Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
*
1
positivismo) não mereçam atenção os autores mais representativos das doutrinas
positivistas de nossos tempos, como Bobbio ou Rossii[ii]. Possivelmente, esta falta de
atenção quanto às escolas européias tenha reduzido o âmbito de influência das teses de
Dworkin. Muitos autores - que o citam - se limitam a etiquetá-lo como “apologista do
sistema americano” ou de “neojusnaturalista”iii[iii], para evitar um confronto mais direto
com a incomodidade que produzem suas teses. E, certamente, é um autor incômodo
porque põe em questão os pressupostos do positivismo jurídico, da filosofia política
utilitarista e, além disso, resgata a filosofia liberal do conservadorismo.
2
1
[1] Dworkin considera que o teste de pedigree é um teste adequado caso se
afirme - com o positivismo - que o direito é um conjunto de normas. Porém, precisamente
pretende demonstrar que esta visão do direito é unilateral. Junto às normas, existem
princípios e diretrizes políticas que não podem ser identificadas por sua origem mas por
seus conteúdo e força argumentativa.
O critério da identificação dos princípios e das diretrizes não pode ser o teste de
origem. As diretrizes fazem referência a objetivos sociais que devem ser alcançados e são
considerados socialmente benéficos. Os princípios fazem referência à justiça e à
eqüidade (fairness). Enquanto as normas se aplicam ou não se aplicam, os princípios
dão razões para decidir em um sentido determinado, mas, diferindo das normas, seu
enunciado não determina as condições de sua aplicação. O conteúdo material do
princípio - seu peso específico - é o que determina quando deve ser aplicado em uma
situação determinada.
A regra de reconhecimento
Uma postura distinta mantém Raz. Este autor - discípulo de Hart - tem manifestado
as debilidades das regras de reconhecimento como critério de identificação do sistema
jurídico. Entretanto, da insuficiência da regra de reconhecimento não se pode inferir -
como faz Dworkin - a impossibilidade de encontrar um critério que permita identificar o
direito.ix[ix]
O neojusnaturalismo de Dworkin
4
especialmente nos casos difíceis. E, portanto, a tese central do positivismo - a separação
entre o direito e a moral - é falsa; não se pode separar a argumentação jurídica da
argumentação moral. Para Dworkin, uma interpretação teórica aceitável da argumentação
jurídica requer “a verdade do jusnaturalismo”.x[x]
5
Em resumo, a crítica ao pressuposto da separação absoluta entre o direito e a
moral o conduz à construção de uma teoria do direito na qual a moral e a política ocupam
lugar relevante. Dworkin se preocupou em analisar as relações entre o direito e a moral.
Não separou ambas as parcelas como haviam feito os metodólogos da pureza.
A Função Judicial.
Os casos difíceis.
A análise dos casos difíceis e a incerteza do direito que supõe é a estratégia eleita
pelo autor americano para criticar o modelo da função judicial positivista. Um caso é difícil
se existe incerteza, seja porque existem várias normas que determinam sentenças
distintas - porque as normas são contraditórias - seja porque não existe norma
exatamente aplicável.
Dworkin sustenta que os casos difíceis têm resposta correta. Os casos insolúveis
são extraordinários em direitos minimamente evoluídos. É evidente que pode haver
situações às quais não se possa aplicar nenhuma norma concreta, mas isto não significa
que não sejam aplicáveis os princípios. Dworkin assinala que o material jurídico composto
por normas, diretrizes e princípios é suficiente para dar uma resposta correta ao problema
proposto. Somente uma visão do direito que o identifique com as normas pode manter a
tese da discricionariedade judicial.
6
O autor americano reconstrói casos resolvidos pela jurisprudência e mostra que
sua teoria justifica e explica melhor os casos difíceis que a teoria da discricionariedade
judicial. Quando nos encontramos frente a um caso difícil não é uma boa solução deixar
liberdade ao juiz. E não é uma boa solução porque o juiz não está legitimado nem para
ditar normas, e muito menos para ditá-las de forma retroativa se levamos a democracia -
e seu sistema de legitimação - a sério. Ao juiz, deve-se exigir a busca de critérios e a
construção de teorias que justifiquem a decisão. E esta deve ser consistente com a teoria.
Os juízes, nos casos difíceis, devem acudir aos princípios. Porém, como não há
uma hierarquia preestabelecida de princípios, é possível que estes possam fundamentar
decisões distintas. Dworkin sustenta que os princípios são dinâmicos, modificam-se com
grande rapidez, e que toda tentativa de canonizá-los está condenada ao fracasso. Por
esta razão, a aplicação dos princípios não é automática, mas exige a argumentação
judicial e a integração da argumentação em uma teoria. O juiz ante um caso difícil deve
balancear os princípios e decidir-se pelo que tem mais peso. O reconstrutivismo conduz a
busca incessante de critérios objetivos.
7
O núcleo mais importante da crítica ao modelo da função judicial positivista está
centrado no tema dos casos difíceis. Dworkin sustenta que quando existem contradições
ou lacunas, o juiz não tem discricionariedade porque está determinado pelos princípios.
Esta tese está fundamentada em dois argumentos: A) qualquer norma se fundamenta em
um princípio; B) os juízes não podem criar normas retroativas. Têm a obrigação de aplicar
os princípios porque formam parte essencial do direito. Os princípios não são
pseudorregras. Na análise dos princípios aparece com claridade meridiana a relação
entre a argumentação moral e a argumentação jurídica.xvi[xvi]
Uma das chaves para o êxito da obra do autor americano se encontra em sua
preocupação pelo tema da certeza do direito. Sua teoria tem a originalidade de enfocar a
análise do direito desde a perspectiva dos casos difíceis e das incertezas que produzem.
Os casos difíceis propõem problemas que a teoria deve resolver. Esta proposição lhe
proporciona uma dimensão prática e funcional muito importante. A teoria serve -
efetivamente - para a redução da incerteza.
A filosofia jurídica de Dworkin está baseada nos direitos individuais. Isto significa
que os direitos individuais - e muito especialmente o direito à igual consideração e
respeito - são triunfos frente à maioria. Nenhuma diretriz política nem objetivo social
coletivo pode triunfar frente a um autêntico direito.
Um exemplo servirá para explicar a concepção dos direitos como triunfos frente à
maioria. Imaginemos que quatro pessoas decidem se associar para praticar esporte.
Criam uma sociedade e em seus estatutos estipulam que as decisões serão tomadas por
acordo da maioria. Uma vez constituída a sociedade, decide-se por unanimidade pela
construção de uma quadra de tênis. Uma vez construída a quadra, os sócios decidem por
maioria que uma das pessoas associadas - que é da raça negra - não pode jogar porque
não querem negros na quadra. Acaso a lei da maioria é uma lei justa? Se isto pode ser
feito, que sentido tem o direito a igual consideração e respeito?
Uma teoria que tome os direitos a sério não considerará válido este acordo porque
a pessoa discriminada tem um direito individual que pode triunfar frente à maioria. O
direito a não ser discriminado adquire relevância frente aos bens coletivos e apenas é um
autêntico direito se pode vencer a maioria.
O esquema utilizado por Dworkin para explicar a tese dos direitos está centrado an
análise das controvérsias judiciais. Poderia ser sintetizada do seguinte modo: A) Em todo
processo judicial existe um juiz que tem a função de decidir o conflito; B) Existe um direito
a vencer no conflito e o juiz deve indagar a quem cabe vencer; C) Este direito a vencer
10
existe sempre, ainda que não exista norma exatamente aplicável; D) Nos casos difíceis o
juiz deve conceder vitória a uma parte baseando-se em princípios que lhe garantem o
direito; E) Os objetivos sociais estão subordinados aos direitos e aos princípios que o
fundamentam; F) O juiz - ao fundamentar sua decisão em um princípio preexistente - não
inventa um direito nem aplica legislação retroativa: se limita a garanti-lo.
Este esquema tem sido objeto de numerosas críticas. Em primeiro lugar, para que
o esquema funcione é preciso especificar quais são os princípios aplicáveis, e esta não é
uma tarefa fácil, pois como já afirmou Dickinson “os mais amplos e fundamentais
princípios do direito quase nunca se podem aplicar diretamente como critérios de decisão
nas controvérsias. Por uma parte, o princípio é demasiado genérico - por exemplo, o
respeito ao direito de propriedade... e pode ser sustentado pelas duas partes no conflito...
Por outra parte, se o princípio é mais restrito, poderá expressar e defender o interesse de
uma parte e, então, pode colidir com outro princípio igualmente válido que defende o
interesse da outra parte”.xx[xx]
Em segundo lugar, deve ter-se em conta que - como afirma Hart - “a decisão
judicial, especialmente em temas de importância constitucional, implica a eleição entre
valores morais e não meramente a aplicação de um único princípio moral: portanto, é uma
loucura pensar que onde o sentido do direito é duvidoso a moralidade sempre pode dar
resposta”.xxi[xxi]
Estas objeções são sérias. Dworkin reconhece que os conflitos entre princípios
podem acontecer. Entretanto, Dworkin sustenta que quando existe um conflito não se
pode deixar o tema nas mãos da discricionariedade do juiz. Este deve dar vitória ao
princípio que tenha maior força de convicção. A tarefa do juiz será a justificação racional
do princípio eleito. Sartorius - na linha de Dworkin - sugere um critério não substantivo
mas meramente formal. A decisão correta será aquela que satisfaça o máximo de
adesão.xxii[xxii] E esta adesão teria a teoria do juiz onisciente Hércules.
A tese dos direitos tem recebido numerosas críticas. Por exemplo, MacCornick
assinalou que a resolução de um conflito entre princípios não supõe a criação de um novo
direito nem a aplicação de uma norma retroativa. Simplesmente se trata da eleição entre
direitos.xxiii[xxiii] Seria impossível aqui citar as críticas que tem suscitado a tese dos
direitos. É indubitável que Dworkin propõe temas de fundamental importância para todo
aquele que esteja interessado no estudo dos direitos. Não se há de esquecer que os
temas tratados por Dworkin estão baseados em conflitos que têm sido apresentados ante
a Corte Constitucional e que suas análises podem ser de grande utilidade an hora de
analisar as decisões do Tribunal Constitucional.xxiv[xxiv] Em muitas ocasiões tem-se
afirmado que o Tribunal está subordinado à Constituição. Os positivistas e realistas - pelo
menos alguns dentre eles - têm considerado que esta afirmação não era mais que uma
mentira piedosa, que servia para ocultar o poder político do juiz. Possivelmente as teses
de Dworkin podem contribuir para compreender o que o homem da rua já sabe: que os
juízes não têm um grande poder político. Os juízes e tribunais não têm liberdade para
inventar direitos e interpretações. A doutrina dos tribunais lhes exige coerência e adesão
e, na realidade, a função criadora de direito dos juízes é bastante limitada.
Dworkin propõe um novo modelo da função judicial que contrasta com os modelos
tradicionais. Na história do pensamento jurídico se encontram várias concepções. Entre
elas, as mais importantes são as seguintes:
13
Em quarto lugar: nos casos difíceis, os juízes não baseiam suas decisões em
objetivos sociais ou diretrizes políticas. Os casos difíceis são resolvidos com base em
princípios que fundamentam direitos.
Sem dúvidas, todas estas teorias da função judicial podem ser criticadas.
Entretanto, pode ser que a teoria de Dworkin da função judicial deva ser levada a sério
porque não incorre nos exageros das teorias silogística e realista ( que negavam os casos
difíceis). Tampouco incorre nas contradições da teoria da discricionariedade judicial ( pois
de um modo ou outro conceder poder político ao juiz supõe trair o sistema de legitimação
do estado democrático e também supõe a aceitação de leis retroativas).
O Novo Liberalismo
14
demonstrar a debilidade dos argumentos utilitaristas quando se propõe o tema de direitos
individuais.
Como bom liberal, Dworkin considera que um dos objetos principais do sistema
jurídico é controlar e limitar a ação do governo. Todavia, a defesa dos direitos individuais -
e muito especialmente a defesa do direito à igual consideração e respeito - não o leva a
posições conservadoras, mas progressistas.
2
15
Apesar das possíveis incoerências que existem na proposição e desenvolvimento
da teoria liberal de Dworkin, é preciso reconhecer seu esforço realizado com o objetivo de
resgatar o núcleo da moral liberal dos excessos utilitaristas e conseqüencialistas. A
reabilitação do direito a igual consideração e respeito - como o primeiro e autêntico direito
individual da moral liberal - permite-lhe um novo desenho da filosofia liberal que se afasta
do liberalismo tradicional conservador. Dworkin ( em seu trabalho Liberalismo) considera
que os princípios do liberalismo utilitarista estão em crise e que há que se abandonar a
estratégia utilitarista. Porém, isso não significa que o liberalismo esteja definitivamente
morto. Para Dworkin, a fundamentação do liberalismo igualitário é necessária para a
reabilitação do liberalismo progressista.
16
O radicalismo igualitário de Dworkin é coerente com sua tese dos direitos e o
caráter axiomático do direito à igualdade. Entretanto, Dworkin não apenas interveio em
debates técnico-jurídicos mas também interveio nos debates políticos desde a palestra
liberal New York Review of Books. Uma aplicação coerente do princípio de igualdade
entendida como direito individual à igualdade deveria recusar qualquer “política de
igualdade” levada a cabo pelo governo que favorece a igualdade mas que viola o direito à
igual consideração e respeito individual. Porém, este não é o caminho seguido por
Dworkin, porque forçando os argumentos justifica com razões utilitaristas as políticas de
igualdade que violam o direito à igualdade. As simpatias pelo liberalismo progressista
pesam mais que sua declaração primigênia de considerar o direito como um mecanismo
que serve para proteger o indivíduo frente ao poder do governo e das maiorias. No próprio
Dworkin, às vezes as considerações utilitaristas servem para negar os direitos individuais
e às vezes não. Essa é uma boa prova de que também Dworkin aceita implicitamente a
tese da variedade. Entretanto, é evidente que neste caso a incoerência do pensamento
de Dworkin é manifesta, posto que nenhum direito pode ser violado ( se é um direito no
sentido forte) por considerações utilitaristas, segundo sua própria definição dos direitos
como triunfos frente às maiorias e aos objetivos sociais. A tese da variedade e a definição
de direitos dada por Dworkin são incompatíveis, e - entretanto - o autor americano
mantém as duas a uma só vez. A inconsistência do argumento neste ponto é clara.
Conclusões
17
Em terceiro lugar: Dworkin constrói uma teoria dos direitos baseada no direito à
igualdade que difere das teorias puramente positivistas e leva a discussão à “construção”
do argumento moral e dos direitos morais. As linhas de demarcação entre direitos morais
e jurídicos permanecem difuminadas.
Em quinto lugar: creio que para os juristas continentais pode ser de grande
utilidade o contato com a filosofia jurídica norte-americana. A teoria e a filosofia jurídica
européia têm se caracterizado pelo seu academicismo e por seu método da abstração
generalizante. O formalismo tem sido considerado como um dos baluartes frente a teorias
e filosofias irracionalistas e aliberais. Dworkin, seguindo uma antiga tradição americana,
parte de problemas muito concretos e não aceita o postulado formalista da separação
absoluta entre o aspecto descritivo de uma teoria e seu aspecto normativo. A teoria
jurídica de Dworkin não apenas tem funções cognoscitivas, mas também funções práticas
de adequação do direito à mudança social. A utilização das capacidades humanas para
resolver problemas justifica a existência da teoria jurídica. O enfoque de problemas
concretos e a análise de suas conseqüências são necessários em um âmbito cultural
como o nosso em que o saber jurídico mais desenvolvido - a dogmática - se refugiou em
um esplendoroso isolamento para evitar a debilidade de suas proposições.
Por último: o aparato analítico utilizado por Dworkin permite propor e resolver
problemas de forma nova. Porém, como qualquer método, tem suas limitações das quais
o próprio Dworkin é muito consciente. Com o aparato analítico de Dworkin apenas se
pode observar um setor da realidade jurídica. Quem quer que creia que com esse aparato
analítico é possível resolver qualquer problema confunde um método com uma concepção
de mundo.
Todas estas são razões que corroboram a publicação desta importante obra aqui
na Espanha; precisamente em um momento de especial efervescência - política, social e
jurídica - pode ser de especial utilidade a leitura de uma obra na qual os temas candentes
da política jurídica estão presentes com toda a radicalidade - e em alguns casos
incoerência - que supõem.
18
O próprio Dworkin - em uma carta de 28 de dezembro de 1983 que será publicada
na revista Doxa da Universidade de Alicante - resumiu com especial clarividência e em
muito poucas palavras sua posição filosófica jurídica: “De modo geral posso dizer que fui
me conscientizando progressivamente da importância de considerar a filosofia jurídica
como parte importante da filosofia moral e política e, portanto, da filosofia. Creio que
nossa matéria sofreu isolamento, no sentido de que os conceitos legais podem ser
explorados por si mesmos de um modo útil, o qual dá como resultado um trabalho
analítico estéril. Tentei pôr especial ênfase no fato de que os conceitos jurídicos
fundamentais, incluindo a idéia mesma de direito, são conceitos contestados ou
interpretativos, de tal modo que não podem ser explicados utilizando-se as formas
convencionais de análise conceitual ou lingüistica que são usadas para explicar, por
exemplo, o conceito de justiça. Portanto, qualquer teoria do direito competente deve ser
ela mesma um exercício de teoria moral e política normativa. Este ponto de vista me levou
recentemente a estudar a idéia de interpretação como algo mais importante para a teoria
jurídica do que se havia considerado, e também a estudar a filosofia política quando
minha maior preocupação tem sido a idéia de igualdade. Tentei desenvolver uma teoria da
conpetência judicial que una esses campos com o estudo do processo legal.”
19
i
ii
iii
iv
v
vi
vii
viii
ix
x
xi
xii
xiii
xiv
xv
xvi
xvii
xviii
xix
xx
xxi
xxii
xxiii
xxiv
xxv
xxvi
xxvii
xxviii
xxix
xxx