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Capitulo 13 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 1 INTRODUCAO Nos paises dotados de Constituigdes escritas do tipo rigidas, a alteracao do texto constitucional exige um procedimento especial, estabelecido pelo proprio constituinte origindrio, mais dificil do que o exigido para a produgao do direito ordinario (subconstitucional), A primeira conseqiéncia — sobremaneira relevante — dessa exigéncia de formalidades especiais para a reforma da Carta Politica € que nos ordena- mentos de Constituigdo rigida vigora o principio da supremacia formal da Constituigao. Vale dizer, nesses sistemas juridicos que adotam Constituigao do tipo rigida, as normas elaboradas pelo poder constituinte originario sao colocadas acima de todas as outras manifestagdes de direito. Para que se compreenda com clareza essa decorréncia da rigidez consti- tucional é suficiente notar que, nos sistemas juridicos de Constituigdo flexivel, a inexisténcia de diferenciagao entre os procedimentos de elaboracao das leis ordinarias e de modificagao das normas constitucionais faz com que toda producao normativa juridica tenha 0 mesmo status formal, ou seja, as leis novas derrogam ou revogam todas as normas anteriores com elas incompa- tiveis, mesmo que estas sejam normas constitucionais.' 1 Constituigao fiexivel é aquela cujos dispositivos podem ser alterados pelos mesmos proce- dimentos exigidos para a elaboracao das leis ordinarias, ou seja, ndo existe um processo legislativo diferenciado, mais laborioso, para a modificago do texto constitucional. 6a8 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina Assim, em um sistema de constituigao flexivel — o da Inglaterra, por exemplo — descabe cogitar de impugnagio de inconstitucionalidade, sendo o parlamento poder legislativo e constituinte ao mesmo tempo. As decisdes do parlamento nao podem ser de modo algum atacadas perante os tribunais; somente os atos praticados em decorréncia de ato do parlamento é que po- dem ser examinados pelo Judicidrio, a fim de se verificar se nao excederam os poderes conferidos Esse ponto constitui a segunda conseqiiéncia importante da rigidez constitucional (¢ mais diretamente do principio da supremacia da Constitui- 40): somente nos ordenamentos de Constituigdo escrita e rigida é possivel a realizagao do controle de constitucionalidade das leis da forma como o conhecemos e estudamos. Unicamente nesses sistemas juridicos podemos falar, propriamente, em normas infraconstitucionais que, como tais, devem respeitar a Constituigao. Significa dizer que para uma norma ter validade dentro desses sistemas ha que ser produzida em concordancia com os ditames da Constituigio, que representa seu fundamento de validade. A Constitui¢ao situa-se no vértice do sistema juridico do Estado, de modo que as normas de grau inferior somente valerdo se forem com ela compativeis. Dessarte, se a Constituigdo é do tipo rigida, ha disting&o hierarquica entre ela e as demais normas do ordenamento juridico, estando ela em posigio de superioridade relativamente a estas (que sdo, por isso, ditas infracons- titucionais ou subconstitucionais). A Constituigdo passa a ser 0 pardmetro para a elaboragao de todos os demais atos normativos estatais, devendo estes respeitar os principios e regras nela tragados e o proprio processo constitucionalmente previsto para sua elaboragdo, sob pena de incorrer-se em insanavel vicio de inconstitucionalidade. Havendo confronto entre norma ordinaria e texto constitucional, tanto do ponto de vista formal (respeito ao processo legislativo) quanto do material (compatibilidade com o contetido das normas constitucionais), devera ser declarada a nulidade da norma inferior, em respeito 4 supremacia da Constituigdo.” Ao mesmo tempo, para que se possa falar, efetivamente, em Estado de Direito, & necessario que exista pelo menos um 6rgao estatal independente do 6rgao encarregado da produgdo normativa, ao qual a propria Constituigao atribua competéncia para verificacdo da conformidade das normas ordinarias com seus principios ¢ regras. Essa é outra decorréncia relevante do principio da supremacia constitucional: a necessidade de separacao de poderes. Conforme esclarece 0 Professor Alexandre de Moraes: “A idéia de intersec¢ao entre con- trole de constitucionalidade e constituigdes rigidas é tamanha que o Estado onde inexistir © controle, a Constituigao sera flexivel, por mais que a mesma se denomine rigida, pois 0 Poder Constituinte ilimitado estaré em maos do legislador ordindrio.” Cap. 13 » CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 689 Para compreensao dessa assertiva, basta constatar que em um Estado no qual todas as fung6es (poderes) estejam concentradas nas maos de um déspota, no existe qualquer possibilidade de que um provimento deste venha a ser declarado ilegitimo, contrario ao direito. Simplesmente, nao existira nenhum 6rgdo com poder para realizar tal verificacao. Dessarte, para que se tenha um efetivo sistema de controle de constitu- cionalidade dos comportamentos, leis e atos, normativos ou concretos, faz-se insofismavel a necessidade de que se determine quem é competente para analisar e decidir se houve ou nao ofensa 4 Constituigao, como também qual © processo que deve ser utilizado para se anular uma conduta ou ato incons- titucional. E a prépria Constituigao que estabelece os érgaos encarregados de exercer tais competéncias ¢ procedimentos especiais, que variam de um regime constitucional para outro e que consubstanciam o que denominamos controle de constitucionalidade. Pelo até aqui exposto, podemos afirmar que so dois os pressupostos para © controle de constitucionalidade: (a) a existéncia de uma Constituigao do tipo rigida; (b) a previsdo constitucional de um mecanismo de fiscalizagao da validade das leis. E ainda relevante destacar que ao mesmo tempo em que uma Constituigdo do tipo rigida é pressuposto da existéncia do controle de constitucionalidade, nao € menos verdade que esse mesmo controle é pressuposto e garantia de uma Constituiga0 rigida. Isso porque, caso ndo haja érgio com a funcdio de exercer o controle de constitucionalidade, a Constituigdo ficara sem meios de fazer valer a sua supremacia em face de condutas afrontosas ao seu texto. Sintetizemos essas breves consideragdes sobre controle de constitucio- nalidade: a) a nogdo contemporanea de controle de constitucionalidade das leis tem como pressuposto a existéncia de uma Constituigao do tipo rigida; b) a rigidez da Constituigao tem como conseqiiéncia imediata o principio da supremacia formal da Constituigao; ©) 0 principio da supremacia formal da Constituigaio exige que todas as demais normas do ordenamento juridico estejam de acordo com o texto constitu- cional; d) aquelas normas que nao estiverem de acordo com a Constituigao serio in- vilidas, inconstitucionais e deverio, por isso, ser retiradas do ordenamento juridico; e) ha necessidade, entio, de que a Constituigdo outorgue competéncia para que algum érgio (ou érgaos), independente do drgio encarregado da produgao normativa, fiscalize se a norma inferior esté (ou nao) contrariando o seu 690 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino texto, para o fim de retird-la do mundo juridico e restabelecer a harmonia do ordenamento; f) sempre que o drgdo competente realizar esse confronto entre a lei e a Constituigéo, estara ele efetivando 0 denominado “controle de constitucio- nalidade”. No plano axiolégico, podemos situar 0 controle de constitucionalidade das leis como, simultaneamente, base e coroldrio: (a) de um Estado Democratico de Direito; (b) do principio da separagdo de poderes; (c) da garantia maior do individuo frente ao Estado, na proteg’o de seus direitos fundamentais; (d) da garantia da rigidez e supremacia da Constituigao. LMF N r™ RIGIDEZ PRINCIPIO DA INCONSTITUCIO- NECESSIDADE DO DA SUPREMACIA DA. NALIDADES DAS. CONTRE DE CONS-| CONSTITUIGAO CONSTITUIGAO LEIS TITUCIONALIDADE O estudo do controle de constitucionalidade, portanto, implica perquirir, essencialmente: (i) quais érgos do nosso Estado tém competéncia para de- clarar a inconstitucionalidade das leis, atos e condutas; (ii) em que espécies de procedimentos as normas e condutas poderao ser declaradas inconstitucio- nais; (iii) quais os efeitos da declaragao da inconstitucionalidade da norma ou comportamento em desacordo com a Constituigao. 2. PRESUNGAO DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS Em um Estado Democratico de Direito, como 0 nosso, a lei desempenha fungdo singular, visto que sé ela pode impor ao individuo a obrigagao de fazer ou deixar de fazer alguma coisa (CF, art. 5.°, II). Enfim, somente as espécies normativas primdrias integrantes do ordenamento juridico dispdem do poder de impor obrigagées, de exigir condutas positivas e negativas e de estabelecer restrigdes a direitos dos individuos. Ademais, se, de um lado, temos que somente a lei pode obrigar o indi- viduo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, também € certo que todos os 6rgios ¢ entidades do Estado, inclusive as pessoas que exercem por delegagao parcela de atribuigdes do Poder Publico, tém que pautar as sua condutas, comissivas ou omissivas, pelo disposto na lei, sob pena de desrespeito ao postulado da legalidade, alicerce maior de um Estado de Direito. Cap. 13» CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 691 Nessa esteira — submissdo de todos aos comandos da lei —, desenvolveram- se os principios democratico e republicano, que, entre outras caracteristicas, outorgam ao povo o poder de criar as regras juridicas do Estado. Da conju- gagio desses dois postulados, temos que todo o poder do Estado emana do préprio povo, que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes eleitos (CF, art. 1.°, paragrafo unico). Idealmente, portanto, é certo afirmar que em um Estado democratico e republicano, como o nosso, 0 povo tem exatamente as leis que deseja, pois sio elaboradas em seu nome, pelos seus representantes, para tanto eleitos. Por esse motivo — elaboragéo normativa segundo a vontade do povo -, e em prol do postulado da seguranga juridica, tem-se que as leis ¢ os atos normativos editados pelo Poder Publico sao protegidos pelo principio da presungao de constitucionalidade das leis (ou presungdo de legitimidade das leis). Decorréncia desse principio, temos que as leis e os atos normativos estatais deverao ser considerados constitucionais, validos, legitimos até que venham a ser formalmente declarados inconstitucionais por um 6rgaéo competente para desempenhar esse mister. Enquanto nado formalmente reconhecidos como in- constitucionais, deverao ser cumpridos, presumindo-se que o legislador agiu em plena sintonia com a Constituigao — e com a vontade do povo, que lhe outorgou essa nobre competéncia. Resulta claro, portanto, que o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis é medida excepcional, que somente podera ser proclamada por um 6rgao que disponha de competéncia constitucional para tanto — e, ainda assim, na vigéncia da atual Carta Magna, com a devida motivagao (CF, art. 93, IX). Ademais, como corolario da excepcionalidade da declaragao de nulidade da lei, ela deve ser proferida, pelo drgio competente, somente em tiltima hipdtese, ou seja, sempre que se puder conferir a uma norma impugnada uma interpretagdo que a compatibilize com 0 texto constitucional deve 0 érgao de controle da constitucionalidade determinar a adog&o dessa interpretacao, mantendo a norma no mundo juridico. 3. CONCEITO E ESPECIES DE INCONSTITUCIONALIDADES Partindo das consideragées anteriormente expendidas — a rigidez da ori- gem ao principio da supremacia formal, que requer que todas as situages juridicas se conformem com os preceitos da Constituigao — chegamos a no de inconstitucionalidade, a qual resulta do conflito de um comportamento, de uma norma ou de um ato com a Constituigao. 692 DIREITO CONSTITUGIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Inconstitucional é, pois, a agéo ou omissao que ofende, no todo ou em parte, a Constituigao. Se a lei ordinaria, a lei complementar, o estatuto privado, © contrato, 0 ato administrativo etc. nado se conformarem com a Constituigao, nao devem produzir efeitos. Ao contrario, devem ser fulminados, por incons- titucionais, com base no principio da supremacia constitucional. Adotaremos aqui um conceito restrito de inconstitucionalidade, dele ex- cluindo os comportamentos e atos de particulares que contrariem a Constitui- ao. Dessarte, definiremos inconstitucionalidade como qualquer manifestagao do Poder Publico (ou de quem exerga, por delegagao, atribuigdes publicas), comissiva ou omissiva, em desrespeito 4 Carta da Reptblica.* Com efeito, se a Constituigaéo representa o fundamento de validade de toda e qualquer manifestagao dos érgaos constituidos do Estado, o desres- peito aos seus termos implica nulidade do ato ou conduta destoantes de seus comandos. Nenhum comportamento estatal podera afrontar os principios e regras da Constituigdo, estejam esses expressos ou implicitos em seu texto, Deve-se anotar, entretanto, que esto fora da possibilidade de controle de constitucionalidade as normas constitucionais originarias, 0 texto origindrio da Constituigao de 1988.4 No Brasil, tanto a doutrina quanto a jurisprudéncia do Supremo Tribunal Federal refutam a possibilidade de haver inconstitucionalidade de normas constitucionais origindrias, Entende-se que nao ha normas constitucionais origindrias “superiores” ¢ “inferiores”; a Constituigao ¢ um todo organico (principio da unidade da Constituigdo) e todas as normas origindrias de seu texto tém igual dignidade, sem que tenha qualquer influéncia, para efeito de controle de constitucionalidade, a distingao doutrindria ente normas formal € materialmente constitucionais e normas so formalmente constitucionais. Ademais, a interdigao de que se reconhegam no texto originario da Carta da Republica “normas constitucionais inconstitucionais” decorre da absoluta auséncia de competéncia do Supremo Tribunal Federal, bem como de qual- quer outro érgdo constituido do Pais, para controlar a obra do constituinte origindrio. A matéria ja foi percucientemente analisada no julgamento da ADI 815-DF (28.03.1996). Nela, 0 Ministro Moreira Alves, relator, em seu voto 3 Essa restrigao deve-se ao fato de que o controle de constitucionalidade destina-se a fiscali- zacao dos atos emanados do Poder Publico; os atos tipicamente privados que desrespeitam a Constituigao sdo também passiveis de serem impugnados, mas por mecanismos distintos, que nao se enquadram, estritamente, no conceito de fiscalizagéo da constitucionalidade, + Atese, ndo adotada no Brasil, de que hé hierarquia entre normas constitucionais origi- ndrias, 0 que, teoricamente, possibilitaria a existéncia de normas constitucionais origindrias inconstitucionais, 6 defendida pela corrente doutrinaria liderada pelo constitucionalista Otto Bachof. Cap. 13 + CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 693, condutor, deixa claro que a andlise da validade de normas constitucionais origindrias nao consubstancia, na verdade, questéo de constitucionalidade, mas de legitimidade do constituinte origindrio e a aferigao dessa legiti- midade escapa inteiramente a competéncia do STF (e de qualquer outro érgao do Pais). Salientou, também, que a tese da inconstitucionalidade de normas consti- tucionais é patentemente incompativel com o sistema de Constituigao rigida, no qual deve ser desprezada a diferencia¢do doutrindria entre normas for- malmente constitucionais ¢ normas materialmente constitucionais, mormente em tema de controle de constitucionalidade. Ainda, deixou claro 0 eminente Ministro que a alega¢ao segundo a qual as normas constitucionais designadas como cldusulas pétreas (CF, art. 60, § 4°) teriam hierarquia superior 4 das demais normas constitucionais nao encontra respaldo em nosso ordenamento, porque a protegao da clausula pétrea representa, té0-somente, um limite a atuagao do poder constituinte de reforma, néo um parametro de aferigao da validade de normas postas pelo constituinte origindrio. Por fim, também nao esta sujeito a aferic&o de constitucionalidade o direito pré-constitucional, em face da Constituigéo superveniente. Nesses casos, de fiscalizag&éo de norma pré-constitucional ante Constituig¢ao a ela posterior, o Supremo Tribunal Federal entende que nao cabe juizo de incons- titucionalidade, mas, sim, de recep¢4o ou nado-recepgao (isto 6, revogagao) da norma pré-constitucional pela Constituigdo atual. Por outras palavras, nao se afere a constitucionalidade do direito pré-constitucional em face da Constituic&o vigente, porque a matéria é considerada pertinente ao campo do direito intertemporal: quando a lei anterior 4 Constituigao é materialmente compativel com ela, é recepcionada; quando ha conflito entre 0 contetido da lei anterior 4 Constituigdo e 0 seu texto, a Carta Politica nao a recepciona, isto é, revoga a lei pré-constitucional. Se uma questo acerca da recep¢’io, ou nao, de direito pré-constitucional chegar ao Supremo Tribunal Federal, a decisao proferida, caso a Corte entenda que a lei é materialmente incompativel com a Constituigao a ela superveniente, declarara, simplesmente, que a lei foi revogada pela Constituigéo de 1988. Nao se trata, portanto, de uma deciso que declare a lei inconstitucional. 3.1. Inconstitucionalidade por acao e por omissao A inconstitucionalidade poder resultar de uma ago ou de uma omissao do Poder Publico, dando origem as denominadas inconstitucionalidades por agdo (ou positivas) ou por omissao (ou negativas). 694 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Ocorre a inconstitucionalidade por agao quando o desrespeito 4 Consti- tuicdo resulta de uma conduta comissiva, positiva, praticada por algum érgdo estatal. E 0 caso, e.g., da claboragao pelo legislador ordinario de uma lei em desacordo com a Constituigao. Temos a inconstitucionalidade por omissao quando a aftonta a Constituigao resulta de uma omissao do legislador, em face de um preceito constitucio- nal que determine seja elaborada norma regulamentando suas disposigées. Constitui, portanto, uma conduta omissiva frente a uma obrigacao de legislar, imposta ao Poder Publico pela prépria Constituigao. A inconstitucionalidade por conduta omissiva ocorre diante de norma constitucional de eficacia limitada, em que a Lei Maior exige do legisla- dor ordindrio a edig¢do de uma norma regulamentadora, para tomar viavel 0 exercicio de determinado direito nela assegurado, ¢ o érgio legislativo ordinario permanece inerte, obstando 0 efetivo exercicio daquele direito. Ao desrespeitar uma determinagao constitucional de legislar, obstaculizando o exercicio de um direito dependente de regulamentagao, estaré o legislador ordinario desrespeitando a supremacia constitucional, dando azo a declaragao da inconstitucionalidade de sua inércia. Distingue a doutrina a inconstitucionalidade omissiva total da omissio parcial. A omissao é total quando 0 Poder Publico, obrigado a legislar por forga de determinagdo constitucional, nao elabora a norma requerida, permitindo a existéncia de uma indesejavel lacuna. E 0 que ocorre, por exemplo, com 0 direito de greve dos servidores publicos civis, que, malgrado o imperativo constitucional (art. 37, VII), n&o foi até hoje, quase duas décadas depois de promulgada a Constituigaéo, regulamentado pelo legislador ordinario. A omissao é parcial quando o legislador produz a norma, mas o faz de modo insatisfatério, insuficiente para atender aos comandos da norma constitucional de regéncia. E 0 caso, por exemplo, da assim denominada lei excludente de beneficio incompativel com o principio da igualdade, que disciplina determinado direito constitucionalmente previsto, mas exclui de sua abrangéncia pessoas que deveriam ter sido alcangadas. Vale dizer, a lei requerida constitucionalmente ¢ produzida pelo legislador ordinario, mas de forma imperfeita, porque os seus comandos nao atingem todas as pessoas que deveriam ter sido por ela acobertadas, afrontando o principio da igualdade. Seria 0 caso, por exemplo, de a Constituigéo determinar a regulamentagao e o conseqiiente pagamento da remuneragdo de trés ca- tegorias funcionais na forma de subsidio e o Poder Publico efetivar essa regulamentagdo apenas para duas das categorias, nao abrangendo a terceira, que restaria, assim, indevidamente excluida do beneficio (direito 4 remune- ragdo mediante subsidio). Cap. 13» CONTROLE DE CONSTITUGIONALIDADE 695 3.2. Inconstitucionalidade material e formal A inconstitucionalidade pode resultar da desconformidade do conteudo do ato ou do seu processo de elaboracao com alguma regra ou principio da Constituigado. Na primeira hipdtese — desconformidade de contetido — teremos a inconstitucionalidade material, enquanto na segunda — desconformidade ligada ao processo de elaboragao da norma -, a inconstitucionalidade formal. A inconstitucionalidade material ocorre, portanto, quando o conteudo da lei contraria a Constituigdo. O processo legislative (procedimento cons- titucionalmente exigido para a elaboragao da lei) pode ter sido fielmente obedecido, mas a matéria tratada é incompativel com a Carta Politica. Seria © caso, por exemplo, de uma lei que introduzisse no Brasil a pena de morte em circunsténcias normais, que padeceria de inconstitucionalidade material, por afrontar o art. 5.°, XLVII, da Lei Maior. A inconstitucionalidade formal ocorre quando ha um desrespeito 4 Cons- tituig&o no tocante ao processo de elaboragao da norma, podendo alcangar tanto 0 requisito competéncia, quanto o procedimento legislativo em si. O conteido da norma pode ser plenamente compativel com a Carta Magna, mas alguma formalidade exigida pela Constituigao, no tocante ao tramite legislativo ou as regras de competéncia, foi desobedecida. Se a inconstitucionalidade formal resulta da inobservancia das regras constitucionais de competéncia para a produgdo da norma, diz-se que a inconstitucionalidade é do tipo orginica. Assim, padecera de inconstitucio- nalidade formal orgénica uma lei estadual que disponha sobre direito pro- cessual, haja vista se tratar de matéria da competéncia legislativa privativa da Unido (art. 22, I). A inconstitucionalidade formal poderd decorrer, também, da inobservancia das regras constitucionais do processo legislativo, do procedimento legislativo em si, em qualquer de seus aspectos — subjetivos ou objetivos. Os requisitos subjetivos dizem respeito 4 fase introdutéria do processo legislativo, em que é desencadeado, por meio da iniciativa, 0 procedimento de elaboracdo das espécies normativas. Qualquer espécie normativa claborada a partir de iniciativa viciada, isto ¢, a partir de projeto de lei apresentado por quem nao detinha competéncia, padecera de inconstitucionalidade formal. Seria 0 caso, por exemplo, de lei resultante de iniciativa parlamentar que dispusesse sobre regime juridico dos servidores piblicos federais do Poder Executivo, haja vista se tratar de matéria cuja iniciativa é constitucionalmente teservada ao Presidente da Republica (art. 61, § 1.°, I, “e”). A inconstitucionalidade formal decorrente da violagao dos requisitos ob- jetivos do processo legislativo ocorre sempre que quaisquer outros aspectos referentes ao procedimento de elaboragao das leis, nao ligados a iniciativa, 696 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino so desrespeitados. Assim, 0 vicio formal podera advir da inobservancia das regras constitucionais referentes as fases constitutiva e complementar do processo legislativo, que abrangem a discuss&o e votagao, a sangdo, o veto, a rejeicao do veto, a promulgagdo etc. Por exemplo, uma lei complementar que tenha sido aprovada por maioria simples (ou relativa) padecera de incons- titucionalidade formal, por desobediéncia ao requisito objetivo fixado no art. 69 da Constituigao Federal, que impde a aprovacao dessa espécie normativa por maioria absoluta. Da mesma forma, se uma emenda a Constituigao nao & aprovada em dois turnos em cada uma das Casas do Congresso Nacional, por trés quintos dos respectivos membros, padecera de vicio formal, seja qual for o seu contetido. Por fim, lembramos que a desobediéncia aos pressupostos constitucio- nais que determinam ¢ condicionam o exercicio da competéncia legislativa também implica a inconstitucionalidade formal da norma expedida. Assim, se a Constituigao outorga competéncia 4 Unido para disciplinar determinada matéria, mas impde que essa disciplina se dé por meio de lei complementar, a expedigdo de uma lei ordinaria sobre o assunto padecerd de inconstitu- cionalidade formal, porquanto norma ordindria ndo pode veicular matéria constitucionalmente reservada 4 lei complementar. Da mesma forma, haverd inconstitucionalidade formal se o Presidente da Republica adotar medida provisoria sem a presenga de urgéncia e relevancia, haja vista que a Cons- tituigo condiciona a expedigao dessa espécie normativa ao atendimento de tais pressupostos. 3. Inconstitucionalidade total e parcial A inconstitucionalidade pode atingir todo o ato normativo (total) ou apenas parte dele (parcial). Evidentemente, a regra é 0 reconhecimento da inconstitucionalidade de apenas parte da lei ou ato normativo. Afinal, a aferigo da validade da nor- ma é feita dispositivo por dispositivo, matéria por matéria, ¢ nao em bloco, globalmente. Ha situagdes, porém, que impdem ao Poder Judiciério a declaragdo da inconstitucionalidade total da norma impugnada. Seria 0 caso, por exemplo, da impugnagio de uma lei resultante de iniciativa viciada (toda a matéria disciplinada na norma era de iniciativa privativa do Presidente da Republica, mas 0 projeto de lei foi apresentado por parlamentar) ou, ainda, de uma lei de conteudo materialmente complementar que tenha sido aprovada por maioria simples de votos. No Brasil, a declaragéo da inconstitucionalidade parcial pelo Poder Judiciario pode recair sobre fragao de artigo, paragrafo, inciso ou alinea, Cap. 13 * CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 697 até mesmo sobre uma unica palavra de um desses dispositivos da lei ou ato normativo. A regra constitucional que restringe 0 exame da constitucio- nalidade do projeto de lei ao texto integral de artigo, paragrafo, inciso ou alinea (art. 66, § 2.°) diz respeito ao chamado “veto juridico” do chefe do Executivo, nao alcangando a declaragao de inconstitucionalidade proferida pelo Poder Judiciario. Entretanto, a declaragao da inconstitucionalidade parcial pelo Poder Judi- ciario nado podera subverter o intuito da lei, mudando o seu sentido e alcance, sob pena de ofensa ao principio da separagdo dos poderes, que impede a atuagaio do Poder Judicidrio como legislador positivo. Assim, se a declaragaio da inconstitucionalidade parcial implicar mudanga do sentido e alcance da norma impugnada, o Poder Judiciario deverd declarar a inconstitucionalidade de toda a norma (inconstitucionalidade total), sob pena de atuar (indevida- mente) como auténtico legislador positivo, criando norma nao pretendida pelo legislador, em ofensa ao postulado da separagao dos poderes. Ademais, de acordo com a jurisprudéncia do Supremo Tribunal Federal, a declaragao da inconstitucionalidade parcial de norma sé é admissivel no controle abstrato quando se pode presumir que o restante do dispositivo, nao impugnado, seria editado independentemente da parte supostamente incons- titucional (doutrina da “indivisibilidade das leis”). Assim, se com a impug- nagao de parte do dispositivo restar patente que a parte ndo impugnada (e que, portanto, continuaria a viger) nao teria sido editada isoladamente, sera inviavel a declaragdo de inconstitucionalidade parcial.‘ Por fim, é interessante mencionarmos que ha situagdes em que o Tribunal Constitucional constata a existéncia de vicio no ato normativo impugnado, mas, apesar disso, nao declara sua inconstitucionalidade, porque verifica que a retirada do ato viciado do mundo juridico acabaria por resultar em uma lesio ao ordenamento constitucional maior do que a lesao decorrente de sua manuteng¢ado. Sao as situagdes em que o STF deixa de declarar a nulidade do ato para evitar o “agravamento do estado de inconstitucionalidade”. Imagine-se, por exemplo, que uma lei estadual estipulasse um adicional & remuneragao dos servidores ptiblicos, a cada cinco anos, correspondente a 7,5% de seu vencimento. Suponha-se que 0 Governador tenha enviado um projeto de lei A Assembléia Legislativa reduzindo esse percentual para 5%, mas que, em sua tramitagao, esse projeto tenha sido objeto de uma emenda parlamentar aumentando o percentual para 6%, de sorte que a lei resultante tenha sido aprovada ¢ promulgada prevendo esse percentual de 6% Nesse caso, se a norma fosse impugnada perante o STF sob a alegacdo de que é inconstitucional, em leis de iniciativa privativa do chefe do Execu- ® ADIMC 2.645/TO, rel. Min. Sepiilveda Pertence, 11.11.2004 698 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino tivo, o dispositivo resultante de emenda parlamentar que acarrete aumento de despesa (comparando com a despesa que decorreria do que estava previsto no projeto de lei apresentado pelo Governador), certamente a Corte reconheceria a inconstitucionalidade, mas deixaria de pronuncid-la, porque a supressio do dispositivo aprovado (adicional de 6%) resultaria em aumento de despesa ainda maior, uma vez que retornaria o percentual previsto na lei anterior (7,5%), que foi revogada pela lei impugnada, frustrando, de mancira ainda mais grave, o dispositivo constitucional que proibe emenda parlamentar que aumente despesa em projeto de lei de iniciativa privativa do chefe do Execu- tivo. Assim, para evitar 0 agravamento do estado de inconstitucionalidade, o Tribunal deixaria de declarar a inconstitucionalidade do dispositivo da lei (adicional de 6%), mesmo reconhecendo que sua aprovacio violou regras constitucionais pertinentes ao processo legislativo.* aah Declaragao parcial de nulidade sem redugdo de texto e interpretagdo conforme a Constituigao Pertinentes ao estudo da inconstitucionalidade parcial, ha dois topicos que, em razdo de sua especial relevancia, merecem andlise separada: a “declaragdo parcial de nulidade sem redugdo de texto” e a “interpretagdo conforme a constituigao”. O Supremo Tribunal Federal recorre a técnica de declaragao parcial de nulidade sem redugao de texto quando constata a existéncia de uma regra legal inconstitucional que, em raz8o da redag&o adotada pelo legislador, nao tem como ser excluida do texto da lei sem que a supressdo acarrete um re- sultado indesejado. Assim, nem a lei, nem parte dela, é retirada do mundo juridico (nenhuma palavra é suprimida do texto da lei). Apenas a aplicagao da lei — em relagao a determinadas pessoas, ou a certos periodos — é tida por inconstitucional. Em relagao a outros grupos de pessoas, ou a periodos diversos, ela continuara plenamente valida, aplicavel. Imagine-se, por exemplo, que uma Lei “Z” estabeleca prerrogativas para uma determinada categoria de servidores publicos em um artigo, dividido em incisos, e, em outro artigo, estenda algumas das prerrogativas a outra categoria de servidores, simplesmente fazendo remissdo ao primeiro artigo. Teriamos algo assim: Art. 1.° Sa0 prerrogativas dos titulares do cargo AAA: 1) prerrogativa ° Vide, como exemplo, 0 RE 274.383/SP, rel. Min. Ellen Gracie, 29.03.2005 (Informative STF 381). Cap. 13 + CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 699 Il) prerrogativa *b’; IID) prerrogativa ‘ec’; IV) prerrogativa ‘d” Art, 2.° Aplicam-se aos titulares do cargo BBB as prerrogativas previstas nos incisos | a II do art. 1.°. Caso fosse impugnado perante o Supremo Tribunal Federal o art. 2.°, ea Corte entendesse que somente a extensao da prerrogativa “b” ao cargo BBB foi inconstitucional, nao teria como retirar essa regra do texto da lei mediante a supressdo de alguma palavra ou expressdo, porque 0 art. 2.° nao contém, em seu texto, citagdo expressa do inciso II do art. 1.°. Vale dizer, nao seria tecnicamente possivel, mediante redugao do texto do art. 2.°, obter 0 efeito desejado — retirar do cargo BBB a prerrogativa prevista no inciso II do art. 1.°. Também nao se pode suprimir o inciso II do art. 1.° porque é perfeitamente valida a atribuigao da prerrogativa “b” ao cargo AAA, Em um caso como esse, 0 Supremo Tribunal Federal poderia utilizar a técnica da declaracao parcial de inconstitucionalidade sem redugdo de texto para afastar a aplicagao do inciso II do art. 1.° ao cargo BBB, mantendo-o em relagao ao cargo AAA. O Tribunal, ao pronunciar a inconstitucionalidade, nao suprimiria nenhuma parte do texto literal, nenhuma palavra ou expresso da lei, mas afastaria a aplicagdo do inciso II do art. 1.° ao cargo BBB. O contetdo da decisdo deixaria assente que o Tribunal resolveu “declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redugao de texto, do art. 2.° da Lei ‘Z’, no que se refere 4 extensdo, ao cargo BBB, da prerrogativa prevista no inciso TI do art. 1.° da Lei *Z’””. A interpretagao conforme a Constituigéo ¢ técnica de decisdo adota- da pelo Supremo Tribunal Federal quando ocorre de uma disposigao legal comportar mais de uma interpretagado e se constata, ou que alguma dessas interpretagdes é inconstitucional, ou que somente uma das interpretagdes possiveis esté de acordo com a Constituigao. Na aplica¢ao da interpretacado conforme a Constituigdo, o Poder Judiciario atua como legislador negativo, eliminando, por serem incompativeis com a Carta, uma ou algumas possibilidades de interpretacdo. Basicamente, duas situagdes podem ocorrer: a) o STF declara que lei ¢ constitucional, desde que dada a ela determinada interpretacao (consenténea com a Constitui¢do), isto é, ficam eliminadas as outras interpretagdes que a lei possibilitaria, mas que seriam inconcilidveis com 0 texto constitucional; ou b) a Corte declara que a lei é constitucional, exceto se for adotada uma deter- minada interpretagao (conflitante com a Constituigao), ou seja, 0 aplicador 700 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino do direito podera optar por qualquer das interpretagdes que a lei possibilite, menos uma (aquela que seria incompativel com a Carta Politica) Assim, nessas decisées, o Tribunal emprega a expressaio “desde que”, reconhecendo a validade da norma “desde que interpretada de tal maneira”, ou se limita a apontar uma determinada interpretagdio que nao pode prospe- rar, deixando liberdade ao aplicador da lei para adotar qualquer das demais interpretagdes possiveis.” As técnicas declaracio parcial de nulidade sem redugdo de texto e interpretacgéo conforme a Constituigéo foram positivadas pela Lei n.° 9.868/1999, no ambito do processo e julgamento da ADI e da ADC, nos seguintes termos (art. 28, paragrafo unico): Paragrafo unico. A declaragao de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretagao conforme a Cons- tituigdio e¢ a declaragao parcial de inconstitucionalidade sem redug&o de texto, tém eficacia contra todos e efeito vinculante em relagdo aos érgios do Poder Judiciério e 4 Administragao Publica federal, estadual ou municipal. Observa-se que o texto legal menciona a interpretagdo conforme a Cons- tituigao e a declaragao parcial de inconstitucionalidade sem reducao de texto como técnicas distintas e auténomas de decisdo. Essa é também a orientacao doutrinaria dominante. Segundo essa linha de raciocinio, na declaragao parcial de inconstitu- cionalidade sem redugdo de texto, afasta-se a aplicagéo de um dispositivo legal a um grupo de pessoas ou situagdes; relativamente as demais pessoas ou situagdes, a lei se aplica sem restrigdes (nao se manda adotar uma inter- pretacdo especifica para os dispositivos legais; tampouco se veda a adogdo de alguma interpretagao). No caso da interpretagao conforme a Constitui¢ao, © Supremo Tribunal Federal ordena que seja conferida determinada interpre- tacio a dispositivo ou dispositivos de uma lei, ou proibe a adogao de uma interpretagao especifica. A lei, entretanto, desde que interpretada como esta- belecido pelo Pretério Excelso, sera aplicdvel a todas as pessoas ¢ situacdes que se enquadrem em sua hipétese normativa, ou seja, sua incidéncia serd plena — diferentemente do que ocorre quando se adota a declaragao parcial 7 No Brasil, 0 Supremo Tribunal Federal, quando adota a técnica de interpretago conforme a Constituigo, julga procedente a acao direta de inconstitucionalidade, o que equivale a declarar inconstitucionais todas as interpretagdes, mesmo que ndo possam ser expressamente enunciadas, que ndo sejam aquela (ou aquelas) que a Corte afirma ser compossivel com 0 Texto Magno. Constitucionalistas de escol, como o professor ¢ atual Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes, entendem que, nesses casos, a proniincia deveria ser pela constitucionalidade do ato normativo, vale dizer, caso se trate de ADI, a decisdo deveria ser pelo ndo acolhimento do pedido, desde que a lei seja interpretada consoante determine a Corte Maxima, Cap. 13» CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 701 de inconstitucionalidade sem redugdo de texto, porquanto esta, como visto, implica restrigdo A incidéncia da lei. Nos casos em que deva ser adotada a declaragdo parcial de inconstitucionalidade sem redugdo de texto, nio ha nenhuma interpretagaéo possivel que torne compativel com a Constituicaéo a integralidade do dispositivo objeto da declaragao; por isso, parte do dispo- sitivo, se aplicada, resultara em inconstitucionalidade, sem possibilidade de ser adotada alguma interpretagdo que a tornasse valida. Cabe ressaltar que, embora positivada apenas sua utilizagdo no ambito do controle abstrato de normas, a interpretagdo conforme a Constitui¢ao tem sido largamente utilizada pelos diversos tribunais do Pais também no ambito do controle incidental, com a unica diferenga de que, nesses casos, a inter- pretacdo dada s6 vinculara as partes do processo, como é prdprio dessa via de controle (eficacia inter partes). 3.4. Inconstitucionalidade direta e indireta A inconstitucionalidade é direta quando a desconformidade verificada da-se entre Ieis e atos normativos primarios e a Constituigdo. Enfim, sempre que a invalidade resultar do confronto direto entre norma infraconstitucional e a Constituigao estaremos diante da inconstitucionalidade direta. © caso tipico de inconstitucionalidade direta é a elaboragao de uma es- pécie normativa priméria, integrante do nosso processo legislativo (art. 59), em desrespeito a Constituigio Federal. Como essas normas retiram o seu fundamento de validade diretamente da Constituigao, eventual desrespeito — formal ou material — as regras e principios constitucionais implicara in- constitucionalidade direta. Mas, é também possivel que atos administrativos incorram no vicio de inconstitucionalidade direta, caso sejam editados em carater aut6nomo, com invasio do campo material reservado a lei. Assim, se o Presidente da Republica editar decreto de natureza auténoma para disciplinar matéria constitucionalmente reservada 4 lei, esse ato administrativo padecera de in- constitucionalidade direta. Por outro lado, a inconstitucionalidade indireta (ou reflexa), como a propria denominagao sugere, ocorre naquelas situagées em que 0 vicio veri- ficado nao decorre de violacao direta da Constituigao. Assim, se determinado decreto regulamentar, expedido para a fiel execugao da lei, extrapola os limites desta, ainda que supostamente essa extrapolagao tenha implicado, também, flagrante desrespcito a determinada norma constitucional, nao sera hipétese de inconstitucionalidade direta. Isso porque o fundamento de validade do decreto regulamentar nao é diretamente a Constitui¢éo, mas sim a lei regulamentada, em funcao da qual tenha sido expedido. Logo, eventuais conflitos entre a 702 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO - Vicente Paulo & Marcelo Alexandrine norma regulamentar secundaria (decreto) e a norma primaria regulamentada (lei), ainda que supostamente infringentes de normas constitucionais, nado constituem ofensa direta 4 Constituigao. Essa distingao é de grande relevancia para o estudo do controle de cons- titucionalidade das leis, haja vista que a jurisprudéncia do Supremo Tribunal Federal equipara a chamada inconstitucionalidade indireta ou reflexa a mera ilegalidade. Assim, para o Tribunal, o conflito entre norma secundaria (re- gulamentar) e primaria (regulamentada) é caso de mera ilegalidade, e nao de inconstitucionalidade propriamente dita. Em razio desse entendimento do Supremo Tribunal Federal, temos que a aferigdo da inconstitucionalidade indireta ou reflexa — que traduz, na realidade, caso de mera ilegalidade — foge ao objeto do controle de cons- titucionalidade. Se o fundamento de validade direto da norma secundaria (decreto, portaria, instrugao normativa etc.) nao é a Constituigéo, mas sim outra norma, infraconstitucional (lei, tratado internacional etc.), eventual conflito consistira em mera crise de legalidade, a ser resolvida mediante o simples cotejo entre tais normas.* A inconstitucionalidade indireta ou reflexa aqui estudada nao pode ser confundida com a chamada inconstitucionalidade derivada, que diz respeito a outra relacdo existente entre norma regulamentadora e lei regulamentada. Ocorre a inconstitucionalidade derivada (ou conseqiiente) quando a de- claragao da inconstitucionalidade da norma regulamentada (primaria) leva ao automatico e inevitavel reconhecimento da invalidade das normas regula- mentadoras (secundérias) que haviam sido expedidas em fungio dela. Assim, em virtude da declaragao da inconstitucionalidade da norma primaria, todas as normas secundarias que a regulamentavam também se tornam invalidas, por derivagéio, haja vista que o fundamento de validade delas, que era a norma primaria, deixa de existir. Se 0 decreto “Y” regulamentava a lei “X”, a declaragao da inconstitucionalidade desta atinge, por derivagao, a validade daquele, que deixa de produzir efeitos. 3.5. Inconstitucionalidade originaria e superveniente A inconstitucionalidade origindria é aquela que macula 0 ato no mo- mento da sua produgio, em razio de desrespeito aos principios ¢ regras da Constituigao entao vigente. ® Gonforme ligao do Ministro Carlos Velloso: O decreto regulamentar nao esta sujeito ao controle de constitucionalidade, dado que, se o decreto vai além do conteudo da lei, pratica ilegalidade e nao inconstitucionalidade. Somente na hipétese de nao existir lei que preceda © alo regulamentar 6 que poderia este ser acoimado de inconstitucional, assim sujeito a0 controle de constitucionalidade Cap. 13 » CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 703 O reconhecimento da inconstitucionalidade origindria pressupde, por- tanto, 0 confronto entre a lei ¢ a Constituigao vigente no momento da sua produgao. Por exemplo, se estivermos nos referindo 4 inconstitucionalidade originaria de uma lei produzida em 1985, certamente o confronto desta sera com a Constituigao de 1969, que vigorava quando esse diploma legal foi elaborado. ‘Ao contrario, fala-se em inconstitucionalidade superveniente quando a invalidade da norma resulta da sua incompatibilidade com texto constitucio- nal futuro, seja ele originario ou derivado (emenda constitucional). Assim, uma lei editada em 1985 tornar-se-ia supervenientemente inconstitucional em 5.10.1988, em virtude da promulgagaio de novo texto constitucional que fosse com ela incompativel. Ou, ainda, uma lei hoje editada tornar-se-ia su- pervenientemente inconstitucional com a promulgagao de futura Constituigdo (ou emenda constitucional) em sentido contrario. Em que pese a relevancia desse conhecimento, 0 fato é que, entre nds, a jurisprudéncia do Supremo Tribunal Federal nao admite a existéncia da inconstitucionalidade superveniente. Para a Corte, a superveniéncia de texto constitucional opera a simples revogagao do direito pretérito com ele ma- terialmente incompativel, ndo havendo razées para se falar em inconstitu- cionalidade superveniente; nao se trata de juizo de constitucionalidade, mas sim de mera aplicagdo de regra de direito intertemporal, segundo a qual a norma posterior opera a simples revogagao (e nao a inconstitucionalidade) do direito anterior com ela materialmente incompativel. SISTEMAS DE CONTROLE Cada ordenamento constitucional ¢ livre para outorgar a competéncia para controlar a constitucionalidade das leis ao Orgéo que entenda conveniente, de acordo com suas tradi¢ées. A depender da opgao do legislador constituinte, poderemos ter o controle judicial, 0 controle politico ou o controle misto. Se a Constituigéo outorgar a competéncia para declarar a inconstitu- cionalidade das leis ao Poder Judicidrio, teremos 0 sistema judicial ou ju- risdicional. O sistema jurisdicional nasceu nos Estados Unidos da América, primeiro Estado a reconhecer a competéncia dos juizes e tribunais do Poder Judicidrio para, nos casos concretos submetidos a sua apreciagdo, declarar a inconstitucionalidade das leis. Caso a Constituigdo outorgue a competéncia para a fiscalizagdo da vali- dade das leis a orgaio que nado integre o Poder Judiciario, teremos o sistema politico. De regra, nos Estados que adotam controle politico, a fiscalizacao 704 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino da supremacia constitucional ¢ realizada por érgdo especialmente constituido para esse fim, distinto dos demais Poderes do Estado. E 0 caso, por exemplo, da Franga, em que a fiscalizagiio da constitucionalidade é de incumbéncia do Conselho Constitucional, érgéo que se situa fora da estrutura organica dos demais Poderes. Ademais, podera também a Constituigdo outorgar a competéncia para a fiscaliza¢do de algumas normas a um orgao politico e de outras ao Poder Judi- cidrio, consubstanciando o denominado controle de constitucionalidade misto. Exemplo citado pela doutrina é a Suiga, em que as leis nacionais submetem-se a controle politico e as leis locais sao fiscalizadas pelo Poder Judiciario. A maioria das Constitui¢ées contempordneas tem adotado o sistema judicial para a fiscalizagao da validade das leis, inclusive a Constituigao da Republica Federativa do Brasil de 1988. 5. MODELOS DE CONTROLE Os ordenamentos constitucionais em geral prevéem dois modelos distintos de controle judicial de constitucionalidade: 0 controle difuso (ou jurisdigao constitucional difusa), criagdo dos Estados Unidos da América, e o controle concentrado (ou jurisdigdo concentrada), instalado inicialmente na Austria, sob a influéncia do jurista Hans Kelsen. Ocorre o controle difuso (ou aberto) quando a competéncia para fiscalizar a validade das leis ¢ outorgada a todos os componentes do Poder Judicia- rio, vale dizer, qualquer érgdo do Poder Judicidrio, juiz ou tribunal, podera declarar a inconstitucionalidade das leis. O modelo difuso de fiscalizagao da validade das leis surgiu nos Estados Unidos da América, a partir do célebre caso Marbury v. Madison, em 1803, quando a Suprema Corte Americana, sob 0 comando do Chief Justice John Marshall, firmou o entendimento de que o Poder Judiciario poderia deixar de aplicar uma lei aos casos concretos a ele submetidos, por entendé-la i stitucional. A partir de entéo, foi difundida para os mais diversos or- denamentos constitucionais a idéia de que os membros do Poder Judicidrio, juizes e tribunais, s6 devem aplicar aos casos a eles submetidos as leis que considerem compativeis com a Constituigao. Temos 0 sistema concentrado (ou reservado) quando a competéncia para realizar 0 controle de constitucionalidade outorgada somente a um 6rgio de natureza jurisdicional (ou, excepcionalmente, a um numero limitado de 6rgaos). Esse érgdo poderd exercer, simultaneamente, as atribuigdes de juris- dicdo e de controle de constitucionalidade das leis, ou, entdo, exclusivamente esta Gltima tarefa. Cap. 13» CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 705 O modelo concentrado teve sua origem na Austria, em 1920, sob a in- fluéncia do jurista Hans Kelsen. Para Kelsen, a fiscalizagéo da validade das leis representava tarefa especial, auténoma, que nao deveria ser conferida a todos os membros do Poder do Judiciario, j4 encarregados de exercerem a jurisdigao, mas somente a uma Corte Constitucional, que deveria desempe- nhar exclusivamente essa fangaio. Sob esse pensamento, foi criado o Tribunal Constitucional Austriaco, com a fungdo exclusiva de realizar o controle de constitucionalidade das leis. Na visdo de Kelsen, a fungao precipua do con- trole concentrado no seria a solugdo de casos concretos, mas sim a anulagao genérica da lei incompativel com as normas constitucionais. 6. VIAS DE ACAO As chamadas “vias de acgado” dizem respeito ao modo de impugnagao de uma lei perante o Poder Judicidrio ou, sob outra otica, indicam 0 modo em que o Poder Judicidrio exercera a fiscalizagao da validade das leis. Em sin- tese, busca-se responder a seguinte indagagao: de que forma uma lei podera ser impugnada perante o Poder Judiciario? Sto duas as vias pelas quais podera ser exercido o controle de cons- titucionalidade das leis: a via incidental (de defesa ou de excegao) ¢ a via principal (abstrata ou de agdo direta) O exercicio da via incidental da-se diante de uma controvérsia concreta, submetida a apreciacdo do Poder Judiciario, em que uma das partes requer 0 reconhecimento da inconstitucionalidade de uma lei, com o fim de afastar a sua aplicagao ao caso concreto de seu interesse. A apreciacado da constitucio- nalidade nao é 0 objeto principal do pedido, mas um incidente do processo, um pedido acessorio. Por isso, a eventual declarag&o da inconstitucionalidade é dita incidental, incidenter tantum (o provimento judicial principal sera o reconhecimento do direito pleiteado pela parte, decorrente do afastamento da lei Aquele caso levado ao juizo). Esse é o modelo norte-americano de fiscalizagdo da validade das leis, em que todos os juizes e tribunais do Poder Judiciério realizam o controle de constitucionalidade durante a apreciag&o dos casos concretos que lhes sdo apresentados, Nele, o individuo nao recorre ao Poder Judiciario com 0 objetivo principal de ver declarada a invalidade da lei, em defesa da ordem juridica. Na realidade, o impetrante da aco judicial esta interessado diretamente na defesa de determinado direito subjetivo seu, mas, como fundamento para que o juiz aprecie 0 seu pedido principal, ele argui, em pedido acessorio (incidental), a inconstitucionalidade da lei que versa sobre o assunto. Suscitado o incidente de inconstitucionalidade, o juiz estara obrigado a decidir primeiro se a lei é 706 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO - Vicente Paulo & Marcelo Alexandrine constitucional, ou ndo, para sé depois, com base nessa premissa, decidir o pedido principal, firmando o seu entendimento no caso concreto. Desse modo, 0 controle incidental pode ser exercido perante qualquer juiz ou tribunal do Poder Judiciario, em qualquer processo judicial, seja qual for a sua natureza (penal, civil etc.), sempre que alguém, na busca do reconhecimento de determinado direito concreto, suscitar um incidente de inconstitucionalidade, isto é, alegar, no curso do caso concreto, que deter- minada lei, concernente 4 matéria, ¢ inconstitucional. Essa modalidade de controle tem fundamento na premissa de que todos os casos concretos devem ser decididos de acordo com a Constitui¢ao. Pela via principal, 0 pedido do autor da ado é a propria questo de constitucionalidade do ato normativo. O autor requer, por meio de uma agao judicial especial, uma decisdo sobre a constitucionalidade, em tese, de uma lei, com o fim de resguardar a harmonia do ordenamento juridico. O provimento judicial a que se visa consiste na declara¢éo da compatibilidade, ou nao, de certa norma juridica ou conduta com as regras e principios plas- mados na Constituigao. Nessa hipétese, nao ha caso concreto; portanto, nao ha interesses subjetivos especificos a serem tutelados. Trata-se assim, como acentuam a doutrina ¢ a jurisprudéncia, de processos objetivos.” FCONCEATRADO | Somente © drg80 de cipula do Judiciario SISTEMAS DE CONCENTRADS. realiza o controle. CONTROLE cE JUDICIAL todos os érgfios do Poder Judicidrio DEUSO. realizam 0 controle. INCIDENTAL © controle é instaurado diante de uma ae controvérsia concreta, com o fim de VIAS DE afastar a aplicagao da lei ao caso. CONTROLE JUDICIAL PRINCIPAL © controle é instaurado em tese, na (abstrata) defesa do ordenamento juridico. 7 MOMENTO DO CONTROLE © controle de constitucionalidade podera ser preventivo ou repressivo. ® A expresso “proceso objetivo” refere-se as agSes do controle abstralo, nas quais néo existem, a rigor, partes, tampouco direito subjetivo a ser defendido, haja vista que, nelas, a validade da lei é discutida em tese, com o fim Unico de proteger a Constitui¢go. Ao revés, a expressdo "processo subjetivo” refere-se as agSes do controle conereto, em que as partes litigam em defesa de direito juridicamente protegido. Cap. 13 * CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 707 Ocorrerd 0 controle de constitucionalidade preventivo (a priori) quando a fiscalizagdo da validade da nerma incidir sobre o projeto, antes de a norma estar pronta e acabada. E o caso, no Brasil, do veto do Chefe do Executivo por inconstitucionalidade (veto juridico), uma vez que incide sobre projeto de lei (CF, art. 66, § 1.°) Ocorre 0 controle de constitucionalidade repressivo (sucessivo, a poste- riori) quando a fiscalizagao da validade incide sobre norma pronta e acaba- da, ja inserida no ordenamento juridico. E 0 caso, em regra, do controle de constitucionalidade judicial no nosso Pais, que pressupde a existéncia de uma norma ja elaborada, pronta e acabada, inserida no ordenamento juridico. Como se vé, por meio do controle preventivo nao é declarada a incon: titucionalidade da norma (que, na realidade, ainda nao existe!), mas, sim, evitada a produgdo de uma norma inconstitucional. Por sua vez, 0 controle de constitucionalidade repressivo tem por fim declarar a inconstitucionalidade de uma norma ja existente, visando a sua retirada do ordenamento juridico. tem por fim evitar a produgao de uma Eevee norma inconstitucional CONTROLE tem por fim retirar uma norma hee inconstitucional do ordenamento juridico. 8. HISTORICO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL O modelo de controle de constitucionalidade adotado no Brasil apresenta caracteristicas que o singularizam. Nele se conjugam os modelos difuso, oriundo do direito americano, possibilitando a todos os érgios do Poder Judiciario a realizago do controle incidental da constitucionalidade de leis e atos normativos, e concentrado, proveniente dos paises europeus continentais, em que 0 6rgao de cipula do Poder Judiciario realiza o controle abstrato da constitucionalidade de normas juridicas. Deve-se destacar, ainda, que no Brasil a fiscalizagdo da constitucionalidade alcanga nao sé as leis em sentido estrito, mas também os atos administrativos em geral. Com efeito, o controle de constitucionalidade exercido perante o Poder Judiciario nao tem por objeto, exclusivamente, as leis formais, elabo- radas segundo o processo legislativo. Atos administrativos em geral, adotados pelo Poder Publico, também podem ter a sua inconstitucionalidade reconhecida pelo Poder Judiciario, tanto na via concreta, quanto na via abstrata. Resolu- gdes dos tribunais do Judiciario, decretos e portarias do Executivo, e outros 708 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO * Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino atos nao formalmente legislativos podem, dependendo de seu contetido, ser impugnados em agao direta de inconstitucionalidade, ou atacados em agdes proprias, na via difusa Apresentamos, a seguir, um bosquejo histrico da evolugao dos sistemas de fiscalizagdo da validade das leis no Brasil, desde a Constituigaéo de 1824 (que sequer previa © controle judicial de constitucionalidade), até a Carta vigente, que contempla um complexo e abrangente sistema de fiscalizagao jurisdicional. 8.1. A Constituigao de 1824 A Constituigéo do Império nao contemplava qualquer sistema asseme- lhado aos atualmente conhecidos modelos de controle da constitucionalidade, Outorgava, téo-somente, ao Poder Legislativo a competéncia para “fazer leis, interpreta-las, suspendé-las e revogd-las”, bem como para “velar na guarda da Constituigao” (art. 15). Essa concep¢ao de Estado inspira-se marcadamente na doutrina francesa de separacao rigida entre os poderes, nao admitindo a possibilidade de um poder invalidar os atos de competéncia de um outro. Segundo essa ideologia, se tal prerrogativa fosse conferida a um dos Poderes da Repiiblica, este sobrepujaria todos os demais, destruindo 0 equilibrio e a harmonia que deveria existir entre eles a fim de se evitar os abusos resultantes da concentracao de poderes. Dessa forma, a Constituigo Imperial outorgava competéncia ao proprio Poder Legislativo para a fiscalizacao de seus atos e aferigio de sua compati- bilidade com a Constituigao, ou seja, a validade das leis era controlada pelo proprio Orgdo encarregado da elaboragéo normativa. Nao se reconhecia ao Poder Judiciario competéncia para afastar a aplicagao de normas que pudes- sem ser consideradas inconstitucionais, nao existindo, portanto, nem mesmo © mais rudimentar modelo de controle judicial de constitucionalidade. 8.2. A Constituigao de 1891 A Constituigao de 1891, profundamente influenciada pelo constitucionalis- mo dos Estados Unidos da América, abandona o sistema estritamente politico de controle da constitucionalidade — albergado pela Constituigdo anterior, na qual somente o Legislativo realizava a fiscalizagfo da validade de suas pré- prias leis — e passa a outorgar competéncia ao Poder Judiciério para afastar a aplicagdo, a um caso concreto, da lei que ele considerasse inconstitucional. Inaugurava-se, assim, um abrangente sistema de controle judicial difuso no Brasil, atribuindo-se a todos os drgaios do Poder Judiciario, federais ou Cap. 13 » CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 709 estaduais, a competéncia para aferir a compatibilidade das leis com a Cons- tituigdo, desde que houvesse provocagdo nesse sentido. Ressalte-se, entretanto, que a argiiigao de inconstitucionalidade somente era possivel na via incidental, diante de um caso concreto, mediante provo- cagao dos litigantes diretamente interessados. A declaragao da inconstitucio- nalidade da lei, portanto, em nenhuma hipotese a retirava do ordenamento juridico, mas, téo-somente, afastava a sua aplicag&o ao caso concreto. Nao havia a possibilidade de argitigao de inconstitucionalidade abstrata, de uma lei em tese, independentemente de interesses subjetivos especificos, mediante acao direta. 8.3. A Constituicao de 1934 A Constituigo de 1934 introduziu profundas alteragdes no sistema judi- cial de fiscalizagdo das leis no Brasil, criando novos mecanismos de atuago do Poder Judiciario. Foi com a Carta de 1934 que passou a integrar nosso sistema de con- trole a denominada “reserva de plenario”, segundo a qual somente a maioria absoluta dos membros dos diversos Tribunais do Poder Judiciario dispde de competéncia para declarar a inconstitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Publico — fortalecendo sensivelmente o principio da presungao de constitucionalidade das leis, em favor da seguranga juridica. Foi nessa Constituigéo, também, que primeiro apareceu a possibilidade de atribuigdo de efeitos gerais 4 proniincia de inconstitucionalidade, embora necessaria, para tanto, a intervengdo do Poder Legislativo. Com efeito, a Carta atribuiu competéncia ao Senado Federal para suspender a execugao de uma lei, com eficacia erga omnes, em face da declaracao de sua inconstituciona- lidade pelo Poder Judicidrio, proferida em um caso concreto. Foi, ainda, criada a denominada representagdo interventiva, agdo com a finalidade precipua de fiscalizar o procedimento de intervengao da Unido em ente federativo, nas hipéteses constitucionalmente previstas. Por fim, foi esse mesmo texto constitucional que instituiu 0 mandado de seguranga, remédio judicial de protegao a direito liquido e certo do individuo contra ato de autoridade praticado com ilegalidade ou abuso de poder. 8.4. A Constituigao de 1937 A Constituigéo de 1937 ~ como se deu em praticamente todos os campos — representou um retrocesso no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil. 710 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Conquanto tenha preservado o controle judicial difuso, o poder consti- tuinte usurpado enfraqueceu muito a competéncia do Judicidrio relativamente & declaragdo de inconstitucionalidade das leis - e, de um modo geral, quase aboliu o principio da separagio entre os Poderes — uma vez que, no paragrafo unico de seu art. 96, a Polaca assim dispunha: Paragrafo unico. No caso de ser declarada a inconstitucionali- dade de uma lei que, a juizo do Presidente da Repiblica, seja necesséria ao bem-estar do povo, promogiio ou defesa de interesse nacional de alta monta, podera o Presidente da Repi- blica submeté-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois tergos de votos em cada uma das ficara sem efeito a decisao do Tribunal. Com isso, na pratica, o Presidente da Republica passou a ter poderes para submeter novamente ao Parlamento a lei ja declarada inconstitucional pelo Poder Judiciario. Caso confirmada pelo Parlamento a legitimidade da norma, esta voltaria a ser aplicada, desconsiderando-se a deciséo do Judi- cidrio em contrario. Também nessa Constituigdo 0 mandado de seguranga perdeu a qualidade de garantia constitucional, passando a ser disciplinado pela legislagao ordi- naria, Ao tratar do mandado de seguranga, o legislador ordindrio excluiu da sua apreciagdo os atos do Presidente da Republica, dos Ministros de Estado, dos Governadores e interventores dos estados. Deixou de constar do texto constitucional, também, a competéncia do Senado Federal para suspender a execugio de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, bem como a representagdo interventiva. 8.5. A Constituigao de 1946 A Constituigéo de 1946 trouxe de volta as disposigées suprimidas pela Carta outorgada de 1937. O controle judicial difuso voltou a ser exercido com exclusividade pelo Poder Judicidrio, sem possibilidade de outro Poder tomar “sem efeito” as suas decisdes. Restaurou-se, também, a competéncia do Senado Federal para suspender a execucao da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (sempre no controle difuso, porquanto inexistente, até aqui, o controle abs- trato no Brasil). A representagao interventiva, para intervengaio federal, foi modificada, con- dicionando-se a decretagdo da intervengdo 4 manifestagao prévia do Supremo Tribunal Federal. A legitimagao para a representagdo de inconstitucionalidade Cap. 13 » CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 74 perante o Supremo Tribunal Federal foi confiada ao Procurador-Geral da Repidblica (art. 8.°, parégrafo dnico). 8.6. A Emenda Constitucional n.° 16, de 1965 AEmenda Constitucional n.° 16, de 1965, introduziu em nosso ordenamento o controle abstrato de normas. A competéncia foi atribuida ao Supremo Tribunal Federal para julgamento de a¢do direta de inconstitucionalidade (ADI) de normas, federais e estaduais em face da Constitui¢ao Federal, sendo a legitimagao para a propositura conferida exclusivamente ao Procurador-Geral da Republica. Somente a partir dessa emenda o sistema juridico brasileiro passou a admitir a possibilidade de declaracao de inconstitucionalidade em tese de atos normativos do Poder Publico, mediante controle concentrado, pela via direta —e nao mais somente diante de casos concretos, pela via incidental. 8.7. A Constituigéo de 1967/1969 A Constituigéo de 1967 (assim como a Emenda Constitucional n.° 1, de 1969) manteve o controle judicial, nos critérios concreto e abstrato, tal como previsto anteriormente na Constituigao de 1946, apés a Emenda n.° 16, de 1965. Nao houve inovagSes merecedoras de registro em matéria de jurisdigao constitucional. A respeito do controle abstrato nas Constituigdes de 1946 (a partir da EC n.° 16, de 1965) e de 1967/1969, é oportuno transcrever este registro de Gilmar Ferreira Mendes: De anotar, porém, que o maior mérito da jurisprudéncia do Supremo Tribunal Federal, sob o império das Constituigdes de 1946 (Emenda n.° 16, de 1965) e de 1967/69, esta relacionado: com a definigfo da natureza juridico-processual do proceso de controle abstrato. A identificag&o da natureza objetiva desse proceso, a caracterizagao da iniciativa do Procurador-Geral da Repiiblica como simples impulso processual ¢ o reconhecimento da eficacia erga omnes das decisdes de mérito proferidas nesses processos pelo Supremo Tribunal Federal configuraram, sem divida, conquistas fundamentais para o mais efetivo desenvol- vimento do controle de constitucionalidade no Brasil. 8.8. A Constituigao de 1988 Da analise do até aqui exposto, percebemos que o Brasil inicialmente adotou 0 sistema norte-americano de controle de constitucionalidade (controle 712 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino judicial difuso), evoluindo aos poucos para um sistema misto e peculiar, que combina o modelo difuso, por via incidental, com o critério concentrado, por via de ago direta A Constituigaéo Federal de 1988 manteve em sua plenitude o controle difuso, conferindo a todos os érgdos do Poder Judiciério competéncia para, diante de um caso concreto, reconhecer a inconstitucionalidade das leis. Manteve, também, o controle abstrato pelo qual é possivel, mediante agio direta, a solugdo de uma controvérsia constitucional, em tese, acerca da compatibilidade de uma lei com a Constitui¢ado. Observa-se, contudo, que a Carta vigente trouxe relevantes alteragdes, sobretudo, a fiscalizagdo abstrata, valorizando sensivelmente esse critério de controle, ampliando e fortalecendo sobremodo a via de agao direta. De pronto, constata-se a grande ampliagdo do numero de legitimados para a instauragao do controle abstrato perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 103, I ao IX), via ag4o direta de inconstitucionalidade (ADI), quebrando © monopélio, até entdo existente, do Procurador-Geral da Republica. O rol de legitimados para a propositura da agdo direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, I ao IX) contempla algumas centenas de Orgios, pessoas ¢ entidades. Abrange todos os partidos politicos com representagéo no Con- gresso Nacional, as confederagdes sindicais e entidades de classe de ambito nacional, os governadores dos Estados e do Distrito Federal, as Mesas das Assembléias Legislativas, entre outros. A par disso, 0 constituinte de 1988 estabeleceu novas acdes especificas no Ambito do controle concentrado, como a argiligao de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), de competéncia originaria do Supremo Tribunal Federal. Sao legitimados a propositura dessa ago, visando a evitar ou reparar lesdo a preceito fundamental decorrente da Constituig¢ao Federal de 1988, os mesmos Orgaos, pessoas ¢ entidades aptos a promover a agdo direta de inconstitucionalidade. A ADPF, prevista no texto origindrio da Constituigao Federal (art. 102, § 1."), foi disciplinada pelo legislador ordindrio por meio da Lei n.° 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Outra significativa inovagdo da Carta Politica atual foi a introdugio da denominada inconstitucionalidade por omissao, reconhecida nas hipéteses de inércia do legislador ordinario em face de uma exigéncia constitucional de legislar. Duas novas agées foram especialmente introduzidas com o fim de reparar a omissdo legislativa inconstitucional: 0 mandado de injungéo (CF, art. 5.°, LXXI) e a aco direta de inconstitucionalidade por omissdo (CF, art. 103, § 2.°), essa ultima integrante do sistema de controle abstrato de normas delineado pelo constituinte de 1988. Em 1993, por meio da Emenda Constitucional n.° 3, 0 legislador constituin- te derivado criou a acdio declaratéria de constitucionalidade (ADC), passando Gap. 13 + CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 713 a permitir que seja pleiteada diretamente perante o Supremo Tribunal Federal a declaragdo da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal, com o fim de pér termo a controvérsia judicial sobre sua validade. Ademais, a Constituigéo Federal prevé que os estados-membros insti- tuam 0 controle abstrato em seus respectivos ambitos, devendo estabelecer representagdio de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituicao estadual (CF, art. 125, § 2.°). Pode-se concluir, dessarte, que o controle abstrato passou a desempenhar papel preeminente no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, a partir da Constituigéo de 1988. Tal assertiva decorre nao s6 do fato de terem sido previstas quatro agées distintas na via direta (ADI, ADI por omissao, ADC ¢ ADPF), mas, também, pela ampliagdo dos entes legitimados para a instauragdo desse modelo de fiscalizagdo abstrata (art. 103, I ao IX). Isso representa uma significativa mudanga de paradigma em nosso ordenamento, uma vez que, até 0 advento da atual Carta, 0 controle de validade das leis no Brasil tinha sua base no sistema difuso, de inspiragdo norte-americana, realizado no curso dos processos judiciais comuns. Em sua peculiar conformagao, 0 controle abstrato hoje existente também assume novo e relevante significado para o principio federativo, permitindo a aferigao da constitucionalidade das leis federais mediante requerimento de um Governador de do, a aferigdo de leis estaduais mediante requerimento do Presidente da Republica e a aferigao da constitucionalidade de lei de um Estado mediante requerimento de Governador de outro Estado. A propositura da ago direta pelos partidos politicos com representagdo no Congresso Nacional concretiza, por outro lado, a idéia de defesa das minorias, uma vez que se assegura até as fragdes parlamentares menos representativas = vg., partido com apenas um representante em uma das Casas do Congresso ~ a possibilidade de argiiir a inconstitucionalidade de lei. Essa ampla legitimagao — aliada 4 maior celeridade do modelo processual abstrato, dotado inclusive da possibilidade de suspensao imediata da efi do ato normativo impugnado, mediante pedido de cautelar — faz com que praticamente todas as relevantes questdes constitucionais atuais sejam solu- cionadas em acées diretas propostas perante o Supremo Tribunal Federal. Impende destacar, ainda, que, sob a vigéncia do texto constitucional de 1988, o legislador ordinario introduziu uma das mais significativas mudangas no controle de constitucionalidade abstrato, ao criar, entre nds, a figura da denominada inconstitucionalidade pro futuro. Com efeito, a Lei n° 9.868/1999, que regulou o processo ¢ julgamento da ag&o direta de inconstitucionalidade e da agao declaratéria de constitu- cionalidade, dispés que o Supremo Tribunal Federal podera, ao proclamar a inconstitucionalidade de uma lei, outorgar eficacia nao-retroativa 4 sua 714 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO = Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina decisdo (ex nunc) ou até mesmo fixar um outro momento para o inicio de seus efeitos. A Lei n.° 9.882/1999 outorgou essa mesma competéncia ao Supremo Tribunal Federal nas decisées proferidas em sede de argiticao de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Assim, a partir do ano de 1999, passou o Supremo Tribunal Federal, no Ambito do controle abstrato, a ter competéncia para proclamar a inconstitu- cionalidade pro futuro (ex nunc), resguardando os efeitos j4 produzidos pela lei entre 0 inicio de sua vigéncia e 0 reconhecimento de sua invalidade. Por fim, tivemos a Emenda Constitucional n.° 45, publicada em 8.12.2004, que trouxe trés importantes inovagdes ao controle de constitucionalidade das leis, a saber: a) ampliacao da legitimagao para a propositura da ago declaratéria de cons- titucionalidade (nova redag&o ao art. 103); b) criagdo da simula vinculante do Supremo Tribunal Federal (art. 103-A); ©) exigéncia do requisito “repercussio geral das questdes constitucionais dis- cutidas” para a admissibilidade do recurso extraordinario (art. 102. § 3.°). CONSTITUIGAO DE 1824 CONSTITUIGAO DE 1891 Controle politico: cabia ao proprio || inetiulgdo do controle judicial diftuso, | ~y Leglsatvo interpreter, suspender © na via conereta revogar tes. CONSTITUIGAO DE 1934 GONSTITUIGAO DE 1997 | nsttuigao da reserva de plonério, || Retrocesso no controle de ™Y Ga atuacto do Senado Federal, Constiuconalidade: possbidede de * da representagSo intervenva e do © Presidente da Repdbica submeter mandado de seguranca 20 Poder Legisllvo lei ja dectarada inconstitucional e fim da atuagio do Senado Federal CONSTITUIGAO DE 1946 [ EC N° 16, DE 1965 Restauragao das regras da | institsigao do controle abstrato: ‘, Constuigbo de 1834 e modifeacto na “| agdo deta indreta de re represeniacao interventiva: legiimagso | | inconstitucionalidade (ADIN), ao lado {0 Procurador-Geral da Repibiica © 0 controle difuso apreciagao do STF. ‘CONSTITUIGAO DE 1967/1968 CONSTITUIGAO DE 1988 |7~a] Nie troure inovacbes. manteve 0s | ~4| Mantove os contoles incidental conttoles dfuso © abstato abstrato, com as sequirtes inovagbes + Ampla legitimidade no controle abstrato * Criagiio da ADIN por omiss0 * Criagao da ADC @ ADPF * Criagtio do mandado de injung3o * Controle abstrato nos estados | + Criacdo da stimula vinculante (EC 45/08)

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