Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
ARARAQUARA
2005
MARCELO GOMES
2
Dissertação de Mestrado
Banca Examinadora:
Orientador: Prof. Dr. Benedito Rodrigues de Moraes
Neto (Unesp)
Prof. Dr. Iram Jácome Rodrigues (USP)
Profa. Dra. Maria Orlanda Pinassi (Unesp)
3
Dedicatória:
Dedico este trabalho a todos os homens e
mulheres que se entregaram ou entregam suas vidas à
construção da ciência, entendida como instrumento de
desmistificação da vida. À estas figuras abnegadas, e
dispostas ao penoso trabalho de construção, limpeza ou
defesa científica, pois sabem que o ataque à verdadeira
ciência, ao contrário de ser revolucionário, fortalece
ainda mais a mistificação do mundo e a ignorância:
ambas sustentáculos da estrutura de dominação.
4
Agradecimentos:
Devo agradecer primeiramente a meus pais e
irmão que durante todos estes anos me apoiaram de
diversas formas possíveis. Agradeço também a meu
orientador, Benedito Rodrigues de Moraes Neto, não só
por sua inspiração teórica, mas também pela dedicação à
minha pessoa e por ensinar-me a autoconfiança.
Meus agradecimentos aos amigos da Graduação
e da Pós, aos funcionários da FCL e, principalmente, a
Vanessa (minha fiel companheira de todos os
momentos), a Thiago (meu fiel amigo de princípios e
ideais) e a Rodrigo (o grande filósofo que junto a mim
cresceu). Meus agradecimentos também a Romildo,
Adriano, Idaleto, pelas discussões e contribuições diretas
teóricas fundamentais e a Alessandro, Alessandra, Rita e
Lênin, que muito contribuíram para minha formação,
ainda que não possam avaliar quanto ou como.
Por fim, devo lembrar o apoio financeiro do
CNPq através da bolsa de mestrado, sem o qual este
trabalho não se realizaria desta maneira.
Sumário
5
Resumo..............................................................................................................................
.....................05
Introdução........................................................................................................................
.....................07
Referência
bibliográfica..................................................................................................................1
14
6
Resumo
Abstract
Introdução
1
Trata-se de Josué Pereira da Silva (Cf. SILVA, 2002).
9
2
Cf. (ANTUNES, 1997), particularmente o capítulo II.
3
Antunes se ampara, neste sentido, na discussão feita por David Harvey (2001), a qual incorpora a
visão da escola da regulação. Segundo alguns autores como Harvey, a sociedade teria passado de
um padrão de acumulação fordista para um padrão de acumulação toyotista. Contudo, em que pese
um movimento de sensíveis mudanças, o que haveria, segundo Harvey, seria uma combinação
heterogênea de formas de exploração que necessariamente não seriam marcadas por uma tendência
ao desenvolvimento das tecnologias de automação. Neste novo “padrão de acumulação flexível”, não
parece haver tendência do capital ao desenvolvimento das forças produtivas. Ao que parece, tratar-
se-ia de uma opção de cada setor capitalista a adoção ou não de tecnologias de produção: “Em
condições de acumulação flexível, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a
lado, no mesmo espaço, de uma maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham
a vontade entre eles. [...] O ecletismo nas práticas de trabalho parece quase tão marcado, em nosso
tempo, quanto o ecletismo das filosofias e gostos pós-modernos” (HARVEY, 2001, p. 175). De fato,
as formas de superexploração da força de trabalho se tornaram visíveis nestes últimos anos.
Contudo, o ponto de vista de Harvey, como vimos, parece ser menos o de olhar para este fenômeno
como uma conseqüência aberta pelo desenvolvimento tecnológico, do que olhá-lo como uma via
alternativa de produção para o capital.
10
Tudo isso nos permite concluir que nem o operariado desaparecerá tão
rapidamente e, o que é fundamental, não é possível perspectivar, nem
mesmo num universo distante, nenhuma possibilidade de eliminação da
classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 1997, p. 54, itálico do autor).
Então, utilizando-se de uma famosa citação de Marx nos Grundrisse5,
que versa sobre o conflito entre o aumento da composição orgânica do capital e a
4
Embora não se possa desconsiderar os exemplos de países da Europa (caso da chamada terceira
Itália) que adotaram estes processos de produção, existem alguns teóricos que questionam a
generalização destas experiências particulares, como é o caso de Simon Clarke ao dizer: “Ficava
implícito que tanto a capacidade de generalizar o modelo como seu caráter socialmente desejável
eram questionáveis. As mesmas qualificações se aplicam aos outros exemplos apresentados pelos
proponentes da “especialização flexível”, como por exemplo os sistemas flexíveis de fabricação, dos
quais a pioneira foi a Toyota, no Japão, e o setor da alta tecnologia em Baden-Württemberg, na
Alemanha. A coerência do modelo original provinha da particularidade das suas circunstâncias [...]”
(CLARKE, 1991, p. 123). Ou ainda quando diz: “É difícil detectar qualquer coerência no modelo da
“especialização flexível”, enquanto que sua aplicabilidade empírica também já foi amplamente
contestada. [Karel] Williams e outros apresentam uma crítica completa de Sabel e Piore, mostrando
que o modelo não postula relações coerentes entre seus diferentes elementos [...] (CLARKE, 1991, p.
124).
5
Cf. (ANTUNES, 1997, p. 49-0).
11
lei do valor, Antunes interpreta-a como se, por se tratar de uma contradição visível
do capital, ela nunca seria uma realidade no capitalismo. Assim, quando Marx
coloca que
[...] o capital mesmo é a contradição em processo, (pelo fato de) que tende
a reduzir a um mínimo de tempo de trabalho, enquanto que, por outro
lado, converte o tempo de trabalho em única medida e fonte de riqueza.
[...] Todavia, constituem as condições materiais para fazer saltar esta base
pelos ares (MARX apud ANTUNES, 1997, p. 49-0).
Antunes considera:
Portanto, a tendência apontada por Marx — cuja efetivação plena supõe a
ruptura em relação à lógica do capital — deixa evidenciado que, enquanto
perdurar o modo de produção capitalista, não pode se concretizar a
eliminação do trabalho como fonte criadora de valor (ANTUNES, 1997, p.
50).
Ora, da maneira como a descrição de Marx é analisada, não há
nenhum erro em se afirmar a inexorabilidade da lei do valor enquanto vigorar o
capitalismo. Todavia, o que Antunes parece fazer é dizer que o capital
compreendera sua contradição e que, portanto, não irá mais proceder segundo suas
leis tendenciais, chegando sempre a um limite seguro que evite a contradição de
suas leis de reprodução. Disto, o que poderíamos inferir é que o capital teria
abandonado a tendência à mais-valia na sua forma relativa e sua correspondente
prescindibilidade do trabalho vivo, preferindo uma composição entre as formas
relativas e absolutas de extração deste mais-trabalho.
Marx foi extremamente claro na passagem acima ao dizer que “o
capital é uma contradição em processo” e, portanto, pensamos que continuará
procedendo segundo a lei tendencial de aumento de sua composição orgânica. O
caminho de abolição do trabalho deve ser visto como um caminho inexorável uma
vez que a tendência do capital é a mais-valia na sua forma relativa. O que não quer
dizer que isto seja uma via linear, como o próprio Marx demonstrara em O Capital,
no capítulo sobre a maquinaria, ao falar destas formas precarizadas do trabalho
como conseqüência imediata da incorporação da maquinaria num determinado
setor, ainda que esta conseqüência imediata não deva ser vista como uma tendência
que se perpetuará6. Do contrário, deveríamos nos perguntar porquê Marx dera
maior importância ao desenvolvimento da indústria e da maquinaria na Europa em
detrimento da escravidão que ainda perdurava e estava institucionalizada em países
como o Brasil.
Por fim, para fecharmos esta pequena digressão a respeito de nossas
razões para adotarmos uma perspectiva distinta de Adeus ao Trabalho?, devemos
6
Sobre isto, ver (MARX, 2003, p. 534).
12
7
Esta diferença de olhar dos autores em relação aos desdobramentos da automação do final do
século XX será retomada na conclusão de nosso trabalho.
8
Podemos ler em O Capital, especificamente no capítulo XIII, item 7, a seguinte consideração de
Marx: “Todos os representantes de algum porte da economia política admitem que a introdução das
máquinas constitui uma calamidade para os trabalhadores dos artesanatos e das manufaturas
tradicionais, com os quais elas competem inicialmente. Quase todos deploram a escravatura do
trabalhador de fábrica. E qual é o argumento mais importante que apresentam? Este: a máquina,
após os horrores de seu período de introdução e desenvolvimento, aumenta, em sua etapa final, os
escravos do trabalho, em vez de diminuí-los. Sim, a economia política rejubila-se com o teorema
repugnante — mesmo para o filantropo que crê na necessidade eterna do modo capitalista de
produção — de que a fábrica baseada na exploração mecanizada, depois de certo período de
crescimento, após transição mais ou menos longa, chegará à fase em que absorverá integralmente
número tão grande de trabalhadores que não haverá possibilidade de deixa-los sem emprego como
no estágio inicial” (MARX, 2003, p. 509).
13
9
Sobre a questão de ver a automação (eliminação do trabalho) e a divisão do trabalho como dois
fenômenos que não se auto-excluem, trataremos mais a frente nesta dissertação.
22
10
Neste sentido, podemos ver que mesmo autores críticos à tese central de Gorz concordam com ele
nesta questão de uma técnica “amarrada” ao capital: “Este postulado da neutralidade
material/instrumental é tão sensato quanto a idéia de que o hardware de um computador pode
funcionar sem o software. [...] O mesmo vale para as fábricas construídas para propósitos capitalistas,
que trazem as marcas indeléveis do ‘sistema operacional’ — a divisão social hierárquica do trabalho
— com o qual foram constituídas” (MÉSZÁROS, 2002, p. 865). Neste caso o software seria, por
essência, capitalista.
11
A não ser quando Gorz abre uma certa margem de indeterminação ao expressar que as forças
produtivas deveriam ser “refundidas” ou “convertidas” se se quisesse utilizá-las sob uma
racionalidade socialista. Todavia, sobre este ponto de relatividade de André Gorz a respeito do
determinismo da não-neutralidade técnica discutiremos apropriadamente na conclusão deste
trabalho.
24
influência do próprio Weber. O mesmo se passa com André Gorz. A idéia de uma
racionalidade instrumental desenvolvida pelo ethos capitalista ganha muita força
nesta mudança teórica de Gorz. A idéia exposta acima de que em Adeus ao
proletariado nosso autor já admite uma racionalidade capitalista imanente às forças
produtivas desenvolvidas por este sistema é uma clara demonstração disso. Não é
para menos que ele negará a possibilidade de emancipação na esfera econômica,
segundo ele, berço desta racionalidade instrumental, e negará a possibilidade de
emancipação ou mesmo abolição da esfera administrativa, berço da dominação
burocrática racional-legal. Poderíamos mesmo dizer que para Gorz a lei é a
expressão máxima da heteronomia social, pois fruto do coletivo, não representa a
vontade de ninguém particularmente.
Um esboço desta influência em Adeus ao proletariado pode ser
visualizado já em sua idéia de um poder funcional que acompanha os aparatos
sociais tanto da produção quanto da administração. Segundo nosso autor, a
hierarquia e a dominação seriam reproduzidas por esta racionalidade que
acompanha estes aparatos e sua estrutura. Esta é a idéia colocada tanto na sua
formulação de uma não-neutralidade técnica como de um poder que emana da
própria estrutura organizadora da vida social.
Essa esclerose institucional da dominação acompanha a burocratização do
poder. Ninguém poderá conquistá-lo por e para si próprio; apenas poderá
tentar elevar-se a uma dessas posições às quais é inerente uma parcela de
poder. Assim, não são mais os homens que possuem o poder, são as
funções de poder que possuem os homens (GORZ, 1987, p. 72).
E conclui a respeito do Estado moderno de modo similar a Weber:
Todos os poderes modernos são desse tipo. Não têm sujeito: não são
levados nem assumidos por nenhum soberano que se reivindique como
fonte de toda lei e fundamento de toda legitimidade. No Estado moderno,
nenhum chefe, nenhum tirano comanda os homens em razão do seu “eu
quero”, nem exige fidelidade e submissão à sua pessoa. Os portadores do
poder, no Estado moderno, comandam os homens apenas em nome de
uma submissão a uma dada ordem das coisas da qual ninguém se
reconhece como autor. O poder tecnocrático atual tem uma legitimidade
essencialmente funcional: pertence não a uma pessoa-sujeito mas à
função, ao lugar que um indivíduo ocupa no organograma da empresa, da
instituição, do Estado (GORZ, 1987, p. 65-6).
Devemos esclarecer que isto é válido, segundo o autor, tanto para o
Estado e suas instâncias de poder quanto para o locus produtivo, como bem frisou.
Todavia, é em textos mais recentes, como em Metamorfoses do trabalho, que esta
vinculação de Weber nas críticas de Gorz fica mais explícita. É quando Gorz irá
descrever a transformação das atividades produtivas humanas perdendo seu caráter
autônomo e tradicional para serem capturadas por uma forma instrumental e
contábil. Este autor faz uma pequena descrição da passagem do trabalho artesanal e
25
fonte de autonomia, segundo ele, para um trabalho entendido como labor, ou seja,
carregado de elementos nocivos e heterônomos. Após citar Weber, Gorz irá
concluir:
Dito de outro modo, a racionalidade econômica foi por longo tempo
contida, não apenas pela tradição, mas também por outros tipos de
racionalidade, outras finalidades e outros interesses que lhe consignavam
limites a não serem ultrapassados. O capitalismo industrial só pôde
desenvolver-se a partir do momento em que a racionalidade econômica
emancipou-se de todos os outros princípios de racionalidade, para
submete-los a seu único domínio (GORZ, 2003, p. 27).
Uma vez efetuada esta trajetória de racionalização, a economia parece
ter então incorporado esta racionalidade de modo inexorável. É o que se pode
extrair do autor quando este diz que se trata de uma racionalidade insuperável.
Assim,
Gorz define racionalidade econômica como uma forma particular de
racionalidade cognitiva instrumental. Para ele, a racionalização econômica
começa com a contabilidade e o cálculo que são concebidos como a forma
quintessencial de racionalização reificante” (SILVA, 1999, p. 168).
Mais à frente no livro, Gorz irá destacar que o triunfo desta
racionalidade da economia seria alcançado no projeto marxiano de emancipação.
A utopia marxiana, o comunismo, aparece, assim, como a forma acabada
da racionalização: triunfo total da Razão e triunfo da razão total;
dominação científica da Natureza e domínio científico reflexivo do
processo dessa dominação.
[...] Tamanho triunfo da Razão supõe, claro, a racionalização integral da
existência individual: a unidade da Razão e da vida. E essa racionalização
integral exige, por seu lado, uma disciplina individual que, por vezes,
lembra a ascese puritana: é na qualidade de indivíduo universal, despojado
de seus interesses, laços e afeições particulares, que cada um acederá à
unidade verdadeira entre o sentido de sua vida e a História (GORZ, 2003,
p. 37).
Devemos dizer desde já que isto não se trata de um elogio ao projeto
de emancipação marxiano. O triunfo da Razão sobre a vida do indivíduo e sobre a
natureza não é aqui elogiável. Ao invés da suposta libertação que o movimento
racional pudesse trazer sobre as carências humanas e sobre a forma determinada de
existência perante a natureza que obrigava o homem a se sujeitar às suas forças, o
que se vê em Gorz é uma crítica à este pensamento. Por vezes até parece acusar
Marx de uma ingênua crença no progresso material oriundo de um ranço
iluminista12. Esta crítica é similar à crítica que Marcuse faz sobre a ciência e a
12
Aliás, esta crítica à Marx e Engels, ora velada, ora explícita, aparece em muitos autores
contemporâneos, seja na já mencionada Escola de Frankfurt, seja em autores da própria esquerda
crítica. Com relação à crítica de Gorz, apesar de Josué Pereira da Silva dizer que Habermas e Gorz
procedem uma “crítica do imperialismo da razão instrumental (ou econômica), sem no entanto se
deixarem seduzir pela recusa do iluminismo típica do pensamento pós-estruturalista” (SILVA, 1995,
p. 134), ainda assim, pensamos que há esta recusa, bastando para isso analisar o conteúdo
retrógrado do projeto dualista de emancipação de André Gorz.
26
13
Cf. (MARCUSE, 1999) e (MARCUSE, 1968).
27
14
As contradições apresentadas por André Gorz serão discutidas na conclusão desse nosso trabalho.
29
questão empírica vivenciada por Gorz era a destruição pela automação dos postos
de trabalho, sejam eles dotados de um skill operário ou não. Afinal, como coloca
Josué, “Gorz fala da revolução microeletrônica, que não só elimina todo trabalho
que envolve um contato direto com a matéria, mas também a própria classe
operária” (SILVA, 1995, p. 145). E isto, ao que parece, era um grave problema para
a visão de emancipação de André Gorz, visto que sua referência era o trabalho
artesanal. Entremos então na questão teórica, crucial para o entendimento das
críticas formuladas por Gorz à Marx.
Como vimos, a proposta teórica de André Gorz não é a abolição do
trabalho e a realização numa esfera supostamente paradisíaca de tempo ocioso.
Assim já colocava o autor em Adeus ao proletariado.
Abolir o trabalho não significa, por conseguinte, abolir a necessidade do
esforço, o desejo de atividade, o amor à obra, a necessidade de cooperar
com os outros e de se tornar útil à coletividade. [...] A exigência de
“trabalhar menos” não tem por sentido e por finalidade “descansar mais”,
mas “viver mais”, o que quer dizer: poder realizar por si mesmo muitas
coisas que o dinheiro não pode comprar e mesmo uma parte das coisas
que ele atualmente compra (GORZ, 1987, p. 11).
Todavia, se ele não nega a participação do trabalho como uma
atividade realizadora, como podemos ver que ele almeja a abolição do trabalho?
Seria um paradoxo? Na verdade não. Como demonstramos acima, Gorz, ao
proceder sua análise empírica da realidade do século XX irá perceber um completa
degradação do trabalhador nos processos de trabalho nos quais impera a divisão
parcelar do trabalho. Vê um trabalhador degradado e destituído de todo poder que
outrora possuía sobre sua atividade. De outro lado, percebe que a automação
parece um processo sem volta que, ao invés de redimir o trabalhador e restituir a
primazia, o exclui do próprio processo produtivo. De ambos os lado, nosso autor
percebe que não há mais possibilidade de uma realização no processo de trabalho
social, forçando-o a idealizar um projeto em que se possa produzir livremente
(autonomia) quando liberto da esfera produtiva. Eis a síntese de seu projeto dualista
e seus fundamentos empíricos. Contudo, falta ainda um elemento chave: A
fundamentação de tal projeto pela própria teoria de Karl Marx. Isto parece irônico,
visto que ao longo de todo seu livro procedeu por uma negação completa de Marx,
e, por vezes, inclusive declarando que o marxismo havia exaurido sua validade
histórica.
A tentativa por parte deste autor em trazer Marx para fundamentação
deste projeto dualista pode ser visualizada na seguinte passagem, na qual discute
sua visão de emancipação e liberdade fora da esfera social da produção:
31
constituíam forças dispersas e isoladas, que por sua natureza eram de baixíssima
eficiência produtiva. Mais adiante veremos que o mérito do capital foi justamente
reorganizar de modo coletivo estas forças dispersas na estrutura feudal. Em segundo
lugar, devemos entender que esta organização herdava todo o tradicionalismo e
falta de liberdade típicos do feudalismo.
Segundo Pirenne (1968), esta organização teria se formado a partir da
dispersão de grande contingente de pessoas dos campos em busca de melhores
condições de vida. Estas pessoas iam procurar a sorte em outras cercanias e,
conseqüentemente, em outras atividades (quando não viviam de esmolas da Igreja
da época). Muitas delas teriam encontrado um refúgio no comércio ou escambo
que, longe de ser seguro e estável, rendia-lhes um certo sustento. Outrora viajantes
solitários, por força da insegurança causada pelos saqueadores, começaram a viajar
em grandes contingentes, de modo que prestavam auxílio mútuo de proteção.
Estas caravanas faziam das cidades muradas — tratava-se dos burgos16 — seu porto
seguro. No entanto, ao longo deste desenvolvimento, as corporações que cuidavam
da produção separaram-se entre suas respectivas profissões e também entre as que
cuidavam da comercialização. Estas corporações de ofício eram regidas por leis que
controlavam a produção, seja sua quantidade, seja sua qualidade; regiam os preços
de venda e o aprendizado dos iniciantes, etc. Por tudo isso, tornou-se um obstáculo
do ponto de vista dos objetivos e necessidades do capital que é, por essência,
17
revolucionário .
O privilégio e o monopólio da corporação têm como compensação o
aniquilamento de toda iniciativa. Ninguém pode permitir-se prejudicar os
outros por processos que o capacitariam a produzir mais depressa e mais
barato. O progresso técnico é considerado como uma deslealdade. O ideal
baseia-se na estabilidade das condições dentro da estabilidade da indústria
(PIRENNE, 1968, p. 192).
Como acabamos de ver, faltavam os principais elementos para a
reprodução do capital: a possibilidade de exploração sistematizada e de revolução
16
Henri Pirenne nos fala em seu livro que os castelos ou burgos murados tornaram-se pontos de
convergência destes mercadores errantes, a tal ponto que, ao saturar o limite físico destes locais,
tiveram que montar estadias e acampamentos nos arrabaldes do burgo. Logo, com a grande
influência e peso financeiro destas atividades para com as cidades, os muros vieram abaixo e um
processo de regulamentação de várias atividades e profissões se fez necessário. Estas
regulamentações municipais visavam o exclusivismo e monopólio da comercialização, evitando que
estrangeiros viessem lucrar com seus produtos de outras localidades. Mas se por um lado se
protegeram do comércio externo, ficaram enleados no tradicionalismo e em formas econômicas anti-
racionais.
17
Este caráter revolucionário do capital fora muitas vezes apontado por Marx. A necessidade do
revolucionamento constantes das condições de produção e seus meios é justamente o grande mérito
trazido pelo capitalismo segundo a perspectiva marxiana. Esta característica entrará em nossa análise
quando da avaliação da grande indústria neste mesmo capítulo e o caráter autocontraditório do
capitalismo.
34
18
Deve-se lembrar também que, de outro lado, o desterro de grande contingente de pessoas saindo
do campo em direção às cidades e o próprio crescimento populacional destas criaram os
pressupostos para a formação de uma classe despossuída de qualquer coisa que não sua força de
trabalho: o proletariado. No que tange a reprodução desta situação, esta se dá devido ao monopólio
dos meios de produção pela burguesia. Este movimento está sintetizado em (MARX, 2001, p. 121).
35
19
Lembremos o que Marx diz sobre esta relação em O Capital: “O valor da força de trabalho
compreende o valor das mercadorias necessárias para reproduzir o trabalhador, ou seja, para
perpetuar a classe trabalhadora” (MARX, 2003, p. 307).
37
introduzida) diretamente” (MARX, s. d., p. 94, itálico do autor). Até esta etapa, a
forma por excelência da mais-valia é a absoluta, conseguida apenas com a
ampliação da jornada de trabalho.
Vejamos então como Marx teria resumido todo este movimento
operado pela manufatura capitalista em seu início, no qual operava-se com a
cooperação simples , sob a forma da subsunção formal:
No modo de produção propriamente dito não se verifica qualquer
diferença nesta etapa. O processo de trabalho, do ponto de vista
tecnológico, efetua-se exatamente como antes, só que agora como
processo de trabalho subordinado ao capital. Não obstante, no próprio
processo de trabalho, tal como se expôs, desenvolvem-se: 1) uma relação
econômica de hegemonia e subordinação, pois que é o capitalista quem
consome a capacidade de trabalho e, portanto, a vigia e dirige; 2) uma
grande continuidade e intensidade do trabalho e uma maior economia no
emprego das condições de trabalho, pois se mobilizam todos os meios
para que o produto só represente o tempo de trabalho socialmente
necessário (MARX, s. d., p. 94-5, itálico do autor).
Como vemos, o capital pode agora dispor da força produtiva social
recriada por ele quando reuniu os trabalhadores sob o mesmo “teto”. No entanto, o
fato de tê-los reunidos e subordinados formalmente não quer dizer que o capital
conseguiu dominá-los totalmente a ponto de imbuí-los da necessidade de
valorização. Esta sim será a precípua luta historicamente empreendida pelo modo
de produção capitalista. A ela corresponde o revolucionamento das forças
produtivas promovido pelo capitalismo. A busca de novas técnicas que pudessem
proporcionar ao capital o total domínio do processo de trabalho e superar aquilo
que Marx chamaria de barreira orgânica do capital; uma busca que visava
concretizar a junção entre as necessidades de valorização do capital com a sua
concretização a partir da absorção interior destas necessidades por parte dos
trabalhadores. Dito mais claramente, fazer com que os trabalhadores aceitassem os
ritmos da valorização do capital, da expansão de novos mercados e da concorrência
intercapitalista, despojando-se de toda humanidade e vontade própria. Enfim, — e o
que é importante para nossa central discussão com Gorz — que os trabalhadores
abandonassem sua autonomia no processo de trabalho típica do artesanato e
20
aceitassem a determinação do capital .
É obvio que isto jamais poderia ser concretizado pela força do
argumento e sim pelo argumento da força. Podemos visualizar isto com os
20
Esta suposta aceitação e interiorização das necessidades do capital por parte dos trabalhadores será
na história do capital algo extremamente precário e instável. Esta instabilidade se deve
principalmente porque esta aceitação dependerá de variáveis históricas e sociais. Daí a importância
de um exército industrial de reserva que pressione o trabalhador a aceitar os imperativos do capital,
tal como Marx o demonstrou. Outra variável importante seria o condicionamento cultural e
axiológico exercido sobre a classe operária, dentre outros exemplos.
38
21
Devemos nos lembrar do clássico exemplo da manufatura de alfinetes descrita por Adam Smith em
seu livro A Riqueza das Nações na qual “um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um
terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do
alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça
já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes
também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete
está dividida em aproximadamente 18 operações distintas” (SMITH, 1985, p. 42).
39
22
É necessário dizer que mesmo com este parcelamento uma porcentagem mínima de tarefas ainda
requer uma certa qualificação, embora sempre menor que a qualificação do antigo artífice que
executava a produção integral do produto. Todavia, por este fato, o capital agora poderia aplicar um
princípio que ficou conhecido como princípio de Babbage. Princípio pelo qual o capital poderia, a
partir da divisão de várias etapas, comprar a quantidade de trabalho exata para cada etapa. Desse
modo, também deixaria de pagar o valor de uma força de trabalho qualificada para realizar
operações desqualificadas, cujo valor tende a ser menor. Explicando didaticamente, um capitalista,
dono de uma manufatura de alfinetes, deixaria de pagar aos seus empregados salários referentes a
um mestre artesão para pagar um baixo salário condizente com um “desenrolador” de arame, um
cortador de arame, um afiador de arame, etc. Como podemos ver numa nota de Moraes Neto, o
próprio Babbage dirá que este princípio consiste de que “[...] o patrão manufatureiro, através da
divisão do trabalho a ser executado em diferentes processos, cada um deles requerendo graus
diferentes de habilidade [skill] ou de força, pode comprar exatamente a quantidade precisa de ambos
que é necessária para cada processo (BABBAGE apud MORAES NETO, 2003, p. 45-6).
40
23
Esta contradição do capital será vista mais detalhadamente no próximo item que fala da questão da
superação do trabalho alienado.
42
24
Queremos dizer com isto que, ainda que o capital consiga antever o problema criado para a
realização da mais-valia na esfera da circulação ocasionado pela exclusão de força de trabalho, o
capital individual não pode ir contra uma tendência do seu setor.
43
26
A idéia apresentada por este texto é a de que as etapas de transformação do processo produtivo
que constam em O Capital de Karl Marx pára no momento da Grande Indústria, enquanto nos
Grundrisse Marx avançaria até uma etapa descrita por Ruy Fausto como Pós-Grande Indústria. A
idéia, nas palavras do próprio autor, é que “Marx adota em O Capital uma postura menos otimista
no que se refere ao destino que teria o processo de trabalho na sociedade comunista. Dentro dela, a
‘necessidade’ se manteria [como vemos no capítulo 48 deste livro]. Os Grundrisse enveredam por um
outro caminho, e poderíamos nos perguntar porque Marx não o seguiu em O Capital” (FAUSTO,
1989, p. 48). Assim, diria este autor, “se a grande indústria aparece como a negação do processo de
trabalho, a pós-grande indústria é a segunda negação do processo de trabalho, e na realidade a
negação da negação” (FAUSTO, 1989, p. 49, itálico do autor).
46
prova em O Capital de que Marx teve um contato empírico com este fenômeno de
revolucionamento constante da própria maquinaria:
[...] a máquina de fiar precisava da ajuda do trabalhador para ser posta em
funcionamento, até que se inventou a máquina automática; [...]. É o que se
dava na construção de máquinas antes de a espera de torno27 se
transformar em elemento automático. [...] São invenções mais recentes o
aparelho que pára a máquina de fiar quando se parte um fio, ou o freio
automático, que pára o tear a vapor aperfeiçoado quando falta o fio da
trama na canela da lançadeira (MARX, 2003, p. 437).
Ora, se isto já se fazia notar em sua época, quanto mais agora,
transcorrido quase um século e meio. Este princípio reforça ainda mais a tendência
que ficou implícita desta nossa descrição. Devemos, pois, explicitá-la. No
movimento capitalista de superar a barreira humana, o capital não somente
apendiciza o homem em uma função estranhada e desqualificada. O capital, ao por
em marcha sua tendência de aumento de sua composição orgânica, ele prescinde,
ou seja, torna supérfluo o trabalho vivo e passa de seu ponto ideal de
reprodução, uma vez que o capital é uma relação social. É devido exclusivamente a
isto que Marx diz que a tendência do capital é diminuir o trabalho a um mínimo, o
que levará a uma superação do capitalismo rumo à emancipação humana. “O
capital de modo não premeditado, reduz a um mínimo o trabalho humano, o gasto
de energia. Isso resultará em benefício do trabalho emancipado e é condição de sua
emancipação” (MARX apud ROSDOLSKY, 2001, p. 539, nota 31).
Com isso chegamos ao fim de nossa descrição sobre o movimento de
desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo. No entanto, no que diz
respeito a esta última característica, o fato de que a tendência do capital seja
eliminar trabalho e reduzi-lo a um mínimo não se contrapõe à idéia de André Gorz.
Lembremos que este se baseia justamente na idéia de que ainda que o trabalho da
produção material seja reduzido drasticamente, este trabalho residual será
heterônomo, ou seja, marcado por leis externas que colidem com as leis de livre
expressão e desenvolvimento do indivíduo. Nem tão pouco, até o momento, nos
confere autoridade para refutarmos a idéia de Gorz de que a alienação continuará
existindo neste mínimo. Entretanto, continuemos analisando este movimento
material da sociedade trazendo alguns elementos teóricos do próprio Marx sobre
alguns apontamentos para a emancipação humana.
27
Não fica claro nesta tradução que se trata do torno com descanso deslizante ou torno (slide-rest).
47
28
Uma questão a ser explorada é se perguntar até que ponto o fato da obra máxima de Karl Marx (O
Capital) ter sido escrita para descrever o movimento da sociedade capitalista determinou suas
conclusões menos ousadas que se vê em outras obras, como aliás, já foi colocado por Ruy Fausto.
Ou seja, devemos perguntar se era cabível nesta obra o autor se permitir falar de libertação, ou
mesmo que a idéia de libertação na produção pudesse aparecer no interior desta obra, que versa
sobre a sociedade capitalista, embora aparecendo momentos de a-historicidade como no capítulo
intitulado A Fórmula Trinitária.
54
29
Sobre esta realização de seu ser genérico pela mediação com a natureza, ver (MARX, 2004).
57
setor químico, cuja importância está na petroquímica. Contudo, devemos dizer que
o ramo da produção que nos importa agora é o metal-mecânico, não somente
porque o ramo da química ocupa uma porcentagem demasiado pequena em
comparação com o metal-mecânico, como o autor deixou claro, mas também
porque são processos de produção completamente distintos neste período do
imediato pós-guerra. Vejamos o que estamos dizendo:
En 1955, los productos químicos y derivados representaban, a nivel
mundial, el 10 % de la producción industrial. En 1977, esa producción se
había elevado al 14 %. La industria metalmecánica eleva su participación
de 34 a 43 % en ese mismo período (FAJNZYLBER, 1983, p. 22).
Ou seja, o setor químico representava aproximadamente pouco mais
de um quarto do setor metal-mecânico no mesmo período. Ao passo que se
fizermos uma comparação com a produção total da indústria, veremos que este
último setor representou quase a metade de toda a produção industrial em 1977.
Visto isso, parece-nos quase indiscutível seu peso na economia. Entretanto, antes de
avançarmos em nosso raciocínio, vejamos uma diferenciação entre estes dois
setores:
O setor químico pode ser enquadrado por sua natureza produtiva,
num tipo de indústria chamado de indústria de processo contínuo ou mesmo de
fluxo contínuo30:
Alguns setores industriais cujos processos de produção incorporam, em
maior ou menor grau, características do tipo contínuo são as indústrias
petroquímica, química, nuclear, siderúrgica, de bebidas, de alimentos, de
cimento, de vidro, de borracha e outras (FERRO; TOLEDO; TRUZZI, 1985,
p. 23).
O que marca do ponto de vista técnico o processo de produção
destas indústrias é o caráter integrado de suas “etapas” propiciando uma
continuidade na produção. Da mesma forma, suas instalações grandiosas muitas
vezes se confundem com os próprios equipamentos produtivos, cujo caráter é de
uma produção extremamente dedicada, ou seja, pouco flexível.
A fábrica é dispersa e seus equipamentos pesados “explodem” para cima e
para os lados, não se contendo na maioria das vezes no interior de
qualquer edificação. Porém, convém notar desde logo, que sob a dispersão
aparente dos equipamentos dessa indústria, oculta-se muitas vezes um alto
nível de integração.
Outra característica básica das instalações é a sua baixa flexibilidade,
sobretudo quando comparada às tradicionais máquinas ferramentas
universais, uma vez que a produção propriamente dita é realizada em
fluxo por uma única seqüência de equipamentos e operações que, em
geral, não pode ser alterada significativamente (FERRO; TOLEDO; TRUZZI,
1985, p. 28).
30
Para uma diferenciação deste tipo de indústria para as demais, confira (FERRO; TOLEDO; TRUZZI,
1985).
61
31
Sobre as características desse tipo de trabalhador exigido pelos processos tayloristas ou fordistas,
vejamos o que Taylor fala: “Quanto à seleção científica dos homens, é fato que nessa turma de 75
carregadores apenas cerca de um homem em oito era fisicamente capaz de manejar 47,5 toneladas
por dia. Com as melhores das intenções, os demais sete em cada oito não tinham condições de
trabalhar nesse ritmo. Ora, o único homem em oito capaz desse serviço não era em sentido algum
superior aos demais que trabalhavam em turma. Aconteceu apenas que ele era do tipo do boi —
espécimen que não é tão raro na humanidade, nem tão difícil de encontrar que seja demasiado caro.
Pelo contrário, era um homem tão imbecil que não se prestava à maioria dos tipos de trabalho. A
seleção do homem pois, não implica encontrar algum indivíduo extraordinário, mas simplesmente
apanhar um entre os tipos comuns que são especialmente apropriados para esse tipo de trabalho”
(TAYLOR apud BRAVERMAN, 1977, p. 99).
62
32
Sobre esta idéia de um padrão de acumulação especificamente fordista que toma o fordismo como
generalidade industrial, na verdade oriunda da escola da regulação, ver: Parte II de (HARVEY, 2001).
63
contínuo independia de tais técnicas. Devemos dizer, aliás, que tanto a têxtil quanto
a indústria de fluxo contínuo comportavam um alto nível de automação, nível
alcançado pelo setor metal-mecânico somente a partir dos anos 80 com a aplicação
da automação de base microeletrônica, e que o leva a cada dia a assumir as
características de um processo contínuo.
O revolucionamento ocasionado pela introdução da nova automação, de
base microeletrônica, sobre a forma taylorista-fordista de produzir
concentra-se, portanto, na indústria metal-mecânica produtora de bens
duráveis de consumo complexos. Sua conseqüência será a de trazer essa
indústria para o “leito da automação”, no qual já caminham há muito
tempo ramos industriais tecnologicamente mais avançados, como as
indústrias têxtil e de processo contínuo (MORAES NETO, 2002, p. 83-4).
Se o período que marca o contexto da obra Adeus ao Proletariado
abarca o apogeu da sociedade fundada no pleno emprego lastreado no taylorismo e
no fordismo graças à indústria metal-mecânica, este mesmo período abarca também
o aparecimento de avançadas tecnologias de automação introduzidas justamente
onde antes vigiam o taylorismo e o fordismo. Assim, Gorz teria também que lidar
com a recente crise do trabalho33 e, conseqüentemente, com a correlata crise das
políticas keynesianas.
33
Crise do trabalho entendida aqui como crise do trabalho abstrato, para nos referirmos à exortação
de Ricardo Antunes em seu livro Adeus ao Trabalho?, ou mesmo a crise do trabalho entendido como
labor, visto que é o termo que André Gorz se utiliza para se referir ao trabalho especificamente
capitalista (Cf. GORZ, 2003, p. 24).
34
Uma opinião contrária a esta pode ser vista no artigo de Simon Clarke intitulado: Crise do fordismo
ou crise da social-democracia? (Cf. CLARKE, 1991).
65
35
Não nos cabe neste trabalho uma discussão para saber se realmente a tese dos keynesianos está
correta ou não, nem teríamos competência para tanto e nem diz respeito a nosso objeto de estudo.
Todavia, uma indagação que poderíamos fazer aqui é se foi realmente uma política econômica que
teria conseguido alavancar este crescimento ou se foi uma situação peculiar e complexa envolvendo
vários fatores, mas cujo principal talvez fosse uma base produtiva altamente concentradora de
trabalho vivo, como é o caso do fordismo. No caso de uma aceitação do primeiro argumento
(determinação de uma política econômica) devemos perguntar se esta mesma política seria possível
no estágio atual do capitalismo.
67
trabalho. E justamente por este motivo este autor sofreria severas críticas em todo o
mundo e mesmo no Brasil.
Com isso fechamos um breve esboço do que teria participado da
análise de Gorz antes e depois da mudança na sua trajetória teórica. Porém
devemos lembrar que apesar deste autor decretar, ao nosso ver acertadamente, que
a automação marcaria o final do keynesianismo no plano político-econômico, o
mesmo não pode ser dito com relação à sua opinião sobre os destinos do fordismo,
uma vez que, para este autor, o fordismo continuaria existindo, como veremos
posteriormente.
É como se para Gorz a automação do final do século XX não tivesse
aberto uma fissura no setor metal-mecânico e não tivesse colocado um fim na
produção baseada nos tempos e movimentos dos trabalhadores. Devemos lembrar
que outros setores produtivos já caminhavam nos princípios da automação no
começo do século XX e mesmo no século XIX. Este é o caso do setor têxtil e do
setor chamado de indústria de fluxo ou processos contínuos, ambos contendo um
alto grau de automação determinada pela aplicação tecnológica da ciência. Cf.
(MORAES NETO, 2003).
Já vimos que a indústria por excelência do século XX foi tomada pela
metal-mecânica e, mais especificamente, pela indústria automotiva. Como já
dissemos também no item anterior, as técnicas inerentes a este setor marcariam o
imaginário sociológico devido a seu peso na economia. Assim, podemos entender
Gorz quando este anuncia ao mesmo tempo avanço da automação e a prevalência
dos processos heterônomos e insuperáveis — como ele vê — típicos do taylorismo
e do fordismo. É o que se vê nesta passagem em que Josué reafirma a visão de
Gorz sobre a impossibilidade de emancipação: “A eliminação do trabalho, de um
lado, e a persistência de uma divisão do trabalho alienante, de outro, solapam a
possibilidade de controle operário e impedem a possibilidade de libertação no
trabalho” (SILVA, 2002, p. 204). Mais ainda, o que Gorz parecia não querer ver era
o aparecimento de novas tecnologias automatizadas aplicadas nas indústrias de
forma, ocasionando a rápida abolição dos processos taylorista e fordista.
O silêncio de Gorz sobre todo este movimento que acontecia na
metal-mecânica não parece ter explicação, e somente isto poderia explicar
contradições como a que vimos ao afirmar dois fenômenos tão antagônicos como
divisão manufatureira e automação e abolição do trabalho. Afinal, como se poderia
69
36
Este têrmo de Moraes Neto foi criado para dar conta do movimento da produção fordista quando
da passagem de uma produção semi-artesanal para uma maior padronização das peças. Este
movimento então teria exigido uma mudança significativa, tornando rígidas as máquinas-ferramentas
universais que produziam de forma flexível. “Sua característica distintiva seria a de produzir de forma
padronizada, ou rígida, [...] lastreando-se, todavia, numa estrutura técnica potencialmente flexível,
coisa não perceptível na época. Esta fase será chamada de fase da ‘rigidificação’” (MORAES NETO,
2003, p. 66).
74
A inovação típica de Ford, a linha de montagem, não fez outra coisa senão
coletivizar o taylorismo, através do recurso fundamental da esteira, que
busca a solução para um problema típico da manufatura, chamado por
Ford de “problema do transporte”. Na realidade, a grande fábrica fordista,
ao invés de significar a indústria por excelência, a forma mais avançada da
produção capitalista, significa isto sim uma “reinvenção da manufatura”,
uma coisa extremamente atrasada do ponto de vista conceitual, a despeito
de seu imenso sucesso do ponto de vista produtivo e econômico. A
colocação de milhares de trabalhadores, uns ao lado dos outros, fazendo
movimentos parciais e repetitivos, administrando seus tempos e
movimentos, ou seja, a utilização in extremis do ser humano como
instrumento de produção, de forma alguma ajusta-se à noção marxista de
produção à base de maquinaria. Trata-se, o taylorismo-fordismo, não de
uma manifestação histórica quase perfeita da “antevisão” de Marx sobre o
processo capitalista, mas sim da negação do conceito marxista de grande
indústria. O caminho do taylorismo-fordismo significa na verdade um
“desvio mediocrizante” do capitalismo no que se refere ao
desenvolvimento das forças produtivas, não fazendo jus à colocação de
Marx de que, quanto a esse ponto, o capitalismo apresentaria uma
natureza brilhante (MORAES NETO, 2002, p. 82).
Uma vez que a aparição de tais processos foi perceptível de modo
mais evidente a partir do século XX, isto provavelmente representou um complexo
obstáculo para quem se deparava empiricamente com tais processos. Isto porque
seu aparecimento aparentava uma linha de continuidade com toda a descrição feita
por Marx em seus escritos. Neste caso, a visão linear e não dialética do
desenvolvimento das forças produtivas causou uma opacidade a quem não se
apercebera do caráter manufatureiro do taylorismo e do fordismo; caráter que
rompia radicalmente com a idéia posta de desenvolvimento linear das forças
produtivas capitalistas. É neste sentido que podemos entender a falta de rigidez
conceitual da obra de André Gorz no que tange às forças produtivas. Também é
desse modo que podemos entender porque Gorz, ao olhar para o sistema capitalista
ou mesmo socialista, captara somente o que havia de mais negativo e medíocre na
sua base técnica. Isto porque na visão deste autor formou-se um amálgama
problemático em que co-existiam os resultados do processo de automação nas
décadas de 70 e de 80 (desemprego) e os processos baseados ainda numa divisão
parcelar do trabalho, o que imprimiria nele uma idéia de degenerescência
inexorável do processo capitalista de produção. Portanto, a incapaz diferenciação
destes dois processos que co-existiram no século XX e a não percepção do caráter
manufatureiro do taylorismo e do fordismo contribuíram para que Gorz fizesse a
ilação de que tudo o que via era fruto de um desenvolvimento homogêneo das
forças produtivas. Eis a armadilha do taylorismo e do fordismo.
Na verdade, vendo os avanços mais recentes da indústria automotiva
e da metal-mecânica como um todo, podemos ver claramente que esta
degenerescência não é inexorável. No entanto, está claro para nós que outros
76
37
Devemos deixar claro aqui que nosso uso constante da palavra trabalhador expressa simplesmente
aquele que trabalha. Da mesma forma poderemos utilizar desempregado para se referir ao individuo
que não está no processo produtivo. No entanto, disto não se tira a conclusão de que somente o
primeiro é um proletário. Uma vez que este conceito, ao nosso ver, é usado por Marx e Engels para
78
Seria este o sentido de se falar de um proletariado que não tem mais nada a perder,
nem mesmo seu emprego. Vejamos então como Marx e Engels viam esta
contradição social do capital já no século XIX — por sinal, uma condição muito
similar a nossos dias:
A grande maioria dos desempregados torna-se vendedores ambulantes. É
principalmente aos sábados à noite, quando toda a população operária sai
à rua, que vemos reunidas as pessoas que vivem disso. Fitas, rendas,
galões, laranjas, bolos em resumo, todos os artigos imagináveis são
oferecidos por homens, mulheres e crianças [...]. Outros ainda, chamados
jobers, circulam nas ruas tentando encontrar alguns trabalhos ocasionais.
Alguns conseguem um dia de trabalho; muitos não são tão felizes
(ENGELS, 1988, p.104).
Numa tal situação, “o imposto para os pobres não é suficiente; a
caridade dos ricos é uma gota de água no oceano, cujo efeito desaparece logo em
seguida; a mendicância é pouco eficaz, dado o número de mendigos” (ENGELS,
1988, p. 106-7).
O que queremos com estes relatos é abrir a possibilidade de uma
pergunta simples: por que o desenvolvimento das forças produtivas gerava
contradição antes e agora deixou de gerar? Acaso as conseqüências, vistas por
Engels, da aplicação da máquina no setor têxtil e das crises não são as mesmas de
nosso contexto? Mais uma vez a resposta pode servir de fundamentação a nossa
crítica. Gorz toma por referência o taylorismo/fordismo e, mesmo concebendo a
abolição do trabalho pela automação, não consegue, paradoxalmente, vislumbrar a
superação destas técnicas de processo produtivo. Contudo, não avancemos mais do
que ainda não nos fôra possível demonstrar.
Façamos outra pergunta: quando e por que propriamente as forças
produtivas deixaram de representar uma contradição no capitalismo. A resposta é
clara e é fornecida também por Josué Pereira da Silva.
A pacificação do conflito de classes nos países industrializados do
Ocidente (ou compromisso fordista) era pelo menos em parte resultado da
capacidade do welfare state de prover a maioria da população desses
países com um padrão de vida acima da linha de pobreza (SILVA, 2002, p.
85).
O welfare state, o compromisso keynesiano entre as classes, que ficou
conhecido como o pacto social, tão amplamente pregado por partidos reformistas,
se estruturou a partir deste contexto do século XX. Num tal contexto em que a base
produtiva fundamentalmente taylorista/fordista, como falamos, devorava seres
se referir a todo aquele que, não tendo mais nada a não ser sua força de trabalho, deve procurar
alguém para comprá-la. Neste caso, um proletário não deixa de estar na condição de proletariado
por não encontrar alguém que deseja comprar sua força de trabalho. Em não encontrando alguém
que o explore podemos — somente aí — dizer que não tem mais nada a perder, a não ser suas
algemas. Logo, o desemprego não seria, em qualquer hipótese, o fim do proletariado.
79
humanos como khronos a seus filhos, só se podia esperar uma amenização, pelo
pleno emprego, das desigualdades sociais e da conseqüente contradição social do
capitalismo. A classe trabalhadora tivera asseguradas conquistas nunca dantes
sonhadas. Todavia, se isto representava uma força de negociação da classe operária,
representava também uma fraqueza por justamente esta classe preferir agora a
negociação, evitando assim perder as novas conquistas numa ruptura com a ordem
burguesa vigente.
Em outras palavras, a máxima marxista segundo a qual a única coisa que o
proletariado teria a perder no caso de uma revolução social seriam seus
grilhões tornou-se de difícil aceitação sob as condições do welfare state no
período posterior à Segunda Guerra Mundial (SILVA, 2002, p. 86).
Neste contexto, parece haver sentido os dizeres de Gorz sobre a
relação estabelecida entre as forças produtivas e o fim das contradições das relações
sociais capitalistas. Como acusá-lo, se a tese revisionista procedia com os mesmos
elementos de análise? Como pensar em contradições num sistema onde a base
técnica estimula o emprego de milhares de pessoas e a forma social obriga milhares
de pessoas a procurarem um emprego para garantir a satisfação de suas
necessidades vitais mínimas? No entanto, a acusação deve vir não por ter enxergado
uma relação para lá de evidente, mas por ter interpretado que a ausência de
contradição era resultado do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. O
que criticamos nele é que não se apercebera de que a ausência de contradição
retornou ao século XX justamente pelo retrocesso capitalista ao buscar uma força
produtiva de índole manufatureira, como é o caso do taylorismo e do fordismo,
como pudemos ver anteriormente. Ao fazer isto, o capital gerou realmente um
estado de coisas adverso aos seus objetivos de controle absoluto da produção e da
determinação in extremis do tempo de produção, uma vez que o trabalho humano
diretamente ligado à produção não fora abolido, mas, ao contrário, a habilidade
humana se encontrava novamente valorizada, agora pelos processos produtivos do
setor metal-mecânico — e justamente por este estado de coisas, em que a classe
operária detinha um maior poder, é que o movimento sindical sente saudades deste
tempo.
Como diria acertadamente HOBSBAWM:
[...] nos velhos centros industrializados, que significado poderia ter o “De
pé, ó vítimas da fome!” da “Internationale” para trabalhadores que agora
esperavam possuir seu carro e passar férias anuais remuneradas nas praias
da Espanha? E se os tempos se tornassem difíceis para eles, não haveria
um Estado previdenciário universal e generoso pronto a oferecer-lhes
proteção, antes nem sonhada, contra os azares da doença, da desgraça e
mesmo da terrível velhice dos pobres? (HOBSBAWM, 2000, 262).
80
Vendo tudo isto, como deixar de dar razão a Gorz sobre sua
colocação de que, naquela situação, o “marxismo estava em crise porque o
movimento operário estava em crise”? No entanto, não podemos concordar com ele,
e força-nos a tarefa de explicar este aparente jogo de inversões provocado pela
interversão ideológica da realidade ou, se preferirmos um têrmo de Marx,
provocado pelas “travessuras do espírito”.
Como poderemos constatar na longa citação de Josué Pereira da Silva,
Gorz está do alto dos anos 80 escrevendo a este respeito. Se Adeus ao proletariado
é uma obra que já visualizava e propagava o fim do proletariado provocado pelo
desenvolvimento do capitalismo, em hipótese alguma ele poderia dizer que a
realidade carecia do princípio de contraditoriedade social já visto por Engels e Marx
no século XIX. Se bem nos lembrarmos de uma citação do subitem 2.1.2, Gorz
declarava: “Keynes está morto”. Neste contexto de Adeus ao Proletariado, portanto,
a única coisa sensata a ser dita sobre a contraditoriedade do capitalismo seria dizer
que ela estava retornando; dizer que o tempo do pleno emprego keynesiano e seu
alicerce taylorista-fordista estavam ruindo e que por isso a não-contraditoriedade do
período de ouro do capitalismo estava terminando. Não obstante, e esta é a grande
inversão ideológica, ao invés de perceber isto, vemos Gorz afirmando a crise do
marxismo, justamente no momento de sua maior vigência a julgar pelo que já
discutimos no item sobre o desenvolvimento das forças produtivas. Gorz teve a
ousadia de dizer o óbvio ao falar que Keynes estava morto, mas parece não ter tido
a mesma vontade para afirmar o fim do taylorismo-fordismo e, portanto, do retorno
da contraditoriedade do capital.
Disso tudo, a única conclusão lógica que podemos tirar é que, de
fato, Gorz, apesar de se basear no fim do trabalho pela automação, combina
paradoxalmente sua análise tendo em vista os sistemas tayloristas/fordistas. Todavia,
apresentaremos agora a maior evidência disto que estamos afirmando. Esta
evidência está ligada a mais uma questão que surge da longa citação apresentada
por nós acima, na qual Josué Pereira fala sobre a obra Adeus ao Proletariado.
Vejamos então mais este aspecto a ser destacado.
Esta outra questão surgida daquela citação é a idéia já comentada
parcialmente por nós de que as forças produtivas gestadas pelo capitalismo “não se
prestam a uma apropriação pelo proletariado” para um “uso socialista”.
O que nos importa mostrar aqui é novamente o vínculo contraditório
das idéias de Adeus ao proletariado com o taylorismo/fordismo. Dizemos
81
38
Esta discussão pode ser encontrada em (MORAES NETO, 1991) e (SANDOVAL FILHO, 2002).
82
que se tiraram modelos para as outras revoluções, formando uma nova teoria —
combinando teoria e prática — que ficara conhecida no campo socialista como
Marxismo-leninismo.
Para chegarmos à compreensão de nossos objetivos, comecemos este
breve histórico com um fato comum às várias revoluções socialistas do século XX.
Este fato é que, excetuando um ou dois países do leste europeu (Tchecoslováquia e
Hungria), todas estas experiências se deram em países atrasados do ponto de vista
econômico. Mas apesar do atraso, vale lembrar que, para o caso do antigo império
russo, era o atraso de um império. Para que se compreenda isto, devemos
retroceder na história até o antigo império tsarista russo no século XIX.
Juntamente com outros impérios coloniais, a Rússia antiga possuía um
grande poderio militar. Derrotara as tropas de Napoleão e se tornara reconhecida
por este feito. Todavia, a um certo momento do século XIX a Rússia parece ter
perdido a marcha econômica da história.
Introduzira-se naquelas quatro décadas, entre 1815 e 1855, um
descompasso que se tornara histórico entre a Rússia tsarista e as potências
capitalistas mais dinâmicas da Europa. Como se a Rússia não tivesse sido
capaz de acompanhar o processo de modernização (a Revolução
Industrial) que estava mudando a paisagem econômica e social da Europa
ocidental desde fins do século XVIII. Em 1820, a Rússia produzia mais
ferro que a França ou os Estados Unidos, ou a Prússia, e o equivalente a
um terço da produção inglesa. Quarenta anos depois produzia dez vezes
menos do que a Inglaterra, um terço do que produziam os EUA e tinha
sido já ultrapassada pela França e até pela Prússia (REIS FILHO, 2003, p.
22).
Era o reinado de Nicolau I, que ficara conhecido como um período de
obscurantismo. Neste caso o obscurantismo pode ser ilustrado como uma
continuidade e até fortalecimento das estruturas feudais e relações de servidão que
terão fim somente em 1861, com as reformas de Alexandre II. O tsarismo
caracterizava-se ainda por um extremo misticismo e religiosidade exacerbada e por
uma grande miséria da população que, juntos, plasmavam a ignorância
principalmente dos servos camponeses conhecidos como mujiks. Vale ainda
lembrar que este campesinato constituía cerca de 85% a 90 % da população Russa,
diversificada em suas etnias e línguas. Podemos ver estas imagens mais fielmente
retratadas pela pena de Tolstoi e Dostoievski ao descreverem a miséria do campo e
da cidade, ou mesmo lembrar a estranha figura do monge Rasputin, tido como um
bruxo pelas massas na época de Nicolau II.
Por volta da metade do século XIX, impulsionado por pressões sociais
tanto no campo quanto na cidade, o regime tsarista propõe algumas reformas,
sobretudo para tentar acompanhar outros impérios e conter revoltas internas. Uma
84
39
Devemos, contudo, ter em mente que este apoio não se deu de forma unitária. As polêmicas ainda
no final do século XX já demonstravam uma discordância entre os teóricos. G. Plekhanov, aliado por
certo período de Lênin, foi um opositor conhecido de uma revolução pelo campesinato: “Plekhanov,
ao longo dos anos 80 e 90, foi quem melhor encarnou a ortodoxia desse marxismo russo nascente: o
socialismo na Rússia não mais se basearia, como pensavam os populistas, no campesinato, nas
tradições rurais igualitárias e na comuna agrária, mas no progresso urbano, na classe operária
emergente, na fábrica” (REIS FILHO, 2003).
85
ocorrer uma revolução socialista num país atrasado como a Rússia e sobre a
possibilidade de sobrevivência do socialismo num só país.
Também sobre isto, é conhecida a renitente defesa que faz Stalin da
possibilidade de que o socialismo se desenvolva unicamente em um só país.
Todavia, quem primeiro se aventurou a afirmar tal coisa foi o próprio Lênin.
A partir de alguns escritos de Engels e também de Marx, podemos
constatar a pesada crítica que estes autores fizeram às tentativas de se pensar o
socialismo em uma sociedade atrasada e em uma só localidade. Se o comunismo é
fruto, dentre outras coisas, do intercâmbio universal entre os homens e do
desenvolvimento das forças produtivas, seria impensável sua implantação em um
único país, principalmente atrasado. Marx e Engels escrevem em A Ideologia Alemã:
O comunismo só é empiricamente possível como o ato “súbito” e
simultâneo dos povos dominantes, o que supõe, por sua vez, o
desenvolvimento universal da força produtiva e os intercâmbios mundiais
estreitamente ligados a este desenvolvimento (MARX, ENGELS, 2002, p. 31-
2).
Desse modo, a ortodoxia do movimento marxista russo reafirmaria
esta tese, excluindo que uma verdadeira revolução socialista pudesse se operar
isoladamente no contexto soviético. Boa parte do POSDR e posteriormente do
partido bolchevique sabiam disso e ansiavam por uma revolução na Europa,
principalmente porque a Alemanha da época passava por revoltas constantes e a
revolução aparentava estar prestes a eclodir. Mesmo assim, houve uma mudança
significativa nos discursos, principalmente de Lênin. Talvez isto se devesse ao fato
de, como líder político, abrir mão da rigidez teórica e abraçar a estratégia de
insuflar a massa para uma mudança imediata sem a dependência da Europa40.
[...] a tese de Engels de que a vitória do socialismo num só país seria
impossível transformou-se num dogma, compartilhado também pelos
marxistas russos. O primeiro que divergiu decididamente desta formulação
foi Lênin (MEDVEDEV, 1988, p. 48).
Sobre a afirmação colocada por Medvedev de que é dogmatismo
ponderar sobre a impossibilidade da construção do socialismo isoladamente, não o
cabe agora. Nem avaliar se se trata de um imperativo econômico sine qua non de
realização do socialismo. O que nos importa momentaneamente é mostrar a
mudança de Lênin e o peso que ela terá, sobretudo na posterior defesa staliniana
ancorada em suas palavras. Assim, num artigo intitulado “Sobre o lema Estados
Unidos da Europa” Lênin dirá:
‘A desigualdade do desenvolvimento econômico e político é uma lei
absoluta do capitalismo. Disto resulta que é possível o triunfo do
40
As conseqüências desta e de outras mudanças do ponto de vista teórico do marxismo serão
analisadas no próximo item que discutirá as bases materiais do socialismo soviético.
86
41
Foram nestas rebeliões que se deu o grande motim da base de Kronstadt, no golfo finlandês e o
motim do famoso Encouraçado Potemkim, eternizado pelas lentes de Eisenstein.
87
42
“Só um grupo combateu invariavelmente o stalinismo a partir de 1923, o grupo formado por
Trotsky e pela oposição de esquerda. E, por isso, pagaram um preço terrível: Trotsky foi assassinado
no exílio por um agente russo, e seus correligionários morreram em grande parte no Gulag, onde
formaram um dos poucos grupos que organizaram ativamente a resistência ao regime que prevalecia
no campo de concentração” (CALLINICOS, 1992, p. 29).
91
nós no momento é deixar claro que a esperada — por muitos — revolução mundial
não veio e em sua ausência instalou-se a fome e o atraso.
A revolução mundial, que justificou a decisão de Lenin de entregar a
Rússia ao socialismo, não ocorreu, e com isso a Rússia soviética foi
comprometida, por uma geração, com um isolamento empobrecido e
atrasado. As opções para seu desenvolvimento futuro estavam
determinadas, ou pelo menos estreitamente circunscritas [...] (HOBSBAWM,
2000, p. 71).
Sobre o diagnóstico das conseqüências do isolamento da revolução,
Reis Filho não poupará palavras para explicitar este desvio de vital importância para
o futuro do socialismo:
No plano internacional, e contrariando as previsões dos líderes
bolcheviques, a revolução internacional não acontecera. A Rússia estava
isolada. O socialismo num só país, uma entorse essencial na teoria marxista
de revolução.
[...] O comunismo imaginado por Marx como a sociedade da abundância
concretizava-se como a organização da escassez (REIS FILHO, 2003, p. 72,
itálico do autor).
O Partido Bolchevique que havia conseguido a simpatia popular
vociferando contra a guerra foi obrigado a entrar num armistício que lhe custou
partes importantes de seu território — a chamada paz de Brest-Litowsky. Os
primeiros anos se revelaram de enorme penúria graças à guerra civil na contra-
revolução promovida pelos países capitalistas do exterior e pelos russos brancos
internamente. Esta primeira fase do socialismo soviético contava com a requisição
forçada de produtos agrícolas para o abastecimento das cidades e do exército
vermelho nas linhas de combate. Esta requisição forçada gerou um desestímulo dos
camponeses e a conseqüência imediata foi o boicote dos kulaks e a queda de
produtividade. Após a vitória na guerra civil,
O país estava simplesmente arrasado. O produto industrial registrava um
declínio de mais de dois terços. Na grande indústria, a perda chegava a
80%. A produção de petróleo, energia elétrica e carvão caíra em mais de
70%. Em relação a outros setores estratégicos para o equilíbrio da
economia, como ferro, aço e açúcar, uma situação ainda mais desoladora:
quase 100% de queda. O mesmo ocorria no tocante ao comércio externo.
Quanto à produção agrícola, diminuição de quase metade (REIS FILHO,
2003, p. 71).
Desse modo, o império que já apresentava um profundo atraso em
relação à Europa e aos Estados Unidos, tornara-se ainda mais empobrecido, de tal
forma que a grande conquista agora seria a vitória contra a fome e as pestes. Em
1919 Lenin diria:
A nossa [...] tarefa é a luta contra os piolhos que transmitem o tifo
exantemático. Este tifo, numa população minada pela fome, doente,
privada de pão, de sabão e de combustível, pode degenerar numa
calamidade que nos impedirá de levar a cabo toda a edificação socialista.
Esse é um dos primeiros passos na nossa luta pela cultura e é uma luta
pela existência (LENIN apud LINHART, 1977, p. 16).
92
43
Sobre a necessidade de produtividade e aumento da disciplina do trabalho e emulação, ver
capítulo VI de (BORODÍNE; FAMÍNSKI et alli, 1983).
44
Sobre esta crítica, ver (GORZ, 1987) e (KURZ, 1999).
94
públicas (grifo nosso) [...] (LENIN apud LINHART, 1977, p. 98, itálico do
autor)49.
49
Há nesta citação dois pontos que nos chamam a atenção. O primeiro é a colocação de Lenin ao
afirmar que o “mundo industrial exigirá cada vez mais jovens operários dotados de dedos ágeis”.
Ora, isto evidencia claramente que o mundo industrial de Lenin esta bem distante do mundo
industrial de Marx, para o qual o elemento vivo do trabalho tende à apendicização até o ponto de se
tornar supérfluo. O segundo ponto reside no fato de que a proposta de Lenin vai de encontro ao
que podemos visualizar no mundo capitalista. Escolas encarregadas da qualificação e formação dos
futuros trabalhadores — um exemplo brasileiro pode ser encontrado no SENAI — encobrem o fato
de que servem unicamente para fornecer mão-de-obra especializada, perpetuando sua condição de
classe ao impedir um ensino universal condizente com a sua condição de ser humano multilateral
em suas necessidades e potencialidades.
103
Este tipo de iniciativa seria elogiado por Lenin como um verdadeiro exemplo de
trabalho comunista e consistia simplesmente em que os operários dedicassem seu
tempo de folga nos sábados para trabalharem na construção e recuperação das
ferrovias de forma gratuita (Cf. LINHART, 1977). De segunda a sexta trabalhariam
para si, aos sábados para a construção do Estado socialista. Tecnicamente não se
distinguia em nada do processo de trabalho habitual, a não ser pelo fato de sua
gratuidade.
O segundo fenômeno, que se dará em 1920, cerca de um ano depois
dos sábados comunistas, será conhecido como militarização do trabalho. Esta
militarização era marcada pela obrigatoriedade do trabalho e pelo recém criado
exército dos trabalhadores comandados por Trotski e conhecidos como
trabalhadores de choque. O nome é uma analogia com as tropas de choque, pois,
de forma similar, estes destacamentos de trabalhadores serviriam para intervir em
obras de importância vital que passavam por dificuldades de conclusão. Conta-se
que seus relatórios espelhavam os moldes militares e que os trabalhadores
chegavam ao trabalho marchando e em grande estilo. Mas o fato a ser destacado é
que foram empregados justamente onde antes se situava o núcleo dos sábados
comunistas. Segundo (LINHART, 1977, p. 135-6) isto revelaria que a eficiência dos
trabalhos voluntários do ponto de vista técnico era precária. Esta miscelânea entre
duas formas de trabalho — voluntário e obrigatório — leva-nos a concordar com
Robert Linhart quando este diz que o ordenamento da força de trabalho se dará de
modo “voluntário se possível, obrigatório se necessário”.
Ao se verem privados das necessidades básicas, a militarização do
trabalho e sua obrigatoriedade haveria de se tornar permanente.
[...] vencida a guerra civil, a mesma proposta voltaria em outras versões,
como a da militarização do trabalho, o emprego sistemático dos critérios
de organização militar para a vida civil, a sociedade mobilizada em
batalhões e exército distribuídos de forma centralizada por frentes de
trabalho [...] (REIS FILHO, 2003, p. 72).
Não podemos aqui deixar de relatar um triste capítulo da ex-União
Soviética e que guarda uma relação de vital importância nesta análise sobre a
estrutura do processo de trabalho: Os campos de concentração de trabalhos
forçados (Gulag). Os prisioneiros destes campos eram destinados aos trabalhos
forçados, sob tais condições que, posteriormente, alguns autores fariam analogias
com o trabalho escravo. Sem dúvida, a importância econômica desta forma de
trabalho seria relevante, principalmente no que diz respeito ao projeto de
acumulação socialista. Isto levaria o governo de Stalin a incentivar este tipo de
104
economia, coisa que fica evidente quando se constata o vultoso número de milhões
de prisioneiros. Como dirá (MCNEAL, 1988, p. 263),
Enquanto milhões de pessoas subiam na hierarquia sócio-econômica da
Rússia staliniana, outros milhões desciam; aliás, a posição dessas últimas
precipitou-se bruscamente. Tratava-se dos habitantes do vasto sistema de
campos de trabalho forçado ou gulag (a sigla para ‘administração estatal
dos campos’). É ainda hoje impossível estabelecer, com uma mínima
pretensão de exatidão, o volume da população do gulag; [...] Para manter
em nível constante a sua população, era necessário que — para substituir
os mortos ou, mesmo, os poucos sobreviventes que eram soltos —
passassem a fazer parte da mesma um número maior de pessoas do que o
exigido para a reprodução das outras classes”.
Sendo assim, a reprodução deste sistema exigia cada vez mais um
número de pessoas disponíveis para os trabalhos. O principal alvo desta política
stalinista de “expurgo” foi a camada mais abastada do campesinato, na época
considerada um perigo iminente e inimiga da revolução. Os camponeses que
fugiam da coletivização
[...] Transformavam-se, juntamente com os acusados de crimes políticos,
em zeks, prisioneiros adstritos a trabalhos forçados, responsáveis pela
abertura de canais, construção de estradas de ferro, exploração de
madeiras nobres e de minas de ouro nas condições insalubres de regiões
inóspitas. A importância econômica do trabalho forçado, por muitos
denunciado como uma restauração disfarçada do trabalho servil,
largamente reconhecida, é até hoje de difícil mensuração estatística” (REIS
FILHO, 2003, p. 91).
No entanto, sabemos que outras pessoas foram atingidas com estas
pechas difamantes de inimigos do socialismo. Já falamos anteriormente que Trotski
fora acusado de traição e exilado. Mesmo assim, Stalin denunciaria uma perigosa
influência trotskista e burguesa no interior do próprio partido comunista da União
Soviética. Sob este pretexto, vários dirigentes seriam perseguidos e, acusados de alta
traição, confinados nos campos de trabalhos forçados, como vemos na seguinte
citação.
“[...] Dela fazem parte não apenas a prisão de membros da velha
burguesia, mas também a liquidação dos elementos considerados infiéis no
interior do Partido. Essas pessoas teriam caído vítimas das tentações
oferecidas pelo inimigo capitalista que circundava a Rússia. Esse tema foi
posto em cena pelos três grandes processos públicos de 1936, 1937 e 1938,
nos quais foram condenados velhos bolcheviques como Kamenev,
Zinoviev e Bukharin” (MCNEAL, 1988, p. 266).
O que estamos vendo é a concretização daquele projeto de
proletarização anteriormente mencionado por nós. O trabalho verdadeiramente
comunista segundo Lenin seria voluntário, mas eles não podiam se dar ao luxo de
contarem exclusivamente com uma consciência socialista ainda em formação. Deste
modo, a medida tida como coerente foi usar da força para que se criasse o
proletariado. As frentes militares de trabalho davam o tom da marcha, mas caso
falhasse, poderiam contar com novas formas de repressão ao trabalhador.
105
Como vimos até agora, este autor partiu da análise empírica de que o
trabalho no século XX estava se reduzindo, conseqüência direta da automação e da
microeletrônica. Mas se por um lado o trabalho se reduzia, por outro,
paradoxalmente, continuava existindo para o autor um trabalho parcelado,
heterônomo, graças à hierarquização e divisão do trabalho. Devido a estes fatores,
Gorz declarou que o trabalho transformava-se numa esfera de desrealização
humana e disso concluiu que as técnicas desenvolvidas no capitalismo não eram
neutras. Ao contrário, reproduziam, no nível da produção, as relações de
dominação e alienação da sociedade capitalista. Daí a impossibilidade de fundar
uma nova sociedade a partir das forças produtivas do capitalismo. Comecemos
deste ponto.
113
sucessão de gestos simples, a intervalos regulares” (GORZ, 1987, p. 50), o que ele
está descrevendo senão os processos tayloristas/fordistas? Vejamos outros exemplos:
[...] olhando de perto, a pergunta permanece: por que o trabalho deve ser
dividido em parcelas ínfimas? Por que as tarefas estreitamente
especializadas devem ser executadas separadamente? (GORZ, 1996, p.
227).
realmente um processo que aniquilou com esta qualificação de tipo skill, ou seja, de
tipo artístico-empírico54. Neste sentido, a automação também foi uma inimiga e por
isso mesmo Gorz a tratou de forma indiferenciada dos processos tayloristas e
fordistas. Vejamos como ele não os distingue.
A divisão parcelar do trabalho, depois o taylorismo, depois a O.C.T. e,
finalmente, a automatização aboliram, juntamente com os ofícios, aqueles
operários dotados de um ofício que tinham, com “orgulho do trabalho
bem-feito”, a consciência de sua soberania prática (GORZ, 1987, p. 58)
Este conflito na visão de Gorz não só o fez enxergar um obstáculo na
automação como também a tratou de forma indiferenciada. Talvez por isso ele não
pôde ser rígido em seu conceito de automação e não só não faz distinção entre
taylorismo, fordismo e automação, mas tratou este último conceito de forma
equivocada. Isto fica visível nesta sua próxima citação, na qual Gorz parece extrair
o conceito de automação do já falado padrão “um homem – uma máquina” típico
da cooperação simples de máquinas55.
[...] a automatização e a posterior informatização suprimem os ofícios e as
possibilidades de iniciativa e substituem por um novo tipo de operários
não-qualificados o que ainda resta de operários e funcionários
qualificados. A ascensão dos operários profissionais, seu poder na fábrica,
seu projeto anarco-sindicalista terão apenas aberto parênteses que o
taylorismo, depois a “organização científica do trabalho” (O. C. T.) e,
finalmente, a informática e a robótica acabaram por fechar (GORZ, 1987,
p. 39-0).
Gorz parece ter em mente o operário soberano em suas tarefas, visto
que este ainda realizaria a totalidade do produto. Ou, quando muito, ele olha para
os já superados operadores de máquinas-ferramentas universais e técnicos
ferramenteiros da indústria metal-mecânica. Estes trabalhadores, dotados de uma
saber operário — o savoir-faire atacado no início do capitalismo — eram os
operários intratáveis, segundo Andrew Ure. Intratáveis para o capital, é claro, visto
que tinham poder de autonomia e decisão dentro do processo, uma vez que o
54
Podemos ver em uma nota do livro de Moraes Neto (2003) a seguinte diferenciação das formas de
qualificação de tipo skill e de tipo knowledge: “[...] é necessário discutir brevemente a relação entre
skill e knowledge, que são conceitos relacionados, mas não idênticos. Knowledge abrange o
entendimento de um processo ou informação a um nível abstrato, tais como aqueles que podem ser
transmitidos a outro indivíduo de forma igualmente abstrata. Como tal, o conhecimento deve ser
explicitamente racionalizado em termos abstratos que possam ser prontamente entendidos — um
processo que passamos a conhecer como ciência e tecnologia. Skill compreende um conjunto de
experiências exercitadas, que pode envolver não apenas a aquisição de conhecimento, mas também
um grau maior ou menor de aptidão natural e regras implícitas de operação. Skills são adquiridos
individualmente e envolvem a combinação de aprendizagem abstrata, aptidão e experiência, mas o
mesmo não é verdadeiro para knowledge, que é essencialmente abstrato e menos individualizado”
(KAPLINSKY apud MORAES NETO, 2003, p. 47).
55
Esta característica da maquinaria, anteriormente a seu estágio mais avançado chamado por Marx de
sistema automático de maquinaria, ainda reproduz a apendicização desqualificante típica de seu
caráter incipiente de aprimoramento rumo a um sistema automático. Neste caso, a informática e a
robótica, ao invés de promover uma reprodução deste caráter mediocrizante, iria suprimir esta
característica que apendiciza e prende o homem a um “trabalho” enfadonho frente à máquina.
118
saber não estava nas mãos do capitalista, mas nas dos operários. Nosso autor, neste
sentido, está correto ao dizer que o taylorismo-fordismo foi um duro ataque à este
saber operário, sendo que a automação de base microeletrônica abolira aquilo que
Taylor e Ford não conseguiram.
Não obstante, Gorz muitas vezes trata, como já dissemos, a
cooperação simples de máquinas como se fosse o sistema automático de
maquinaria, não fazendo nenhuma distinção entre eles. Não há rigor nestes
conceitos, nem nos conceitos de maquinaria e automação: “Gorz nem mesmo
estabelece uma diferença (ou uma definição, qualquer que seja) da maquinaria para
a manufatura e cooperação, tudo parece ser a mesma coisa, são elementos
indistintos da produção capitalista” (SANDOVAL FILHO, 2002, p. 212).
Na verdade, Gorz, em nenhum momento, faz referência direta à
maquinaria, critica as máquinas e técnicas, instalações, ciência, sem
demonstrar, em ponto algum de sua abordagem, uma definição ou, pelo
menos, um sinal de que tenha clareza a respeito do significado do sistema
automático de máquinas. A interpretação de que a grande indústria é o
mesmo que manufatura pode ser, como no caso de Coriat, a razão pela
qual Gorz seja um adepto da critica à neutralidade da técnica (SANDOVAL
FILHO, 2002, p. 199).
Postas estas questões — que causam uma dificuldade no estudo
rigoroso das posições de André Gorz — retornemos ao ponto principal de nossa
análise, qual seja, a fundamentação da conversão para o projeto dualista.
A negação de Gorz da idéia de abolição radical do trabalho alienado
na teoria de Marx, como mostramos no item 1.3, vem acompanhada em nosso
trabalho de uma pergunta: por que? A resposta, como pensamos ter mostrado é
que, de fato, na época em que Gorz tecia suas análises veiculadas em Adeus ao
Proletariado, as forças produtivas do capitalismo em um setor específico (metal-
mecânica) realmente expressaram o que Gorz apontava: desqualificação,
desrealização, heterodeterminação in extremis dos tempos e movimentos do
indivíduo, etc. Isto era tão evidente, principalmente nas indústrias menos avançadas
do ponto de vista da automação, que mesmo Gorz visualizando as conseqüências
da automação que se operava em outras indústrias, todas as características da
divisão do trabalho acima se impregnaram em suas teses, da mesma forma que a
luz solar marca a retina de um observador incauto.
Ora, no caso de Gorz, este olhar se movia tanto para os países
capitalistas como para os países socialistas. Quando este autor pôde ver que o
projeto socialista de Marx havia se concretizado numa forma que reproduzia todas
as degenerescências do capitalismo, ele não hesitou em declarar que o socialismo
havia fracassado. Não procurou diferenciar o projeto marxiano de emancipação e as
119
discrepâncias dos modelos do socialismo real. Tratou estes países como se fossem a
consubstanciação de tudo aquilo que Marx falara, mesmo que ali não houvesse o
desenvolvimento das forças produtivas no sentido de libertar o homem do trabalho
desrealizador. Pôde ver o taylorismo empregado com as roupagens stakhanovistas
da ideologia do trabalho e simplesmente comparou o socialismo como uma
“ideologia do formigueiro”, sem avaliar se de fato aquilo tudo era a forma socialista
teorizada por Marx e Engels. E, uma vez que pôde ver estas técnicas medíocres dos
dois lados da geografia do século XX, — “ocidente” capitalista e “oriente” socialista
— não foi difícil para ele chegar à conclusão de que as técnicas estavam amarradas
ao capital e não possibilitariam uma ruptura com o processo de alienação
engendrado pelo capitalismo. Ainda pior, o ethos daquela sociedade que conseguiu
em grande parte vencer a dominação religiosa, assemelhar-se-ia ainda mais à ascese
puritana e sua realização numa prática cotidiana desencantada, como dissera
outrora Weber sobre o protestantismo. Daí a grande devoção e entrega dos
stakhanovistas à causa da produtividade na URSS. Não é a toa que Gorz por várias
vezes remete à esta analogia weberiana da religião Cf. (GORZ, 1987, p. 19) e
(GORZ, 2003, p. 37). Na verdade, o próprio Weber já abria um precedente de
análise pela idéia de uma racionalidade insuperável no caminho da racionalização,
inclusive uma racionalidade consubstanciada na própria máquina:
[...] Quando o ascetismo foi levado para fora dos mosteiros e transferido
para a vida profissional, passando a influenciar a moralidade secular, fê-lo
contribuindo poderosamente para a formação da moderna ordem
econômica e técnica ligada à produção em série através da máquina, que
atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo
indivíduo nascido sob esse sistema [...] (WEBER, 1999, p. 130-1).
Esta citação mostra de forma clara um liame muito mais forte entre
Weber e os críticos das técnicas capitalistas do que gostam ou possam admitir os
teóricos de Frankfurt ou mesmo André Gorz.
Retornando ao nosso fio de análise, Gorz não procurou ver na
automação a destruição dos métodos tayloristas ou stakhanovistas. Não procurou
ver nos escritos de Marx seu caminho central de libertação num trabalho altamente
cientificizado, como veremos logo à frente. Ao contrário, preferiu adotar uma
nostalgia passadista fundada no trabalho artesanal e denunciar a automação como
mais um obstáculo para se atingir uma realização humana no trabalho social. Quem
já nos esclarece sobre este papel da automação na ruptura com o taylorismo e o
stakhanovismo é Carlos Astrada, ao dizer que
Com as conquistas da automatização e da cibernética em todos os
domínios do trabalho, a relação do homem com a máquina modificou-se
essencialmente nos aspectos quantitativo e qualitativo. Já não cabe falar de
120
56
O termo é de Benedito Rodrigues de Moraes Neto e pode ser compreendido em (MORAES NETO,
2003).
121
tentar acusar a automação o que aparece é o que se segue nas palavras de Josué
Pereira da Silva:
Ao chamar a atenção para as conseqüências dessa revolução tecnológica,
ele [Gorz] afirma que em fábricas totalmente automatizadas a
quantidade de trabalho requerida para produzir tende a zero (grifo
nosso) (SILVA, 2002, p. 158).
Reconsiderando o que antes fora dito por Moraes Neto, podemos ver
que a crítica também se dirige aos sistemas automáticos. Uma crítica inclusive de
extrema coerência, afinal culpa-se com acerto o fato de que a automação é
responsável pela tendência da redução do trabalho a zero. Porém, a questão que
fica é se isto de fato “solapa” as bases da emancipação humana ou se, devido às já
comentadas “travessuras do espírito”, conflui coincidentemente com as “previsões”
de Marx sobre o caminho da libertação humana através da auto-atividade tornada
possível graças a esta mudança quantitativa e qualitativa — quantitativa devido à
extrema redução do trabalho necessário e qualitativa devido ao novo patamar de
qualificação exigido para gerir processos altamente cientificizados. Aliás, se
aplicarmos aqui a idéia dos processos genuinamente dialéticos, talvez possamos
afirmar que seria, dentre outras coisas, justamente desta quantidade reduzida de
trabalho que se chegaria à nova qualidade. Do modo como vemos, também não
haveria um empecilho à autonomia, uma vez que o indivíduo estaria desde então
livre para escolher e se desenvolver na atividade que melhor lhe aprouvesse.
No entanto, sabemos que esta autonomia é diferente daquela
apregoada por André Gorz, que vê, na verdade, a autonomia do mestre-artesão e
da autodeterminação do trabalho manual. Claro que necessariamente não se está
falando do artesão das corporações de ofício, mas conceitualmente trata-se da
mesma coisa. Afinal, o poder operário declina assim que o capital subsume o
trabalho às suas determinações no início do modo de produção especificamente
capitalista. Mas enquanto Gorz lamenta esta perda, vejamos o que nos diz Marx na
Miséria da Filosofia ao falar sobre a oficina automática.
[...] nela o trabalho perde qualquer caráter de especialidade. Mas desde
que cesse qualquer desenvolvimento especial, a necessidade de
universalidade, a tendência para um desenvolvimento integral do indivíduo
começa a fazer-se sentir. A oficina automática faz desaparecer as espécies
e o idiotismo da profissão.
O sr. Proudhon, não tendo sequer compreendido este único aspecto
revolucionário da oficina automática, dá um passo atrás, e propõe ao
operário que faça não apenas a duodécima parte de um alfinete, mas
sucessivamente todas as doze partes. O operário chegaria assim à ciência e
à consciência do alfinete. [...].
Resumindo, o sr. Proudhon não superou o ideal do pequeno-burguês. E
para realizar esse ideal, não imagina nada melhor do que fazer-nos voltar
123
Referência bibliográfica:
BEDEIAN, Arthur G.; PHILLIPS, Carl R.. “Scientific management and Stakhanovism
in the Soviet Union: a historical perspective”. In: International journal of social
economics. Vol. 17, Issue 10, pp. 28-35, 1990.
FAUSTO, Ruy. “A ‘pós-grande indústria’ nos Grundrisse (e para além deles)”. In:
Lua Nova. São Paulo, n. 19, pp. 47-67, novembro 1989.
FORD, Henry. Minha vida e minha obra. Rio de Janeiro: São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1926.
FREDERICO, Celso. O jovem Marx: as origens da ontologia do ser social. São Paulo:
Cortez Editora, 1995.
126
GORZ, André et al.. Crítica da divisão do trabalho. 3a edição. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
a
HARVEY, David. Condição pós-moderna. 10 edição. São Paulo: Edições Loyola,
2001.
HOBSBAWM, Eric J.. A era dos extremos: o breve século XX : 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
LENIN, Vladimir Ilich. “Política”. In: FERNANDES, Florestan (org.). Coleção Grande
Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1978.
__________. “Primeira versão do artigo ‘As tarefas imediatas do poder soviético’”. In:
BERTELLI, Antônio Roberto. Estado, ditadura do proletariado e poder soviético. Belo
Horizonte: Oficina de livros, 1988a.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
127
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: volume 1. 21a edição.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
PIRENNE, Henri. História econômica e social da idade média. 4a edição. São Paulo:
Editora Mestre Jou, 1968.
REIS FILHO, Daniel Aarão. As Revoluções Russas e o socialismo soviético. São Paulo:
Editora UNESP, 2003. (Coleção Revoluções do século XX / direção de Emília Viotti
da Costa).
SILVA, Josué Pereira da. André Gorz: trabalho e política. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2002.
__________. “O ‘Adeus ao Proletariado’ de Gorz, vinte anos depois”. In: Revista Lua
Nova, São Paulo, n. 48, pp. 161-174, 1999.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas.
(coleção Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1985.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 13a edição. São Paulo:
Pioneira, 1999.
WOMACK, James P.; JONES, Daniel T.; ROOS, Daniel; A máquina que mudou o
mundo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.