presenca é prova de proprie- dade divina, de seguranca e graca, e da intengao divina de produzir no novo convertido o fruto da salvagao. O Espirito Santo € o selo divino de propriedade (2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14). Visto que o Espirito habita o crente, 0 corpo deste torna-se templo do Espirito (1Co 6.19). A presenca do Espirito Santo também € o selo divino de seguran¢a para os crentes quanto a salvacdo e confirma o propdsito de Deus de apresenta-los santos no céu. A habitagdo do Espirito Santo, bem como o batismo e a regeneracao do Espirito, ocorre uma Unica vez no momento da salvacdo e fornece as bases para a obra divina futura de graca, a saber, a santificacdo e a glorificacao final. A presenca do Espirito Santo ¢é acompanhada pelos dons espiri- tuais e pela possibilidade do crente exercé-los no poder e na bén¢gdo do Senhor. 0 ENCHIMENTO DO ESPIRITO SANTO Embora todos os cristaéos sejam regenerados, batizados, habitados e selados pelo Espirito, nem todos os cristéos séo cheios do Espirito. Essa importante variavel explica a grande diferenca de experiéncias e poderes espirituais que existe en- tre os varios crentes. O enchimento do Espirito é a fonte de todos os ministérios importantes do Espirito nos crentes de- pois da conversao. Esse enchimento nao deve ser confundi- do com experiéncias que precedem a salvacdéo (como a con- vic¢ao do Espirito), nem com as obras que ocorrem uma Unica vez no momento da salvagao. O enchimento do Espirito 6 uma obra de Deus que ocorre repetidamente na vida dos crentes, portanto é sem duvida a fonte da santificagdo, bem como da frutificacdo espiritual.*? A qualidade da vida espiritual de um cristao é demonstra- da de variadas formas durante a vida. O novo convertido pode ser imaturo e relativamente ignorante a respeito de Deus e da verdade, mas mesmo assim pode ter certo grau de espiritua- lidade e, por isso, vivenciar 0 enchimento do Espirito do modo que foi exemplificado na conversdéo de Cornélio (At 10) e na conversdo dos discipulos de Jodo (At 19), Ja nos cristéos ma- Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 235 duros, entretanto, a vida espiritual pode ampliar e aprofun- dar-se e apresentar novas caracteristicas. Portanto, a espiri- tualidade em relacgéo 4 maturidade é a qualidade da vida espi- ritual do crente em qualquer momento. Com crescimento e maturidade, essa espiritualidade pode tornar-se mais signifi- cativa e eficaz. As qualidades conjuntas da vida espiritual, ou enchimento do Espirito, e da maturidade espiritual, que é al- cangada gradualmente, sao os dois principais fatores deter- minantes da qualidade da vida espiritual do crente. Embora tenham sido apresentadas diversas definicdes de enchimento do Espirito, a expressdo refere-se basicamente ao servigo sem impedimentos que o Espirito realiza na vida do cristaéo. Esse ministério do Espirito traz controle, nas circuns- tancias presentes, a vida do cristéo e a infusdo de poder espi- ritual que Ihe permite realizar muito mais do que ele poderia fazer naturalmente. Esse tipo de controle espiritual, porém, nao é permanente e depende do enchimento renovado e cons- tante do Espirito. No AT, o enchimento do Espirito, ao que parece, relaciona- se principalmente ao servico para Deus e as vezes tem rela- ¢4o0 com habilidades de diversos tipos. No NT, 0 enchimento do Espirito liga-se mais 4 vida e a um estado espiritual ativo associado ao que Deus deseja para cada cristao. Ao todo, exis- tem 15 referéncias no NT ao enchimento do Espirito. O verbo grego mais usado é pimpléemi (Lc 1.15,41,67; At 2.4; 4.8,31; 9.17; 13.9). O verbo pléroé ¢ usado em Atos 13.52 e Efésios 5.18, esta ultima é uma das passagens neotestamentarias mais importantes sobre o assunto. Os dois verbos tém a raiz ple. Cinco referéncias do adjetivo plérés também se relacionam ao enchimento do Espirito (Lc 4.1; At 6.3,5; 7.55; 11.24). Em todas essas ocorréncias, 4 excecao do caso incomum de uma crianca (Jodo Batista em Lc 1.15), 0 crente que foi cheio pelo Espirito nado recebeu mais do Espirito quantitativamente, mas a capacidade de o Espfrito trabalhar sem impedimento no crente e controla-lo por completo. A questao, portanto, nao é haver mais da presenga de Deus, mas sim haver mais do poder realizador e ministrador da presenca de Deus na vida do crente. As primeiras referéncias dos Evangelhos ao enchimento do Espirito — como, por exemplo, a experiéncia de Jesus (Lc 4,1), de Joao Batista (1.15) e dos pais de Joao, Zacarias e Isabel 236 5 perspectivas sobre a santificagao (v. 41,67) — sdo antecipacées de experiéncias semelhantes dos cristéos no livro dos Atos. O marco do enchimento do Espiri- to ocorre no dia de Pentecoste, quando todos os cristaos fo- ram cheios do Espirito (At 2.4). Foram registradas experién- cias posteriores de enchimento, como no caso de Pedro perante o Sinédrio (4.8) e dos primeiros cristaéos depois do tempo de oracéo comum (4.31). Entre os exemplos posterio- res, podemos observar o enchimento do Espirito na vida de Estévdo (6.3,5; 7.55), de Paulo (9.17), Barnabé (11.24) e dos discipulos de Antioquia da Pisidia (13.52). Em todos esses ca- sos, o enchimento do Espirito significa a presenca do Espirito de Deus dando poder e capacidade para o individuo realizar a vontade de Deus. Um dos textos mais importantes do NT é Efésios 5.18, em que Paulo declara: “Nao se embriaguem com vinho, que leva a libertinagem, mas deixem-se encher pelo Espirito”. A obra do Espirito Santo é comparada e contraposta ao efeito produzido pelo vinho. Assim como o teor alcoélico do vinho permeia completamente o corpo do individuo e lhe transforma a ca- pacidade de agir, também o Espfrito enche o individuo e o capacita a cumprir a vontade de Deus. Como fica implicito na ordem de ser cheio com o Espirito, é possivel ser cristéo e ainda assim nao estar cheio do Espirito. A mesma pessoa pode estar cheia em determinado momento e nao estar em outro. Essa operacaéo contrasta com as obras permanentes do Espiri- to realizadas no momento da salvacao (como a regeneracao, o batismo e a habita¢ao). Em Efésios 5.18, o verbo traduzido por “ser cheio” esta no tempo presente, o que da a idéia de “continuem a ser cheios”. O enchimento do Espirito, entretanto, esta relacionado a ex- periéncia, 0 que abrange certo periodo de tempo e, portanto, opée-se ao batismo com o Espirito Santo, expresséo com a qual é sempre confundida. O verbo grego traduzido por “ba- tizar” em 1Corintios 12.13 esta no tempo aoristo, o que indica um ato unico definitivo, ou seja, que ocorreu de uma vez por todas. Com relacéo ao enchimento do Espirito, entretanto, a pessoa pode procurar ter essa experiéncia de controle e capa- citagdo por meio do Espirito de Deus repetidas vezes, mo- mento a momento. Se o enchimento do Espirito Santo é um aspecto fundamental na vida espiritual do crente, surge en- tdo a pergunta acerca do que seria necessdrio o cristao fazer para viver esse enchimento. Aperspctvaagostiniano-dispensacionalista = 237 ONT 6 claro ao afirmar que 0 enchimento do Espirito ocor- re quando o cristéo apresenta as condicdes necessarias. No comec¢o de seu ministério, Cristo afirmou que ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6.24). A questéo com que todo o cristéo depara depois da conversdo é se ele vai submeter-se por completo 4 vontade de Deus. Essa questao é levantada repetidamente em Romanos, quando Paulo lida com a obra exterior da salvacdo referente 4 doutrina da santificagdo. O apéstolo desafia os leitores a sujeitar-se a Deus, como, por exemplo, em Romanos 6.10-14. Porque morrendo, ele morreu para 0 pecado uma vez por todas; mas vivendo, vive para Deus. Da mesma forma, considerem-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus. Portan- to, nao permitam que o pecado continue dominando os seus corpos mortais, fazendo que vocés obedecam aos seus desejos. Nao ofere- cam os membros do corpo de vocés ao pecado, como instrumentos de injustica; antes ofere¢am-se a Deus como quem voltou da morte para a vida; e oferecam os membros do corpo de vocés a ele, como instrumentos de justica. Pois o pecado n&o os dominara, porque vocés nao estado debaixo da Lei, mas debaixo da graca. Nessa passagem, Paulo compara a atitude de alguém que oferece 0 corpo repetidas vezes a atos pecaminosos com a atitude de alguém oferecer-se a Deus como um ato definitivo. (Paulo usa o tempo presente na ordem “ndo permitam que o pecado continue dominando os seus corpos mortais”, mas usa o tempo aoristo para a ordem “oferecam-se a Deus”.) Essa oferta é 0 ato inicial de reconhecimento da autoridade de Je- sus Cristo e do direito do Espirito Santo de controlar e guiar a vida do cristéo. A mesma verdade é sublinhada em Romanos 12.1,2, a exortacdo que resume as implicacdes de todo o con- tetido teolégico anterior do livro de Romanos. Paulo escreve: “Portanto, irmaos, rogo-lhes pelas misericérdias de Deus que se oferecam em sacrificio vivo, santo e agradavel a Deus; este é 0 culto racional de vocés. Nao se amoldem ao padrao deste mundo, mas transformem-se pela renovacdo da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradavel e perfeita vontade de Deus”. Além disso, 0 ato inici- al de sujeic¢do deve continuar, como da a entender o imperati- vo de 1Tessalonicenses 5.19 (“Nao apaguem o Espirito”). Em outras palavras, “ndo resistam, ndo digam nao ao Espirito”. 238 = 5 perspectivas sobre a santificacéo A experiéncia de enchimento continuo do Espirito pée o cristéo em contato com Deus em diversas areas. Em primeiro lugar, o cristaéo deve entender a vontade de Deus revelada nas Escrituras e a ela sujeitar-se. Ao mesmo tempo que o cristaéo ganha experiéncia e maturidade e recebe uma revelacdo mais completa da vontade de Deus, deve obedecer continuamente as ordens biblicas e sujeitar-se ao Espirito Santo; essas sao as condic6es para que o enchimento do Espirito continue. O cren- te precisa saber distinguir entre orientacdo para a vida crista e revelacdo biblica. Esta da os principios gerais e os padrées morais de conduta, ao passo que a orientacao é a aplicacaéo do ensino mais geral a vida pessoal. Outro aspecto muito importante a que o cristéo deve se submeter é a obra providencial de Deus, que muitas vezes inclui experiéncias indesejaveis, como tristeza, frustragdo e decepcado. Submeter-se ao tratamento providencial divino pro- duz mais maturidade e discernimento quanto a verdade e aos caminhos de Deus. O exemplo maximo do enchimento do Espirito é dado pelo proprio Cristo, na famosa passagem de Filipenses 2.5-11. Em sujeigdo a vontade e ao plano de Deus, Cristo submeteu-se as limitagées de ser um homem na terra, aos sofrimentos e ten- tagdes acarretados por essa condi¢ao e a suprema humilha- cdo de morrer na cruz pelos pecados do mundo. Essa passa- gem faz trés afirmacées a respeito de Cristo: ele desejava fazer a vontade de Deus, ser 0 que Deus escolheu que ele fosse e ir para onde Deus o direcionasse. Esse alto padrao de conformi- dade e sujeicdéo 4 vontade de Deus é o exemplo e 0 modelo para 0 cristéo. O enchimento do Espirito, demonstrado por Cristo da forma mais perfeita, s6 é possivel se houver capaci- tagdo e controle da vida pelo Espirito Santo. Falando de forma realista, entretanto, sabemos que os cris- taos pecam. Essa experiéncia nao anula a salvacdo de nin- guém, nem faz que ninguém perca o Espirito Santo, mas ain- da assim deve ser corrigida. Efésios 4.30 refere-se a essa exigéncia quando Paulo ensina: “Nao entristecam o Espirito Santo de Deus [nao continuem a entristecer], com o qual vo- cés foram selados para o dia da redencdo’. Esse texto mencio- na a habitacao do Espirito Santo como se ele fosse o selo de Deus, a prova de sua posse e a tranqtiilidade e a seguranca que o crente encontra em Cristo. Visto que o Espirito Santo Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 239 habita o crente, qualquer pecado que este cometa entristece o Espirito. Entristecer o Espirito é um ato de rebeldia ou de resisténcia a ele. Resistir ao Espirito o entristece, impede que ele ajude o crente e que toda a sua obra se manifeste na vida desse cren- te. Resistir ao Espirito afeta a comunhdo com Deus, a produ- ¢ao de frutos e o discernimento das verdades espirituais. Con- tudo, assim como Deus da a salvacao para o pecador perdido, também da a restaura¢gdo ao santo que esta em pecado. Em IJoao 1.9, 0 apéstolo, ciente de nossa experiéncia espiritual e de nossas necessidades, oferece a seguinte solucdo: “Se con- fessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injusti¢a’. Confes- sando os pecados, o cristao reconhece que agiu de forma con- traria 4 vontade de Deus. Com essa confissdo, busca 0 perdao que ja foi providenciado na salvacdéo e também busca a res- tauracéo que sé Deus pode providenciar por meio da graca. Assim como a salvagao é condicionada a fé (confiar em Cris- to), a restauracdo também depende da confisséo do pecado. O crente tem a garantia de que Deus lhe perdoara e o purifica- rae é perfeitamente justo que Deus assim o faca por causa da expiagdo completa provida por Cristo. A confissdo é o lado humano, mas acerca do lado divino o apéstolo Jodo prosse- gue em lJo 2.1,2 falando da defesa de Cristo como sumo sa- cerdote do crente no céu: “Meus filhinhos, escrevo-lhes es- tas coisas para que vocés néo pequem. Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Jus- to. Ele é a propiciacao pelos nossos pecados, e nao somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo”. Embora o perdao ocorra por meio da graga, os crentes sao advertidos quanto a continuar pecando, pois Deus disciplina os filhos que dele se afastam. Sobre isso, Paulo instruiu a igreja de Corinto em 1Corintios 11.31,32: “Mas, se nés tivéssemos o cuidado de examinar a nés mesmos, nao receberiamos juizo. Quando, porém, somos julgados pelo Senhor, estamos sendo disciplinados para que ndo sejamos condenados com o mun- do”. Como Hebreus 12.5,6 afirma, a disciplina de Deus nao deve ser menosprezada. Pedro também exorta os crentes a nado sofrer por causa do pecado (1Pe 4.14,15). Ser cheio do Espirito implica sujeigéo e confissdo do pecado, toda vez que houver afastamento da vontade de Deus. 240 » 5 perspectivas sobrea santificagao Talvez o aspecto mais dificil da vida espiritual seja obede- cer completamente a exortacdo de Galatas 5.16 (“Por isso digo: Vivam pelo Espirito, e de modo nenhum satisfarao os desejos da carne”). A palavra “viver” é literalmente “andar” (v. ARA e ARC). Andar no Espirito implica dependéncia continua. Quando alguém anda no sentido fisico, depende da forga de seus membros para suStentar o corpo. Na vida cristé, acontece o mesmo: os cristéos devem andar em constante dependéncia do Espfrito Santo. As variagées na dependéncia consciente de alguém em relacgdo ao Espirito correspondem as variacdes na experiéncia de enchimento do Espirito Santo. A exortacdo de Galatas ensina claramente que a vida espiritual deve ser vivi- da a cada momento na relacao com o Espirito, que é fonte de poder e orienta¢ado para a vida cristaé. O programa divino para a santificagéo deve ser entendido no contexto da doutrina do Espirito Santo no que diz respeito 4 salvagao e a vida cotidia- na do cristéo, com reconhecimento total, de um lado da nova natureza do crente assegurada pela salvacdo e, de outro, da natureza pecaminosa que restou da vida anterior. A EXPERIENCIA DECORRENTE DA SANTIFICACAO PROGRESSIVA Embora o Cristaéo ainda seja potencialmente capaz de co- meter pecados terriveis e incapaz de alcangar por si proprio uma vida correspondente ao padrao divino de santificacdo, pela presenca interior do Espirito Santo e por seu poder e sua orientacao, ele pode crescer progressivamente em san- tificagao. Ainda que a velha natureza esteja presente, a nova natureza, pelo poder do Espirito, pode manifestar o fruto do Espirito, a saber, “amor, alegria, paz, paciéncia, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidao e dominio préprio” (GI 5.22,23). Esse fruto, que se manifestou de forma suprema em Cristo, é possivel para o cristdo, ndo por forcga propria nem em vir- tude da nova natureza, mas em decorréncia da utilizacéo do corpo humano pelo Espirito Santo como instrumento de ma- nifestacdo dessas provas da graca de Deus. Nesse aspecto, 0 cristéo pode ser semelhante a Cristo, mesmo nesta vida. O fruto do Espirito também se relaciona a uniao vital do crente em Cristo, como foi exemplificado no discurso de Jesus a respeito da videira e dos ramos (Jo 15), Os crentes, em razdo do relacionamento com Cristo e com o Espirito Santo, sao A perspectiva agostiniano-dispensacionalista = 241 capazes de gerar fruto; porém, assim como o ramo que de- pende da videira, também eles dependem do Espirito Santo para manifestar as provas de santificacéo na vida. A santificacdéo progressiva do crente também resulta em servico a Deus. As Escrituras afirmam que todo o ministério do crente em nome de Deus é resultado da obra do Espirito Santo e faz parte da sua santificac¢éo crescente. Como se men- cionou antes, os cristéos, ao pér em pratica a Palavra de Deus, podem ser guiados igualmente a vontade especifica de Deus para sua vida. A orientacao divina torna-se uma das provas mais importantes da salvacdo e da piedade. A santificacéo progressi- va também produz a certeza cada vez maior de que a pessoa é filha de Deus. Como Paulo menciona em Romanos 8.16: “O pré- prio Espirito testemunha ao nosso espirito que somos filhos de Deus”. Embora as Escrituras afirmem que os cristéos tém a se- guranca da salva¢ao, a experiéncia crista e a certeza da salvacaio também estao freqtientemente ligadas ao modo em que eles ca- minham no Senhor e a intervenc¢éo do Espirito Santo neles. O Espirito Santo ministra também na adoracao verdadeira, quando os cristéos podem elevar o coracao a adoragao e ao lou- vor a Deus, que ele é a fonte de toda a graca e de todas as bén- ¢aos. Sobre o enchimento do Espirito, Efésios 5.19,20 fala de um louvor em forma de “salmos, hinos e canticos espirituais”. A vida de oracda do cristéo esta da mesma forma relacio- nada ao ministério do Espirito Santo. Por sermos quase sem- pre ignorantes de nossas necessidades espirituais, o Espirito de Deus, de acordo com Romanos 8.26, nos ajuda em oracao e intercede em nosso favor. Ele ministra aos crentes revelan- do-lhes suas necessidades espirituais e guiando-os na busca da orientacdo e da vontade de Deus para a vida. O Espirito de Deus em sua progressiva santificagaéo também torna possivel o servico do cristéo por Deus como uma fonte de onde “fluirao rios de agua viva” para os outros, como profetizou Jesus em Jodo 7.38,39. A fonte inesgotavel dessa agua é o pro- prio Espirito. A operagéo desimpedida do Espirito Santo no crente pode fazer com que uma grande obra de Deus se realize. ARELACAO ENTRE A GRACA SOBERANA EA RESPONSABILIDADE HUMANA A discussao a respeito da relacdo entre graga soberana e responsabilidade humana é inerente a analise do tema da 242 = 5 perspectivas sobre. santificagao santificacdo divina. A teologia arminiana salienta a responsabi- lidade humana, e a teologia calvinista ressalta a soberania de Deus. Ambas concordam, entretanto, que a graca é elemento essencial para que 0 nao-crente se torne cristéo. As diferencas surgem quando se procura explicar de que modo a graca atua no momento da salvacdo. Quem estuda o assunto com atencaéo concorda que existem elementos inescrutaveis no processo de uma pessoa decaida crer em Cristo, mas que também existem alguns aspectos que na verdade precisam ser definidos. Os calvinistas supdem confiadamente, com base em inu- meros textos biblicos, que os salvos foram eleitos para a sal- vacao antes da fundagaéo do mundo. Era o propésito sobera- no de Deus que os eleitos alcancassem em algum momento da vida a salvacao plena em Cristo. A questao entéo € como alguém que esta morto espiritualmente e é incapaz de exercer a fé consegue crer e ser salvo. Cristo afirmou no Cenaculo que, quando o Espirito viesse, 0 problema seria resolvido, pois ele “convencera o mundo do pecado, da justica e do juizo. Do pecado, porque os homens nao créem em mim; da justiga, porque vou para o Pai, e vocés nao me vergo mais; e do juizo, porque o principe deste mun- do ja esta condenado” (Jo 16.8-11). Se interpretada correta- mente, essa passagem fala da experiéncia de pessoas antes da conversdo e indica o processo pelo qual o Espirito Santo revela graciosamente a pessoa decaida a natureza da salvacéo ea sua necessidade espiritual. Uma pessoa pode experimen- tar a conviccdéo sem, entretanto, reconhecer Cristo como Sal- vador. Da perspectiva teolégica, a obra de convencimento rea- lizada pelo Espirito é preparatoria, mas no eficaz, na salvacdo. As Escrituras indicam que no momento da salvacdo 0 néo- salvo confia em Cristo. O evangelho de Jodo repetidas vezes refere-se a necessidade de fé em Cristo para obter a salvacdo. De acordo com Joao 20.31, o propésito principal do livro é “que vocés creiam que Jesus € 0 Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome”, Como, porém, uma pes- soa decaida e morta no pecado pode vir a crer? A resposta de calvinistas e arminianos é o derramamento da graca, embora nao fique claro nas Escrituras 0 modo em que isso ocorre. A graca de Deus para a salvacao é sobrenatural e eficaz. Os calvinistas, portanto, fazem referéncia a graca eficaz, ou irresistivel, e os arminianos referem-se a sua suficiéncia. Aperspectiva agostiniano-dispensacionalista = 243 A controvérsia entre calvinistas e arminianos culminou no Sinodo de Dort (1618-1619), que condenou o arminianismo e afirmou o calvinismo da forma mais vigorosa possivel. No processo, surgiu a confusdo entre a graca concedida para ca- pacitar o individuo a crer e a regeneracdo, que é o favor da vida eterna concedida aos crentes, uma vez que o sinodo iden- tificou os dois conceitos num s6. Os calvinistas mais modera- dos, entretanto, embora concordassem que a obra de Deus em graca e regenera¢do ocorre ao mesmo tempo, achavam que ha uma relacdo de causa e efeito que faz da graca o poder capaci- tador dado a pessoa para que ela creia e que a regeneracdo é conseqiléncia do ato de crer. O Sinodo de Dort ao que parece ensinava que a regeneracdo precede a fé e, nesse caso, a sobe- rania de Deus prevalece e o individuo praticamente se torna um rob6 que nao participa ativamente da propria salvacao. A énfase na soberania de Deus e na salvacdo realizada ex- clusivamente por obra divina transfere-se para a doutrina da santificacdo. Ao longo da historia, alguns calvinistas adota- ram a opiniao de que a pregacdo do evangelho em todo o mundo era desnecessaria (se Deus elege as pessoas para a salvagdo, ele pode cuidar para que sejam salvas). Semelhante- mente, algumas pessoas entendem a santificacao como obra soberana de Deus, em que o homem s0 participa incidental- mente. Embora a maioria dos calvinistas acredite haver espa- gO para a responsabilidade humana, a tendéncia a salientar a soberania de Deus a custa da interacéo com o homem até cer- to ponto continua permeando o modo que os calvinistas apre- sentam a santificacdo. Algumas diferengas tipicas entre a concep¢ao agostiniano- dispensacionalista e a teologia reformada da atualidade refe- rente a santificagao refletem-se na critica que B. B. Warfield fez ao livro de Lewis Sperry Chafer intitulado He That is Spiri- tual [Aquele que é espiritual]. Numa resenha minuciosa sur- gida logo apds a publicacao do livro, Warfield considera que Chafer, em grande escala: utiliza todos os jargées dos pregadores da vida crista de santidade. Dele também se fica sabendo sobre dois tipos de cristéo, a quem denomina respectivamente “homem carnal" e “homem espiritual", com base numa interpretagao equivocada de 1Corintios 2.9 ss (p. 8, 109, 146); afirma que essa passagem nos daa op¢ao de ser um tipo 244 = 5 perspectivas sobre santificacio ou outro de pessoa, bastando que tenhamos o cuidado de “pedir” para alcangar o nivel mais elevado “pela fé” (p.146),3? Warfield faz objecdes a perspectiva de Chafer porque a con- sidera uma combinacdo de teologia calvinista com arminiana. De acordo com Warfield, esses dois sistemas religiosos sao completamente incompativeis. Um é produto da Reforma Protestante e nao apresenta nenhum po- der na vida religiosa a nao ser a graca de Deus; 0 outro saiu direto dos laboratorios de John Wesley, que em todas as formas — nas modificacdes e atenuacdes igualmente — permanece arminiano incuravel, e sujeita todos os atos graciosos de Deus a decisao hu- mana. Esses dois sistemas podem misturar-se tanto quanto podem misturar-se o fogo e a agua.” Normalmente, os dispensacionalistas, embora comumen- te calvinistas, fazem objecdes a idéia de que a conversdo e a santificagéo sejam atos soberanos de Deus na totalidade, sem a participagéo humana. Embora concordem que a conversado ea santificagdo decorram da graca de Deus e que é impossivel ao homem obté-las por si mesmo, os dispensacionalistas afir- mam que muitas adverténcias das Escrituras nao fariam ne- nhum sentido se nao houvesse uma parte de responsabilida- de humana associada a esses aspectos da salva¢ao. Eliminar 0 elemento de responsabilidade humana é elevar a soberania de Deus a um grau superior ao revelado na Biblia. A verdade é que Deus concedeu soberanamente aos seres humanos uma vontade que, no caso dos cristéos, os capacita de forma so- brenatural e graciosa a tomar decisées. Essas escolhas sao de- cisivas para a experiéncia de santificagdo dos crentes nesta vida. A perspectiva agostiniano-dispensacionalista atual acerca da santificagado nao abrange o arminianismo, mas sim um tipo mais moderado de calvinismo em relacdo ao aprovado pelo Sinodo de Dort. A concepcao que Chafer tem da santificacao e da vida espiritual, em vez de ambigua e contraditéria, na ver- dade combina soberania divina e responsabilidade humana, implicitas em todas as exortac6es biblicas. Para entender a obra de Deus na conversao, temos de equi- librar os atos soberanos de Deus e a resposta humana de obe- diéncia. Sobre a santificacéo, as Escrituras também afirmam que Deus é o santificador e realizara nas pessoas aquilo que

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